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O fantasma das jornadas de junho de 2013 ainda atormenta o PT

Thiago Flamé

O fantasma das jornadas de junho de 2013 ainda atormenta o PT

Thiago Flamé

Hoje se tornou um senso comum nos setores petistas e progressistas em geral lembrar de junho como um movimento capturado pela direita, quando não diretamente criado como parte de uma conspiração já visando o golpe de 2016. É sinal dos tempos reacionários que vivemos, que o petismo possa levantar a grave ameaça contra quem pretende um movimento que fuja ao seu controle “cuidado para não acabar como junho”. As futuras mobilizações ainda vão se encarregar de reestabelecer o lugar das jornadas de junho como uma legitima revolta popular e aprender das suas lições.

Junho de 2013 aparece para os dirigentes petistas como um pesadelo, uma mobilização popular que foge ao seu controle. E ao indicar em junho o início da preparação do golpe institucional de 2016, o que querem dizer é que qualquer mobilização que tente ir além da política de pressão sobre as instituições, além do controle de Lula e do PT vai irremediavelmente favorecer a direita. O recado para a juventude então é que é melhor se contentar com manifestações tranquilas e controladas, esperar o melhor da CPI e fortalecer a candidatura de Lula em 2022, do que correr o risco de entornar o caldo agora e mais uma vez o movimento favorecer a direita. O que o discurso cínico do PT tenta apagar da memória popular é que foram os seus governos que abriram caminho para a direita e não Junho, que foi explosão que questionava suas alianças com a direita fisiológica, o mesmo centrão que hoje apoia Bolsonaro.

Quando escutamos os defensores dos governos petistas falarem do passado, do paraíso brasileiro de pleno emprego, programas sociais, investimentos em cultura e educação, é impossível entender o motivo de tanta revolta acumulada. Mas a realidade do Brasil não era bem essa. Quase uma década de altas taxas de crescimento não haviam mudado as condições estruturais do Brasil. Com um emprego precário, programas sociais e crédito farto, os pobres puderam acessar o consumo como nunca antes. Porém, na favela o esgoto continuava lá, correndo a céu aberto e a polícia seguia matando, continuávamos nos esmagando no transporte público, pagando altas tarifas, enquanto jorravam bilhões e bilhões para as obras do PAC, para os cofres das construtoras, do agronegócio e os enormes e luxuosos estádios da copa estavam sendo construídos com a expulsão de dezenas de milhares de pessoas das suas casas. O PT no governo nunca deixou de ser fiel aos interesses dos grandes especuladores imobiliários, dos bancos, do agronegócio. Em junho de 2013, Alckmin e Haddad iam para a TV dizer que os jovens que protestavam eram uma minoria violenta, que não expressa a vontade popular, enquanto davam as mãos, em nome da governabilidade, aos Maluf, Sarney, Felicianos, Severinos e tudo o que existe de mais abjeto na política brasileira. Eram os tempos em que Bolsonaro estava no PP de Paulo Maluf, o velho político da ditadura, que por sua vez havia passado a integrar a base de apoio de Lula…

De maneira inesperada para todos, aqueles jovens reprimidos até a exaustão pela polícia de Alckmin, de um momento para o outro se converteram nos grandes heróis e redentores do país, mais confiáveis aos olhos de milhões do que Haddad, Alckmin, Dilma e do que qualquer político, inclusive Lula. A virada se deu ao vivo, em rede nacional, no programa do Datena. Enquanto a polícia reprimia brutalmente os manifestantes na Av. Paulista, naquela quinta-feira, 13 de junho, Datena vazia uma enquete no seu programa “Você é a favor desse tipo de protesto?”. Quando ele vê que está ganhando o sim, apela “eu sou contra”. Continua perdendo. Inconformado, muda a pergunta, diz que o pessoal não está entendo. A enquete passa a ser “você é a favor de protestos com baderna?”. Ganha de novo o sim. Datena assevera “o povo está p. da vida mesmo, está contra o aumento, apoia qualquer tipo de protesto”. Junho chegou no seu ponto de virada assim: com o público do Datena apoiando a baderna da juventude que contra a repressão policial e o aumento da tarifa se rebelava. Tudo o que parecia sólido na política brasileira estava desmoronando. Nada disso foi programado ou sequer era esperado pela grande mídia, pelos militares, pela Cia. Nenhuma teoria da conspiração explica a rebeldia da juventude que inflamou o país em junho e abriu uma oportunidade desaproveitada pela esquerda. Mas todos tomaram nota da grande mudança que se operava na política brasileira e readequaram rapidamente, assim como Datena, sua estratégia. Uma vez que as ruas iriam determinar o futuro do país, se jogaram com toda a força na sua disputa.

Uma mobilização capturada pela direita?

Para o PT tudo o que foge ao seu controle é por que foi capturado pela direita. Mas é completamente interessada, para o dizer o mínimo essa versão de junho como um movimento capturado pela direita. Depois dessa virada com a repressão em São Paulo as manifestações se massificaram e milhões foram as ruas na semana seguinte. Foi como se todas as vozes até então caladas se expressassem nas ruas. Na Av. Paulista as classes médias foram as ruas como nunca antes, mas não se pode tomar o conjunto dessa revolta pelo perfil social dos manifestantes da Av. Paulista.

Todas as pautas vieram à tona, mas o transporte muito para além dos vinte centavos permanecia como ponto central. Se juntava a revolta contra a ostentação dos estádios da copa, enquanto transporte, saúde e educação caiam aos pedaços. Brotaram, no entanto, outras demandas. As plaquinhas contra a PEC 37, que diminuía poderes de investigação do ministério público brotou como cogumelo em todas as manifestações, movimentos como MBL, Vem Pra Rua e Revoltados online ganharam força, grupos de extrema direita também aproveitaram o momento para aparecer disfarçados de apartidários e antipetistas.

A crise capitalista, cujos efeitos econômicos o PT tinha conseguido até 2013 empurrar adiante, chegou ao Brasil pela via das mobilizações de massas. Junho foi, com todas as suas particularidades, um movimento influenciado pelos processos revolucionários no Egito e na Tunisina, pelos indignados do Estado Espanhol, pelo Ocuppy Wall Strett nos EUA. Com ele explodiram os mecanismos de contenção social pactuados na constituinte de 1988 e do sistema político apoiado na polarização entre PT e PSDB. O PT mostrou a incapacidade de conter os movimentos a sua esquerda e o PSDB viu surgir uma nova direita, ou ressurgir uma velha extrema direita sob nova roupagem que ele também era incapaz de conter. A necessidade de um novo arranjo se fez sentir, mas o sistema político necrosado não foi capaz de produzir nenhuma alteração.

Junho também foi a expressão de um acumulo de processos de experiência em vários setores da juventude e a expressão maior de um processo de insatisfação que já vinha mostrando alguns sinais. A luta contra os aumentos das tarifas e pelo passe livre vinha de longe, já da época do governo FHC, mas no início do lulismo estouraram duas revoltas, em Florianópolis e em Salvador que eram a referência para os movimentos pelo transporte no Brasil. Nas universidades também um setor do movimento estudantil vinha de um ciclo de intensas mobilizações, desde a ocupação da reitoria da USP em 2007, até a luta contra a PM e a prisão dos 73 em 2011. Também no movimento operário, muito mais controlado pelo PT, haviam sinais fortes de insatisfação e de crise de legitimidade das direções tradicionais. O maior deles foi sem dúvida o ciclo de greves nas obras do PAC, cuja principal reivindicação, é bom recordar, era pelo direito de retornar para casa, e por isso os operários da obra da usina de Jirau, no meio da selva amazônica, incendiaram os alojamentos e atropelaram a direção do sindicato. Num dos vídeos dos alojamentos incendiados que viralizou na época um operário dizia: “isso aqui virou Canudos”.

Com o recuo de Haddad e Alckmin, que foram a TV juntos para anunciar que voltariam atrás no aumento, a disputa nas ruas se intensificou. A extrema direita, organizada em torno de bandeira apartidárias passou a atuar ofensivamente para expulsar as organizações de esquerda dos atos. A esquerda blocou com o PT, que aparecia alinhado ao PSDB. O MPL nesse momento deu um passo atrás e parou de convocar manifestações e a esquerda organizada foi incapaz de dar uma resposta à altura. Mas apesar do golpe sofrido nas ruas, junho não foi capturado pela direita. Na sua sequência uma série de movimentos se aprofundaram, os movimentos feministas, os movimentos antirracistas e contra a violência policial e uma série de outros movimentos. A classe operária, que não interviu como classe organizada nos protestos, o que teria certamente mudado o seu curso, passou a protagonizar algumas das greves mais fortes e radicalizadas das últimas décadas.

Revolta e revolução

Junho teve o mérito de levar a política de volta para as ruas, esvaziadas pelo lulismo, de revelar a enorme indignação que existia do país com um sistema político podre e com os governos petistas, que em nome da governabilidade satisfaziam os apetites vorazes do centrão, dos evangélicos, dos militares, do mercado financeiro e do agronegócio. Sob o impacto de junho, o movimento operário, em greves históricas, trouxe para cima do tapete a falta de legitimidade das direções sindicais. Todos esses questionamentos atingiam em cheio a direita, mas também as alianças do PT com essa direita. Mas nem depois de junho o PT rompeu com a direita. Muito mais esperta foi a direita que começou a preparar a ruptura com o PT, pois este partido foi útil para as classes dominantes enquanto serviu para controlar a passivizar a juventude e a classe trabalhadora.

As organizações de esquerda a esquerda do PT, especialmente o PSOL e o PSTU não estiveram à altura do desafio lançado por junho. Não por motivos pontuais e táticos, como geralmente se discute nos balanços que apresentam. Junho demonstrou, à sua forma, a falência estratégica também da oposição de esquerda ao PT, que foi incapaz de oferecer uma alternativa a esquerda do PT. Nas questões fundamentais, se subordinou. Durante as manifestações, acordou os blocos com o PT, enquanto se subordinava a política da CUT de frente a pressão das bases convocar uma paralisação… em julho, ou seja, foram parte de legitimar a ação das centrais para impedir que o movimento operário entrasse em cena.

As tarefas que junho colocou, não poderiam ser resolvidas através de revoltas populares ou de pressão parlamentar. A entrada em cena do movimento operário com suas demandas colocaria outra dinâmica para o movimento, combinadas com a realização de assembleias por local de estudo para votar reivindicações e um plano de luta e com coordenações democráticas da luta, para evitar a entrada da direita, poderiam abrir uma dinâmica pré-revolucionária a partir da explosão inicial. As assembleias nas escolas e faculdades, nos locais de trabalho e estudo, organismos de coordenação democrática da luta a nível local e nacional, eram ferramentas fundamentais que a esquerda organizada pudesse influir decisivamente nos rumos do movimento, e suplantar a ação da mídia, dos think thank imperialistas, da nova direita, dos grupos fascistas. Saúde, educação, transporte, os privilégios dos políticos, racismo, todos os problemas que junho trouxe à tona não poderiam ser resolvidos nem pelo PT, nem por pressão no sistema político.

A prova inequívoca de como Junho girou toda a situação a esquerda, é que apesar de tudo que disse o PT contra junho, as urnas deram vitória a Dilma em 2014, com um discurso mais voltado para a esquerda, prometendo que não iria fazer o povo pagar pela crise. Uma vez vencido a eleição, Dilma simplesmente rasgou seu discurso de campanha e cedeu ainda mais posições para a direita. Junho abriu possibilidades de ir muito além do que foi permitido no arranjo de forças reacionário da Nova República. Quem sufocou essa possibilidade foi o PT, se alinhando com setores da direita contra junho, atacando a classe trabalhadora e a educação depois de ter jurado em campanha que não o faria. A direita usou primeiro o PT mais uma vez para conter junho, antes de desencadear a ofensiva contra o PT que levou ao golpe institucional de 2016.

As lições de junho seguem vigentes na luta contra Bolsonaro e o regime do golpe

O PT usa junho como um espantalho para fortalecer sua estratégia institucional de retorno ao governo, mas ao contrário, as jornadas de junho de 2013 são a prova mais cabal da falência dos pactos com a direita para obter governabilidade, que se traduzem hoje na política de desgastar o máximo possível Bolsonaro para vencer em 2022 com a aliança mais ampla possível. Quem espera dessa política uma derrota da direita vai se decepcionar. Em 2013 o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara era nada menos do que o pastor Marcos Feliciano, graças ao apoio petista, para pegar um exemplo simbólico entre tantos que poderiam ser citados. Semana passada, frente ao pronunciamento dos comandos militares e suas ameaças golpistas Lula não só se calou, como deu declarações conciliatórias. São mostras de que qualquer pacto que garanta a posse de Lula em 2023 será muito mais conservador, restringido e sujeito a tutela militar do que aquele feito nas eleições de 2002, da “carta ao povo brasileiro”, em o PT se comprometeu a respeitar os interesses do mercado.

As mobilizações de rua em 2013 romperam a estabilidade daquele pacto conservador, como podem romper a estabilidade desse sistema político decadente que está se constituindo desde o golpe institucional de 2016 e que cada vez mais mostra sua cara golpista e bonapartista. Mas não essas manifestações comportadas e controladas pelo PT que podem fazer isso. Um dos principais limites hoje para que as manifestações possam ser mais do que apoios à política eleitoral do PT é que toda a esquerda tirou as conclusões contrárias do que deveria ter extraído de junho. Ao contrário de mais independência em relação ao PT para combater a direita, aprofundou o caminho de subordinação e apoio a linha petista. A falta de uma oposição radical ao governo Bolsonaro, tão radical quanto o desafio lançado por esse governo, visível aos olhos das massas, é parte do que explica que diante de tamanha e prolongada crise política e disputas cada vez mais acirradas entre os de cima, os de baixo ainda não tenham se colocado em movimento.

A recente greve dos ferroviários em São Paulo escancarou o quanto está sendo criminosa a política petista, ao dividir e enfraquecer a greve (a CPTM em São Paulo é dividida em três sindicatos, e somente o da CUT não aderiu a greve desse 15/07), numa situação em que o apoio ao governo ainda é forte, mas é cada vez mais minoritário e as condições econômicas, no marco de uma breve recuperação, segue sendo terrível e sufocante para as massas. Um polo que surgisse levando a exigência de assembleias e de uma greve geral contra Bolsonaro e Mourão para cada categoria, que denunciasse a política petista, divisionista do movimento de massas e de pactos com a direita poderia ajudar na reaglutinação da vanguarda operária e estudantil poderia ser um fator da correlação de forças nacional.

Junho e a questão da luta por uma Assembleia Constituinte livre e soberana

A medida retórica que o governo Dilma tentou para dar alguma resposta a junho foi a de uma Assembleia Constituinte exclusiva, uma proposta já limitada que nunca foi posta em pratica. O discurso era de uma constituinte ainda mais limitada que a de 1988, para modificar apenas o sistema político. As grandes demandas populares de junho, com a dos transportes que colocava em questão a estatização dos transportes públicos sob controle dos trabalhadores e usuários, sequer foram colocadas para discussão nessa proposta de constituinte exclusiva. Mas nem essa autoreforma limitada do regime de 1988 foi tentada pelo PT, que, como dissemos, mesmo depois de junho continuou apoiando a direita que depois daria o golpe institucional.

Agora da constituição de 1988 resta pouco. A direita não usou nenhuma constituinte para avançar com suas reformas e privatizações. Ao contrário, avançou com um golpe institucional, uma eleição manipulada, e uma crescente tutela militar sobre o sistema político. As manipulações do discurso petista sobre junho serve para pavimentar o caminho de um acordo que permita que Lula governe, já não no sistema político de 1988, mas aceitando as condições do golpe institucional e a aberta tutela militar. O impeachment seria uma variação neste mesmo caminho estratégico. Contra o crescente militarismo, o avanço das privatizações e das reformas colocamos a necessidade de que a classe trabalhadora seja a maior embandeirada dos direitos democráticos de todo o povo, encabeçando a luta por uma Assembleia Constituinte Livre e Soberana.


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Thiago Flamé

São Paulo
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