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Paralimpiadas Rio 2016 | O falso legado: entre a segregação e a inclusão de nossos dias

Qual o legado Paralímpico, do ponto de vista de alguém que vem estudando a inclusão das pessoas com deficiência há algum tempo?

terça-feira 20 de setembro de 2016 | Edição do dia

“O que nos faz humanos?” Este foi o questionamento que os idealizadores do maior evento paraesportivo do mundo fizeram a si mesmos e ao público durante a Cerimônia de Abertura dos Jogos Paralímpicos 2016. Após assistir ao espetáculo, presencialmente, ali no Maracanã e envolta de um mar de emoções, eu mesma tentei responder essa questão. O que nos faz humanos? Repetiria, ainda, muitas vezes essa pergunta. Os produtores do evento encontraram uma resposta: o coração. E eu? Ainda não sei.

No feriado de Independência do dia 07 de setembro, o Brasil, representado pela cidade do Rio de Janeiro, foi o palco de uma grande festa de celebração do esporte Paralímpico, a primeira da América do Sul, o que, de certa forma, marcou, também, nossa independência como anfitriões desse megaevento. Não tratarei aqui da polêmica discussão sobre sediar ou não um evento dessa magnitude em um país fortemente marcado, ainda, pela desigualdade social, mas o fato é que ele aconteceu e irei dedicar-me, então, a uma humilde análise sobre o tão falado legado Paralímpico, do ponto de vista de alguém que vem estudando a inclusão das pessoas com deficiência há algum tempo, tema, este, central na Cerimônia em questão.

Contudo, deixo claro meu anseio por ouvir das pessoas com deficiência suas próprias análises, logo, começo minha crítica afirmando que nossa sociedade carece de maior protagonismo das pessoas com deficiência nas questões da deficiência. Se, por um lado, acredito que a existência dos Jogos Paralímpicos simboliza, por si só, uma grande conquista do direito das pessoas com deficiência ao esporte, por outro, parece-me muito problemático um evento que foi quase totalmente planejado, organizado, executado e (não) divulgado por pessoas sem deficiência. Desde os produtores até os artistas que se apresentaram naquela noite, poucos eram, de fato, pessoas com deficiência e o que deveria ser uma comemoração das pessoas com deficiência para as pessoas com deficiência e demais, acaba não cumprindo seu papel. A luta pela representatividade vem sendo bastante disputada no seio de movimentos sociais por grupos que lutam por seus direitos e, hoje vemos um cenário no qual cada vez mais os negros, as mulheres, os LGBTs e os indígenas, para citar alguns, reivindicam espaço e visibilidade por meio do empoderamento de seus próprios representantes. No campo acadêmico, as discussões advindas das teorias “pós” contribuíram para aprofundar os debates sobre identidade e diferença e aumentaram enormemente o número de publicações sobre teoria dos gêneros e discussões etnicorraciais. Porém, não observamos um avanço proporcional na luta das pessoas com dibersidade funcional.

Ao dizer que não identificamos um avanço proporcional na luta das pessoas com deficiência em comparação a outros grupos sociais, não quer dizer que ela não exista, mas que está muito aquém do que pensamos ser necessário e fundamental. Desde 1994, com a Declaração de Salamanca, observamos uma série de políticas inclusivas que buscaram garantir os direitos mais básicos das pessoas com deficiência em diversas esferas sociais, como a luta pela acessibilidade nos transportes e locais públicos, pelo direito ao trabalho e pela escolarização, porém, os desafios ainda parecem ser monumentais. Um desses desafios é a própria participação das pessoas com deficiência na tomada de decisão sobre as políticas que dizem respeito à sua própria condição. Por sua vez, no campo teórico, aquelas mesmas teorias “pós”, responsáveis por uma ampla produção de conhecimentos referentes às lutas identitárias de grupos sociais marginalizados, pouco ou quase nada produziram sobre as identidades das pessoas com deficiência como um grupo social.

Voltando ao cenário esportivo, as Paralimpíadas podem, sim, ser entendidas como uma forma de demarcar um espaço que passou mais de meio século no esquecimento, se considerarmos a data de início dos Jogos Olímpicos da Modernidade. A partir do momento que se instauraram os Jogos Paralímpicos, em 1960, os atletas dotados de corpos perfeitos e, incessantemente comparados a herois ou até a super-heróis, teriam que ceder espaço a outros tipos de corpos, os corpos imperfeitos produtos da deficiência que, no Esporte, passariam a simbolizar não mais o prejuízo e a ineficiência, mas, sim, a superação. Pelo menos no mundo do Esporte. Por essa razão, poder assistir a um espetáculo esportivo de tão grande relevância e dedicado às pessoas com diversidade funcional é um avanço em termos de visibilidade desse grupo, uma vez que a sociedade pode olhar, muitos pela primeira vez, de outra forma para a deficiência, talvez substituindo o tradicional sentimento de pena por um sentimento de curiosidade, interesse e orgulho, não necessariamente nessa ordem.

Dessa forma, os Jogos merecem ser prestigiados e seus atletas aplaudidos, afinal, esse espaço foi conquistado após árduas lutas por direitos. Porém, não podemos cair na ilusão de pensar que as vitórias dos Jogos signifiquem a conquista da tão aclamada inclusão social. Explico. O primeiro ponto de minha argumentação está relacionado ao abismo que entremeia os princípios envolvendo as Paralimpíadas e o próprio conceito já banalizado de inclusão. Banalizado, pois, a todo o momento ouvimos falar de inclusão, a partir de diversas interpretações. Aqui, irei referir-me ao termo de forma simples e cotidiana, partindo do princípio que uma sociedade inclusiva seria aquela que possibilitasse a convivência entre todas as pessoas pertencentes à determinada comunidade, e que garantisse o acesso igualitário entre todos os seus membros aos direitos básicos dos cidadãos. Ou seja, uma sociedade sem exclusões de qualquer tipo. Seguindo essa linha de pensamento, para que as Paralimpíadas deixassem um legado de inclusão, como tanto mencionou-se durante a Cerimônia de Abertura, nas falas de influentes personagens nacionais e internacionais, os Jogos deveriam, minimamente, ser realizados de modo a garantir que todos os atletas, com ou sem deficiência, estivessem juntos, convivendo durante o período das competições e compartilhando os mesmos ambientes, as mesmas emoções.

Neste momento de minha argumentação, não tenho a mínima pretensão de induzir ao pensamento de que ambos deveriam competir juntos, pois isso demandaria outro tipo de discussão que, talvez, não daríamos conta nesse momento, já que o mais básico dos princípios da inclusão, o da convivência, não está sendo sequer atendido. Parece-me um absurdo a existência de dois Comitês distintos que não dialogam, um tratando exclusivamente de esportes e atletas Olímpicos e o outro de esportes e atletas Paralímpicos. Nem mesmo a criação do Comitê Rio 2016, associação civil de direito privado, criado para promover, organizar e realizar os Jogos Olímpicos e Paralímpicos deu conta de unir algo que essencialmente já havia sido concebido separadamente. Com isso, quero dizer que há uma notável diferença na forma com que os Jogos Olímpicos e Paralímpicos são entendidos e executados, o que, certamente, reflete a diferença de valorização entre ambos. Como diferenças principais, temos a necessidade de adaptação dos locais de competição para os atletas e público com deficiência, o que é incoerente com a ideia de Desenho Universal, princípio fundamental do paradigma da inclusão; a concepção de públicos diferentes para os eventos, já que poucos foram aqueles que tiveram a oportunidade de participar de ambos, devido ao intervalo de mais de duas semanas entre eles; a própria concepção das Paralimpíadas, que já é realizada de modo a reduzir seu tempo deduração, tendo os Jogos Paralímpicos cinco dias a menos que os Jogos Olímpicos; assim como a duração da Cerimônia de Abertura, visivelmente menor, em tempo e produção artística, do que a cerimônia Olímpica. E não podíamos esquecer do total descaso da mídia em realizar a cobertura do evento Paralímpico, que sequer acompanhou os trajeto percorrido pela Tocha, como fez durante as Olimpíadas.

Sendo assim, parece-me um absurdo gastar tempo e dinheiro (muito dinheiro) com a organização de dois megaeventos que ocorrerão no mesmo lugar e em um período muito próximo, segmentando os esforços e o público que irá prestigiá-los. Aliás, aqui os absurdos não faltam. Além de já ser um exemplo de extremo segregacionismo a existência de dois Comitês e duas comemorações distintas, ainda há a proibição do uso da marca Olimpíadas para tratar do universo das pessoas com deficiência, o que culminou na mudança gramatical do termo anterior Paraolimpíada para a atual Paralimpíada. Com isso, sequer o Olimpismo, o fenômeno que representa os valores olímpicos, fazem mais sentido, uma vez que, de acordo com o Comitê Olímpico Brasileiro, essa filosofia tem por objetivo “contribuir na construção de um mundo melhor, sem qualquer tipo de discriminação, e assegurar a prática esportiva como um direito de todos”. Sendo assim, qual pode ser a coerência do termo não poder tratar do movimento esportivo relacionado às pessoas com deficiência?

Deveríamos, então, cunhar o termo Paralimpismo? Se pensarmos que o Esporte Paralímpico trata de um fenômeno completamente distinto e que as experiências das pessoas com deficiência são igualmente diversas daquelas vividas pelos atletas sem deficiência, talvez isso faça sentido. Mas o que me gera tamanho incômodo é que não nos utilizamos do mesmo tipo de raciocínio para tratar das experiências olímpicas vivenciadas por mulheres, por negros, por refugiados, por LGBTs e assim por diante, mesmo que estes também representem grupos sociais distintos, com marcas identitárias e histórias de vida igualmente distintas. Fazer isso seria um tremendo absurdo aos olhos de todos e seria imediatamente condenado como uma forma de segregação. Mas nós não pensamos assim em relação às pessoas com deficiência, muito pelo contrário, nos sentimos muito confortáveis com a ideia de haver dois eventos diferentes, afinal, “como seria possível proporcionar estrutura adequada para ambos ao mesmo tempo?” E, assim, escondidos atrás do argumento estrutural e logístico dos Jogos, o Olimpismo passa a não ser mais um direito de todos.

O que, então, representaria o Olimpismo? Uma experiência relacionada apenas ao homem “perfeito” branco? A História já nos mostrou o caminho que esse tipo de pensamento nos leva. Na mesma lógica, os atletas com deficiência devem ser chamados de para-atletas, refletindo uma incessante necessidade de marca-los com o rótulo que deixa explícita a diferença entre um tipo e outro de atleta. “Não são atletas, são para-atletas”, uma das falas que mais ouvi durante esse período em que, de uma forma ou de outra, mais pessoas estão tendo contato com o universo esportivo das pessoas com deficiência. Identidade ou estigma? Para-atletas para enaltecer sua superação ou para demarcar sua condição? Alguns irão identificar-se com a primeira condição, acreditando que, ao utilizarem essa nomenclatura estarão valorizando o esforço de pessoas que já sofreram tanto em suas vidas. O prefixo para teria uma efeito, então, de indicar que mesmo tendo alguma deficiência, conseguem ser atletas. Outros também irão escolher a primeira condição apenas e unicamente pela incrível necessidade que temos de enxergar as diferenças em todos aqueles que são “os outros”. A diferença nunca está em nós. Assim, se “eles” não são iguais a mim, não podem ser chamados da mesma forma. Muitas pessoas com deficiência, inclusive, vão querem demarcar sua condição com o uso do termo “para”, seguindo a lógica da sociedade na qual estão inseridos.

Neste momento, acredito que os apontamentos trazidos nesse texto apenas refletem as formas de exclusão de nossa sociedade e a incessante necessidade de delimitar fronteiras e, com isso, marcar posições de poder e privilégio. Marcar quem pode e quem não pode ocupar determinado espaço. Como diria Veiga-Neto, o que está por trás da proteção linguística politicamente correta é a expiação da culpa por naturalizar toda a violência que advém dessa marginalização. A partir de tudo o que foi dito, o que pode haver de inclusivo nessa realidade, uma vez que a própria genealogia e terminologia da palavra nos mostra a origem sectária que originou o esporte Paralímpico? Mas os discursos que marcaram a abertura do evento caminharam por outra direção. A começar pela fala de Sir Philip Craven, Presidente do Comitê Paralímpico Internacional, entidade que governa mundialmente o Movimento Paralímpico. Ele relembrou a primeira edição dos Jogos, afirmando que o histórico dos Jogos culminaram na transformação de atitudes relacionadas às pessoas com deficiência. Em suas palavras, “atualmente, os Jogos Paralímpicos são o evento esportivo mundial número um em termos de estímulo à inclusão social, uma posição, estou certo, que podemos fortalecer aqui no Rio graças ao desempenho dos atletas Paralímpicos”. Disse, também, que espera que “esta edição seja apenas o começo de um processo que irá tornar as sociedades do Brasil e da América do Sul mais igualitárias para todos”. Como poderia? Da mesma forma, o presidente do Comitê Rio 2016, Sr. Carlos Nuzman afirmou que “os Jogos Paralímpicos trazem a esperança de um mundo onde todos estejam ligados por um sentimento ímpar, com um único coração batendo, em cada um de nós” e revelou que “organizar os Jogos Paralímpicos foi uma oportunidade para que o Rio se transformasse e colocasse a inclusão e a acessibilidade em pauta diária [...], deixará efeitos duradouros no Rio e no Brasil”. Os argumentos anteriores já colocaram em xeque estas noções.

E, então, retomo a questão inicial, para a qual ainda não tenho uma resposta, mas penso que a questão central não deveria ser “o que nos faz humanos?”, mas, sim, “o que nos aproxima como humanos?”, uma vez que já percebemos que não basta sermos humanos para sermos respeitados e termos nossos direitos garantidos. Assim, ser humano não significa ser tratado de forma igual. De fato, precisamos nos debruçar em solucionar outras questões que garantam o exercício da cidadania plena por todos. Olhar para as pessoas com deficiência com o olhar da superação pode funcionar no universo do Esporte, mas, no cotidiano da vida, na qual nem todos serão capazes de se superar a todo instante e quebrar recordes, há de se exigir políticas que garantam o simples direito de ser quem se é. De fato, os Jogos Paralímpicos deixaram um legado, que não foi o da inclusão social, mas, sim, o da constatação de que ainda há muito a ser debatido no que tange ao universo da inclusão das pessoas com deficiência. Resta saber se teremos interesse político de solucionar essa questão durante o próximo Ciclo (Para)Olímpico.

Aline Toffoli Martins é formada em Educação Física pela Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo e Mestranda em Educação Especial pela Faculdade de Educação da USP




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