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CINEMA E DITADURA | O Homem que virou suco

Em 1981, quando estreou "O Homem que virou suco", o cinema brasileiro pôde participar e contribuir, mesmo com a hegemonia televisiva, com debates e discussões acerca da imigração em diversos sindicatos, nas ruas, através da sua exibição em cineclubes, em várias escolas, Igrejas, associações de bairro, etc.

Camila FarãoSão Paulo

sábado 4 de abril de 2015 | 00:00

"Tanta terra ali em volta
Naquela propriedade
E a gente amontoada
Sem terra nem caridade
Numa longa procissão
Rumo à primeira cidade"

-Deraldo, no roteiro original de "O Homem que virou suco"

Em 1981, quando estreou "O Homem que virou suco", o cinema brasileiro pôde participar e contribuir, mesmo com a hegemonia televisiva, com debates e discussões acerca da imigração em diversos sindicatos, nas ruas, através da sua exibição em cineclubes, em várias escolas, Igrejas, associações de bairro, etc.

O tema da imigração na década de 1970 e 1980 foi propício para a sua popularização, porém, a linguagem cinematográfica escolhida contribuiu decisivamente para fazer deste filme um sucesso, tanto internacional – ganhou diversos prêmios, entre eles o Festival de Moscou, um festival do mundo "socialista” concorrente ao Festival de Cannes. Mas, principalmente, seu sucesso reside entre os trabalhadores e a população pobre de São Paulo.

Deraldo, o protagonista, é um paraibano repentista que tenta vender sua poesia em São Paulo. Desse modo, é tratado por todos como vagabundo. Sua situação na cidade grande fica ainda pior quando é confundido com Severino, um trabalhador que matou o patrão. Assim, Deraldo, terá que arrumar um emprego, algo que não esperava ou queria fazer em São Paulo.

"São Paulo era a fartura
A riqueza de todo homem
O paraíso da terra
Pra que morrer de fome
Se o que se faz lá no Norte
É em São Paulo que se come?"

Porém, frente a todo o preconceito que os nordestinos sofrem em São Paulo, Deraldo resiste. Os nordestinos são encarados pela ideologia propagada pela Ditadura naquela época como o personagem Sujismundo: preguiçosos, sujos, sem educação, que precisam se domesticar. E como domesticá-los? Com trabalhos extenuantes, sem proteção, barracos para morar, comida com barata para se alimentar, longe da terra, da família, com o Estado e suas instituições oprimindo-os através da polícia, do sanatório e da burocracia. E a ligação dos militares da Ditadura com o Imperialismo e com a política coronelista nas regiões agrícolas são pano de fundo de tamanha opressão. Por sua vez, a classe média é a porta bandeira desta ideologia.

Em um dado momento, Deraldo vai procurar trabalho nas obras do metrô, é nesta parte do filme que fica evidente como todo o preconceito que existe contra os nordestinos é uma política consciente da burguesia: um engenheiro irá passar um audiovisual como treinamento aos trabalhadores, retratam o nordestino e sua cultura de forma depreciativa, tratam Lampião, o Rei do Cangaço, como um "Herói Ridículo", e cada nordestino sendo igual a ele. O diretor João Batista de Andrade comenta numa reportagem que, para fazer esta cena, ele assistiu o audiovisual verdadeiro da Companhia do Metropolitano de São Paulo e reproduziu da maneira mais fiel possível:

"Fui a uma obra da Camargo Corrêa, se não me engano, e perguntei como eles preparavam as pessoas para trabalhar no metrô, e me levaram para assistir ao audiovisual. Era feito para colocar os imigrantes dentro da nova realidade paulista, no mundo industrial moderno, para transformar e mostrar que a cultura deles é ridícula. Eles destruíam toda a rebeldia deles. Fiquei muito impressionado e cheguei a pedir para a empresa me ceder o audiovisual, mas não consegui, o que prova que sabiam o significado daquilo. Então, baseado no que vi e rascunhei, pedi para uma pessoa desenhar para mim. Reconstruí com muita fidelidade ao audiovisual e criei o nome ‘O Herói Ridículo’." [1]

Dentre tantos combates e dificuldades, resistindo a pelegos, fiscais, madames, policiais, coronéis e patrões, Deraldo vai de encontro a Severino, o funcionário que matou o patrão. Descobre que Severino é um cearense que tentou de todas as formas se enquadrar ao sistema e à indústria para "subir na vida": confiou em seu patrão e "caguetou" seus colegas que armavam uma greve. Foi rechaçado por todos de tal forma que o seu patrão o mandou embora, motivo pelo qual Severino o assassinou.

Assim, o filme passa uma mensagem importante: tanto o nordestino que quer se enquadrar na indústria, como o nordestino rebelde, estão fadados ao subemprego e a sub-cidadania; o preconceito e a discriminação criados ao seu redor são formas de legitimar tamanha exploração.

Deraldo resiste a todo custo e consegue enfim fazer seu cordel "O Homem que virou Suco"; ele tomou consciência de sua própria vida. Fez de sua poesia uma “peixeira” para armar todos os imigrantes que estavam na mesma situação.

Linguagem nova, mundo novo...

Como já foi dito, a linguagem escolhida pelo diretor beneficiou muito o acesso do filme para os trabalhadores. Andrade diz:

"Eu queria uma intervenção e este é um filme que tem tudo a ver com cinema de intervenção. Por exemplo, no refeitório tinha um tronco, que originalmente era uma coisa onde se prendia o laço em criação de gado, e hoje é o nome que dão a um corredor de madeira onde o gado passa apertado. Eu falei para o Zé Dumont [Deraldo] entra lá. Ele vira um boi, começa a bater a cabeça nas tábuas. É impressionante! É a ideia do massacre biológico, da desumanização do personagem. Na sequência, ele entra no refeitório da obra mesmo, os operários que estão ali são reais. Coloquei uma barata no prato do Zé Dumont, então ele está comendo, vê o inseto e dá um murro na mesa. O que eu não esperava é que os operários começassem a virar coisas e jogar os pratos. Todos eles estavam prontos para estourar e apareceu uma chance. Eu crio uma situação ficcional que leva o filme para o mundo documental, para o tema da sociedade. Imigrante do mundo, do trabalho, da identidade cultural, do massacre cultural, da perda de identidade, da sub cidadania, esse é o tema do filme. Eu não consigo fazer um documentário sobre toda a perda de cidadania simplesmente de maneira tradicional. A ideia nasce na minha cabeça de uma outra maneira, a ficção também tem um lugar. Os filmes ‘Greve!’ e ‘Liberdade de Imprensa’, que fiz antes de ‘O Homem que Virou Suco’, foram muito importantes para essa nova filmagem" [2]

O cinema (linguagem industrial) mesclado com a oralidade da poesia de cordel faz deste filme uma grande trincheira para se pensar o papel da arte na sociedade. Tanto Deraldo, que se alimenta de poesia, como o diretor Andrade, que inova o cinema, pensam em seus trabalhos como fruto de uma sociedade e se colocam ao lado dos trabalhadores.

Na época em que o filme foi gravado, a greve do ABC foi determinante para esta nova linguagem. O sonho de lutar para que o proletariado derrubasse a ditadura com seus próprios métodos, assumindo as reivindicações de seus aliados populares do campo e da cidade e se posicionasse na perspectiva da tomada do poder político, também foi compartilhado por Andrade.

Porém, no desfecho da História, vimos uma transição democrática "lenta, gradual e segura" e o PT, como expressão do classismo e combatividade dos trabalhadores, foi homogeneizado pela ala dos "autênticos", a do Lula, se tornando cada vez mais um partido de transição conciliatória, sem modificar a estrutura econômica do País. Resultando, 20 anos depois, num Partido burguês. [3]

Muito melhor seria se Deraldo estivesse vencido com sua poesia na vida real também, mas, por enquanto, foi Severino que representou a nossa História, o nordestino que sonhou ser tão grande quanto o seu patrão e acabou louco numa prisão.


[2idem

[3"A classe operária na luta contra a ditadura [1964-1980]". Disponível em: http://www.ler-qi.org/IMG/pdf/Tesis_70.pdf





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