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O dia mais sangrento do golpe em Mianmar e os amigos do Tatmadaw

Centenas de manifestantes foram assassinados pela repressão no dia da principal demonstração militar dos golpistas de Mianmar. Um macabro espetáculo reacionário, prestigiado por Rússia, China, Índia e outros 4 países. Porém, cada funeral vira um ato político de milhares contra o golpe.

quarta-feira 31 de março de 2021 | Edição do dia

O domingo no Mianmar foi marcado pela brutalidade dos golpistas, que levavam adiante o terror nas ruas enquanto observavam a parada militar em uma demonstração de forças com seus aliados. O 27 de março, antigo Dia da Resistência Antifascista, foi convertido em Dia das Forças Armadas durante a última ditadura militar no Mianmar, como forma de eliminar a memória do movimento operário e das esquerda na resistência ao imperialismo japonês na 2ª Guerra. Por ironia da luta de classes, a bandeira antifascista é novamente levantada, dessa vez contra o regime golpista do Tatmadaw através das ruas e da hashtag #AntiFascistRevolution2021 nas redes sociais.

Os protestos generalizados contra a junta militar foram atacados por uma repressão sangrenta, que abriu fogo até mesmo sobre manifestações em memória dos mortos nas ruas pelo regime, somando mais de 2600 pessoas presas e elevando o número de assassinados pelo Tatmadaw para acima de 500 pessoas desde o golpe. Isso porque o oficialato golpista treme diante da resolução que as massas de trabalhadores, jovens, mulheres e etnias oprimidas apresentam contra o regime, paralisando o país e não saindo das ruas após dois meses.

O show fúnebre de 27 de março foi promovido pelo general Min Aung Hlaing, comandante do Tatmadaw, vestido em terno branco e prestigiado pelo Ministro da Defesa da Rússia e diplomatas de China, Índia, Bangladesh, Laos, Tailândia, Paquistão e Vietnã. Se a presença no desfile reforça o apoio ao regime, principalmente diante da repressão nas ruas e da crise política que ameaça converter-se em guerra civil no maior prazo, qual o interesse dessas outras forças na ditadura de Mianmar?

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As pastas de defesa da Rússia e do Mianmar estreitaram seus laços nos últimos anos, com Moscou fornecendo treinamento, bolsas de estudos e vendendo armas para o Tatmadaw. Não surpreende que a indústria bélica putinista lucre diretamente com os mortos na luta contra o golpe e na repressão contra grupos étnicos e dissidentes no interior do Mianmar, evidenciando quão desprezível e reacionário é seu regime autoritário.

No caso da China, já vimos aqui os interesses que possui no país vizinho, com diversos investimentos e parte importante de seus projetos regional e do Belt and Road em risco diante da crise política e social. Xi Jinping, que com os russos já havia abafado a situação no conselho de segurança da ONU e cobrado do Tatmadaw o fim dos “distúrbios”, diante do incêndio de fábricas chinesas e da revolta nos bairros operários, também moveu suas peças diplomáticas para buscar legitimar o novo regime. Com Rússia, Índia e Vietnã, exigiram a retirada do termo “golpe” e assinaram um novo documento na ONU, supostamente defendendo os direitos humanos no Mianmar.

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Para um setor da mídia burguesa ocidental, que se diz democrática, foi um escândalo o apoio da Índia, que compartilha uma fronteira de 1.600 km com Mianmar. Mas, para qualquer um que tenha lido alguma notícia sobre a Índia nos últimos meses e anos, a atitude parece condizente com a linha de extrema-direita de Narendra Modi. E o próprio exército indiano tem um histórico de cooperação militar com o Tatmadaw contra grupos dissidentes armados na região.

Em 18 de março, o ministro do interior indiano solicitou que os governos da fronteira impedissem o fluxo crescente de refugiados adentrando o país. O governo central também enviou os Rifles de Assam, paramilitares de elite do exército, para bloquear a entrada e deportar os “imigrantes ilegais”.

No entanto, há bastante solidariedade da população com os refugiados nos estados de fronteira, como Mizoram, onde o governo se viu pressionado a pedir que as forças de segurança locais ajudassem os fugitivos de Mianmar a entrar na Índia. Isso porque já existem milhares de refugiados Rohingyas de Mianmar na Índia - mais de 40.000 pessoas que abandonaram a província do Arracão após o massacre promovido pelo Tatmadaw em 2016.

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Outro Estado vizinho de Mianmar presente na cerimônia, que também atravessa uma crise de imigração promovida pelo genocídio étnico e religioso dos Rohingya, é Bangladesh. Lá, no dia 22 mais de 50.000 refugiados rohingya ficaram desabrigados e centenas feridos em um incêndio em um campo de imigrantes, agravando ainda mais a situação miserável a que os que precisam de asilo no capitalismo são sujeitados. A crise com o novo regime militar é tamanha, que mais 3.000 pessoas fugiram para a Tailândia - monarquia vizinha que também é controlada por militares - após o Tatmadaw bombardear vilarejos próximos da fronteira, no domingo 28.

Para se defenderem do problema gerado pela presença de seus diplomatas no desfile do Tatmadaw, os oficiais do governo indiano acusaram outros diplomatas ocidentais e líderes militares de terem tido conversas com o exército de Mianmar em segredo. Um desses países é o Japão, que também mantém interesse e diversos investimentos no país. Como a Índia, o Japão faz parte junto com Estados Unidos e Austrália do Quad do indo-pacífico, uma aliança militar regional parecida com a OTAN. Enquanto Índia e Japão parecem dialogar com o Tatmadaw golpista e genocida, EUA e Austrália se posicionam mais passivamente pela via das sanções econômicas sobre membros da junta militar e empresas que controlam, tática tomada também pela União Europeia e pode se tornar um forte ataque também contra a população de Mianmar.

Tailândia, Laos e Vietnã terem prestigiado a parada militar também é um indicativo de que outro bloco regional, o ASEAN, apresenta divergências em como tratar o golpe militar birmanês. A Associação de Nações do Sudeste Asiático - que além dos 3 países anteriores também inclui Indonésia, Malásia e Singapura - mantém importantes acordos com os EUA e outros países contrários à junta. Mianmar pode ser um agravante para uma maior fragmentação do bloco, que se vê bastante pressionado pela ascensão da China na região.

As atrocidades levadas adiante pelos golpistas são horrendas, mas vêm sendo combustível para o ódio e a determinação das milhares de trabalhadoras e trabalhadores que se mantêm em greve geral nos principais setores do país, paralisando o sistema bancário, os portos, comércios e a indústria. Nas enormes indústrias têxteis, onde 90% dos trabalhadores são mulheres, se encontra uma vanguarda ativa do movimento, que se organiza passando de fábrica em fábrica para chamar seus colegas, sindicalizados ou não, a se unirem às greves e mobilizações contra o golpe.

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Se juntam a elas milhares de estudantes e jovens dos bairros populares, mobilizados primeiro em defesa da democracia contra o golpe e que rapidamente passou a lutar contra a brutal repressão militar. Formam um setor que se enfrenta diariamente com o exército em barricadas, com escudos e armas caseiras, adquirindo uma experiência de autodefesa acelerada pela prática.

A entrada em cena dos setores muçulmanos junto ao movimento de luta contra os golpistas é outro diferencial impressionante da luta em Mianmar. Trata-se de um grande exemplo de unidade contra o discurso nacionalista, xenofóbico e antimuçulmano propagado pelos militares e pela Liga Nacional pela Democracia (LND) da ex-presidenta. Suu Kyi, apesar do nobel da paz, apoiou passivamente a perseguição aos rohingyas durante seu governo e defendeu os militares durante um processo na Corte Internacional de Justiça.

Esse enorme potencial da classe trabalhadora nas ruas, que não retrocedeu após 2 meses de golpe militar e continua a avançar com mais resolução a cada bala disparada, terá que desenvolver seus métodos de organização e autodefesa. Só através de uma alternativa política própria dos trabalhadores é que será possível enterrar a Junta Militar e a herança neoliberal do LND.

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