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O Hip-Hop como contracultura e seu nascimento nas mãos do movimento negro

Nicolás Mansilla

O Hip-Hop como contracultura e seu nascimento nas mãos do movimento negro

Nicolás Mansilla

Assim como outras inovações culturais, o Hip-Hop é produto de momentos de grandes mudanças sociais e políticas. Neste queremos revisar brevemente sua história na década de 1970 como um movimento contracultural.

Durante o final da década de 1960 e o início dos anos 70, o mundo estava atravessando um momento de tensão como resultado da Guerra Fria, da invasão estadunidense ao Vietnã e da crise de 1973.Nesse contexto surge uma nova onda mundial de rebeliões populares e ascensos operários como resultado do levantamento do Maio Francês, onde a juventude junto com a classe trabalhadora entram em cena como um novo ator político em escala global.Grandes inovações culturais foram filhas desse processo. Com novas vanguardas no cinema, arte, literatura, música. Dentro de todos elas, o Hip Hop surge como um movimento contracultural no início dos anos 70 no Bronx, na cidade de Nova York.

O que estava acontecendo nos Estados unidos na época?

Entre o final dos anos 60 e o início da década de 1970 houve grandes intervenções de rua cujos protagonistas eram jovens e trabalhadores: o movimento anti-guerra liderado por aqueles que rejeitavam a Guerra do Vietnã, a segunda onda do feminismo com a greve de mulheres de 1970, a Revolta de Stonewall em que os jovens LGBTs enfrentaram assédio policial e o movimento negro que passava por um de seus momentos de maior atividade.

O movimento negro vivia um de seus momentos de ascensão. Durante toda a década de 60 se desenrolou uma série de revoltas e surgiram grandes personalidades como Malcolm X, Martin Luther King e o Partido dos Panteras Negras que lideraram a luta do movimento por direitos civis. Entre todos os correlatos artísticos e culturais da época, o movimento negro seria um dos principais pilares da fundação do rap, grafite, DJing, Bboy e tudo o que conhecemos hoje como Hip-Hop.

O Bronx, o berço do Hip-Hop

O “Southern Bronx” era um dos bairros operários mais pobres, com maioria de população negra e porto-riquenha. Além do problema estrutural envolvido na segregação racial, o bairro estava passando por uma crise habitacional resultante de obras de infraestrutura, cujo a queda nos preços das propriedades, levou muitos proprietários a incendiar edifícios da cidade a fim de cobrar o dinheiro do seguro.A população trabalhadora branca começou a se mudar para os subúrbios. Foram os imigrantes e os negros - aqueles em piores condições para empréstimos hipotecários - que viveram no Bronx, reconstruindo uma parte da cidade que estava literalmente em ruínas, consolidando assim seu caráter de gueto.

Durante um dos momentos de maior auge do Partido dos Panteras Negras, existiram em diferentes partes do país, organizações e gangues que adotaram seus ideais , bem como também idéias de Malcolm X e da Nação do Islã. Esses grupos originalmente formaram grupos de autodefesa nos guetos contra a polícia, o tráfico de drogas e a violência racial, compostos principalmente de homens e mulheres das comunidades negras e latinas. Em um desses grupos, o mais importante do Bronx, chamado Black Spades, se encontrava um dos fundadores do Hip-Hop: Afrika Bambaataa, um dos líderes dessa organização e um dos ideólogos do movimento.

Na vida cultural de Nova York, havia uma lacuna enorme entre o boom da música disco, como fenômeno mainstream da vida noturna no centro da cidade, e a vida cultural dos negros no Bronx, que eram segregados desses espaços. Naquela época, no início da década de 1970, as gangues nova-iorquinas disputavam o controle de diferentes áreas da cidade e além dos confrontos entre elas, geraram uma série de práticas culturais que começaram a dar identidade a cada um desses diferentes grupos, como suas roupas e o uso do Graffiti, um dos elementos da cultura Hip-Hop.

É então que o DJ Kool Herc começa a organizar festas clandestinas nos edifícios do Bronx, onde participam diferentes membros dessas bandas, festas nas quais se respira um ar totalmente diferente do das discotecas mainstream. Herc surpreenderia a todos com uma nova técnica para tocar os vinis, onde retomaria o que considerava música negra das últimas décadas (como Funk e Soul), dando-lhe um novo toque que caracterizaria por ser uma performance ao vivo, loopeando diferentes partes instrumentais de músicas clássicas adicionando scratching (“arranhar” ou tocar o vinil) e breakbeat (recortar e sincronizar os momentos de "pausa" das músicas originais). Além disso, um M’C (mestre de cerimônias) ficaria encarregado de anunciar o DJ e animar a festa com diferentes frases, rimas e efeitos sonoros, levando às primeiras performances de rap improvisado ou freestyle.

Panfleto das festas organizadas por Kool Herc

É nesse momento que Afrika Bambaataa, líder dos Black Spades, cujo nome veio de Bhambatha, líder anticolonial do povo Zulu, realiza suas incursões como DJ e, posteriormente, o mítico Grandmaster Flash. Juntamente com o pioneiro Kool Herc, eles são considerados a "Santíssima Trindade" que aperfeiçoou e popularizou esta arte.

Nação Zulu: a oficialização do Hip-Hop como movimento contracultural

Até então os quatro elementos centrais do Hip-Hop – o rap freestyle, o DJ’ing, Breakdance e Graffiti - eram vistos apenas como passatempos. Inclusive há muito pouco registro dessa época, sendo obras totalmente improvisadas.

A guerra de gangues começa a aumentar em seu nível de violência.Alguns relatam que isso foi resultado da interferência do Estado nessas organizações, com a introdução do tráfico de drogas pela polícia. Durante os anos da presidência de Nixon nos EUA (1969-1974)começa a chamada "guerra contra as drogas", onde o braço repressivo do estado perseguiu e estigmatizou os consumidores, especialmente os negros e latinos: o crack apareceu como uma droga nos lugares mais vulneráveis, com absoluta cumplicidade policial.

Em 1976, o já DJ e líder de gangue Afrika Bambaataa, depois de um confronto entre duas gangues e a polícia, que levou ao assassinato de seu amigo Soulski, cria o movimento “Universal Zulu Nation” , em homenagem à luta do povo africano. Ele pediu o fim da guerra entre gangues e que os jovens tomassem em suas mãos a arte de rua que eles criaram como seu próprio meio de expressão. A criação dessa organização lutou pelo fim dos assassinatos entre a comunidade negra devido à degeneração das gangues. Foi a primeira vez que o termo Hip-Hop foi usado para designar essa contracultura, composta por seus quatro elementos centrais e criada nos bairros populares de Nova York como um emblema da identidade negra.

Aqui o caráter contracultural do Hip-Hop se aprofunda. Uma vez que a atividade política do movimento negro diminuiu,encontraram por essa via, um canal de expressão e de reivindicação das raízes negras. No auge da música disco muitos negros eram expulsos dos clubes por dançar breakdance, por vestir seu traje de gangue ou improvisar em cima das bases musicais. Se consolida então o caráter de protesto contra a arte mainstream, que de acordo com seus protagonistas, propôs negar as raízes africanas da comunidade negra, com a ideia de "americanizá-las".

O apagão de 1977: o fato que tornou o Hip-Hop um fenômeno de massa

Embora as festas de Hip-Hop fossem muito populares, quase ninguém tinha acesso a consoles modernos, vinis e equipamentos de som para recriar a arte dos três criadores do gênero.É em 14 de julho de 1977 durante um blecaute de 24 horas em Nova York, quando isso dá um salto.

De acordo com o documentário "Hip-Hop Evolution", de Darby Wheeler e Rodrigo Bascunan, durante essa noite de verão, como resultado da pobreza e de uma brutal onda de calor, houve tumultos e saques em toda a cidade. Curiosamente muitos homens e mulheres foram direto as lojas de música e artigos eletrônicos.Nos dias seguintes a cidade estava cheia de dezenas de novas festas públicas e possibilitou o surgimento de novos grupos e rivalidades que levariam o Hip-Hop para outro nível e definitivamente cruzariam a fronteira do Bronx.

Em 1979, atormentada pela polêmica por seu sucesso comercial e por abandonar o formato improvisado, foi produzida a primeira música gravada por um grupo de Hip-Hop.

O início do Hip-Hop com conteúdo social e político

Com a chegada da ofensiva neoliberal do Presidente Ronald Reagan, o aprofundamento da miséria e da decomposição social nas mãos do narcotráfico e boom do crack nos bairros, a banda pioneira Grandmaster Flash the furious five em 1981 cria o que é reconhecido como a primeira letra de denúncia social na história do Hip-Hop. Até então, as letras de rap estavam associadas a temas de festas fiéis às suas raízes.

Com esse hit que mostra como se vive nos bairros populares, onde os negros são "cidadãos de segunda classe", o Hip-Hop começa a se estabelecer como um dos gêneros mais populares, e se abre um novo leque de possibilidades para futuras criações e temáticas relacionadas ao que a grande maioria da classe trabalhadora negra vivia diariamente. Depois disso, haveria dezenas de novos e famosos artistas que se tornariam conhecidos durante a chamada “época dourada”, no final dos anos 80 e inicio dos anos 90, como KRS-One, Wu-Tang Clan, Notorious BIG, NAS, Run DMC, Public Enemy, e na costa oeste NWA, 2pac, entre outros.

O Hip-Hop nasceu das mãos do movimento negro nos anos 60 e 70, como um fenômeno contra a cultura mainstream, para depois se consolidar nas décadas de 80 e 90 como um dos principais canais de expressão do descontentamento social.Com o triunfo do neoliberalismo, que esmagou muitas das conquistas da classe trabalhadora, os negros preservaram essa expressão cultural que se tornaria um emblema de resistência, buscando fortalecer a solidariedade dentro de sua classe, e chegando a torna-se parte da cultura de massa nas próximas décadas até hoje.


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Nicolás Mansilla

Estudante de Sociologia - UBA @nicxmvnsi
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