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FILME | O fundo do poço, e o caminho de Cervantes

Eis os “Jogos Mortais”, versão Netflix: “O Poço”, de Galder Gaztelu-Urrutia. O tema gera interesse e debate, tendo penetrado com alguma profundidade nas atenções daqueles que estão mergulhados no confinamento imposto pelo coronavírus. Um comentário breve.

André Barbieri São Paulo | @AcierAndy

quarta-feira 1º de abril de 2020 | Edição do dia

Curioso como a Netflix tem êxito significativo em passar, por trás da aparência de crítica social, um rebaixamento das expectativas da humanidade sobre si mesma. Tomando o cuidado devido para que a "crítica social" seja o resultado na consciência (a redenção final do protagonista depois de um ato de auto-sacrifício). O humanismo se inverte e se transforma em seu oposto, na naturalização da mesquinharia, como objetivo da formação do protagonista. A crítica à classe dominante é majoritariamente alusiva e indireta. Não se pode propriamente falar em classes, no filme; há uma espécie de essência humana que se esgueira aqui e ali. O foco da narrativa é mostrar quão baixo os seres humanos podem ir quando pressionados pela baixeza das elites. Diante da escassez e da carestia, “toda a velha porcaria” (nos dizeres de Marx) se revela na atitude dos personagens que, para ter a chance de gozar de um estrato melhor dentro da “prisão do poço”, em que se recebe maior quantidade de comida quanto mais alto se situa, se valem da traição, na cobiça, na estupidez, na calúnia e na injúria. Os mais pobres e oprimidos são premiados com banhos de sangue, não tanto por serem pobres e oprimidos, e sim por aceitarem diante da miséria as “regras do jogo” dos sádicos administradores da prisão. Que tipo de crítica social se pode extrair dessa forma grosseira de apresentar a redenção do indivíduo pelo próprio indivíduo, resgatando a pobreza filosófica do neoliberalismo em tempos da crise histórica do capitalismo desde o entre guerras no século XX?

Mas o que me tocou pessoalmente foi a referência literária ao Engenhoso Fidalgo de la Mancha, uma das minhas prediletas (rara vez um livro soma profundidade filosófica, importância histórica e a capacidade de fazer rir às bandeiras despregadas). O filme não se cansa de repetir que esse mundo não foi feito para quem se perde em livros. Ao protagonista, que leva consigo um tomo do Dom Quixote de Cervantes, mais de um figurante indaga, de maneira grosseira: “Que tipo de imbecil traria um livro consigo nessa situação?”. Com o cuidado de parecer crítica sem nomear as condições degradantes do capitalismo, a Netflix é pródiga na máxima que quer transmitir. A “vida” é dura e seca, e os cérebros humanos também devem sê-lo. Não há lugar para o sublime nos anseios da humanidade, cedo ou tarde a “essência humana” o enlameia na crueldade do real. O “realismo” tosco que navega durante o filme pela carnificina, pela desumanidade, pela traição, pelo suborno, pelo racismo, pelo egoísmo, pela glutonice, pela ganância, pela parvoíce, pela mesquinharia, pela baixeza, enfim, pelos dons instilados pelo próprio sistema capitalista e sua particular teia de insensibilidades que sacrifica tudo no altar do Eu individual: esse “realismo”, dizíamos, nos ensina que nessa vida não há lugar para a expansão dos grandes ideais. A injúria chega ao ponto de trazerem ao primeiro plano o sacrifício da própria obra literária que acompanhava o protagonista. As páginas imortais do Engenhoso Fidalgo são rasgadas, uma a uma, para alimentar o pobre ator, que enquanto arquiteta um meio para abolir o seu calvário vai mastigando e engolindo as loucuras idealistas do cavaleiro andante espanhol. Ao fim do processo de anti-catarse (um estranho ritual em que os sentimentos passam por uma gradual transformação, abandonando sua condição humana em nome de uma condição bestial) o protagonista emerge iluminado, destruindo a humanidade em sua imaginação criadora para dar origem ao homem vacinado contra a suposta falta de caráter “inata” no homem. Essa seria a melhor maneira de lidar com a sequidão de nossos tempos.

Há um problema de analogia aqui, e não é possível negar que tenha origem na interpretação um tanto vulgar que se popularizou sobre as intenções de Cervantes. Para não alongar em demasia a questão (que merece lugar de análise adequado), o sarcasmo do renascentista espanhol estava dirigido contra a idealização de um passado retrógrado, não contra os grandes ideais de uma nova era. A simpatia, e verdadeiro carinho, com que Cervantes retratava as desventuras do Quixote, revelam uma dialética específica dessa obra-prima: ainda ridicularizado em suas intenções (reviver a era dourada da cavalaria andante), era na externalização desses objetivos que todo o humanismo do protagonista reverberava com maior esplendor. Dulcineia del Toboso, a amante imaginária de Dom Quixote, era a transfiguração do grande ideal de fazer o bem ao maior número de pessoas possível; Jean Caravaggio, um dos biógrafos de Cervantes, estende argumentos nesse sentido. Sem esse grande ideal, a vida em si mesma não faria sentido ao mais célebre dos manchegos. Como diziam Marx e Engels, n’A Ideologia Alemã: "A consciência pode de fato imaginar que é algo mais do que a consciência da prática existente, que ela representa realmente algo, sem representar algo real". No conflito de concepções de mundo, ou ideais, na obra magna de Cervantes, a rotina da vida pacata e mundana é contraposta frequentemente ao ideal expansivo do humanismo, sempre disfarçado inteligentemente na figura de Dulcineia. Numa das mais comoventes passagens, em que um desafiador – que só queria “trazer Dom Quixote de volta do mundo de suas ideias desmioladas” exige que, como recompensa por sua vitória no combate contra Quixote, este abstenha-se de buscar novas aventuras, e reconheça sua dama “como mais formosa que Dulcineia”. O Engenhoso Fidalgo lhe responde: “Ousarei dizer que jamais vistes a ilustre Dulcineia. Se a tivésseis visto, sei que procuraríeis entrar nesta demanda, porque não houve nem pode haver beleza que à sua se possa comparar”. A derrota, que o obriga a abandonar “a beleza incomparável” de sua concepção humanista, é a mesma que o leva ao trágico falecimento.

Certamente, a burguesia em decadência obscurece a beleza dos grandes ideais humanos. Para a Netflix, a naturalização da suposta baixeza inerente ao homem é a epifania a que cada um deve chegar, o estágio seguinte na evolução após o abandono de grandes objetivos de caráter universal. A revelação é ainda mais nobre se acompanhada pelo individualismo neoliberal já caduco, protegido pelas ofertas que o capitalismo nos dá para aplacar nossos receios de mais segurança.

E é por isso que nos erguemos para enterrar esse sistema que não apenas explora e oprime, mas reduz a zero as ambições humanas. Não há nada mais grandioso a fazer antes de deixar este mundo do que preparar e levar adiante junto a milhões a emancipação revolucionária da humanidade. Com as reservas que se queira fazer, a liberdade da humanidade nos aproxima mais do “utópico” fidalgo de Cervantes, que das asneiras ideológicas do neoliberalismo decadente, difundidas pela Netflix.

Um mérito saiu de toda a coisa: me renovou a vontade de reler o cavaleiro manchego, e respirar o ar puro por sobre o miasma da ideologia burguesa.




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