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Naufrágil: coluna indisciplinada de arte e política

Edição dedicada ao poeta, crítico de cinema e ator Orlando Parolini.

Fábio NunesVale do Paraíba

segunda-feira 20 de fevereiro de 2017 | Edição do dia

Orlando Parolini (1936-1991), "poeta maldito" dos anos 1960 e 1970 associado ao surrealismo e a poesia beat norte-americana, foi pioneiro da contracultura no Brasil. Crítico e especialista em cinema japonês, atuou em filmes de diretores como Carlos Reichenbach. Parolini é praticamente inédito em livro e pouco citado pelos grandes meios de comunicação. Escrevi alguns fragmentos sobre a vida e a obra deste poeta-crítico-ator.

Cinéfilo em SP

Nos anos 1950 e 1960, o jovem Parolini era um assíduo frequentador dos cinemas do bairro da Liberdade - Cine Niterói, Cine Nippon, Cine Jóia e o Cine Nikkatso - onde conheceu figuras como Carlos Reichenbach e Jairo Ferreira, futuros cineastas e críticos do "Cinema de Invenção", também chamado de "Cinema Marginal", surgido nos anos 70 na "Boca do Lixo", pólo cinematográfico que existiu próximo à estação da Luz no centro de São Paulo.

Segundo Alexandre Kishimoto em "A experiência do cinema japonês no bairro da Liberdade" (2009), o clima era mais ou menos assim: filme de samurai, de aventura e de yakusa (máfia japonesa) no Cine Niterói; Keisuke Kinoshita, Yasujro Ozu, Heinosuke Gosho, Yoji Yamada no Cine Nippon; Mikio Naruse, Eizo Sugawa, Akira Kurosawa no Cine Jóia; e Shohei Imamura, Seijun Suzuki, Hiroshi Teshigahara, Nagisa Oshima, a nouvelle vague japonesa, no Cine Nikkatso. Em 1963, depois de muitas sessões nipônicas e estudos, Parolini participa do livro "O Filme Japonês", como membro do Grupo de Estudos Filmicos (GEF).

Cinema de Invenção: "vão me matar, eu sei demais"

Parolini co-dirigiu com Jairo Ferreira o curta-metragem "Via Sacra" em 1965. Em entrevista, o cineasta Carlos Reichenbach, que fez a fotografia do curta, diz que "Via Sacra" foi o primeiro filme underground brasileiro, uma produção muito audaciosa para a época, com cenas de violência e sexo explícito. Reichenbach também relata que após o AI-5 em dezembro de 68 (recrudescimento da Ditadura), Parolini entrou numa paranóia e picotou todo o negativo do filme, restando apenas o registro fotográfico.

Explicador de filme

Em 1966, Mizumoto Kokuro, proprietário do Cine Nikkatso e diretor do jornal São Paulo Shimbun, contratou Parolini para assinar a coluna de cinema do jornal, um dos principais diários da colônia japonesa na Liberdade. A coluna era em português e basicamente falava do cinema japonês e dos lançamentos que ocorriam nas salas de cinema do bairro paulistano. Após alguns meses, Parolini passou a dividir a coluna com o crítico e cineasta Jairo Ferreira até meados de 1967, quando Jairo começou a assinar a coluna sozinho. Jairo escreveu no Shimbun até 1972, neste período, além de comentar os filmes japoneses, transformou a coluna numa plataforma do "Cinema de Invenção". O "Shimbun" não era de massa e o salário dos jovens críticos era ruim, mas eles tinham bastante liberdade para criticar (não essa coisa de falar bem ou falar mal) e desenvolver suas concepções sobre o ato criativo e a produção cinematográfica.

Poeta praticamente inédito em livro

Coletâneas:

Poemas (1957-1961), O Pântano (1964-1968), Cartas da Babilônia (1968-1972).

Romance: Culus Ridendus.

Descrição da Praça da República para a amada
que mora no interior

Orlando Parolini

os lagos de tão rasos
não permitem afogamentos:
se temos fomes
não há que nos alimente
– os peixes
vivem
(de excrementos)

os pombos não nos pertencem
roubá-los será inútil por enquanto
e que valem os pombos para a fome de uma geração inteira?

sedentos
a sede aplacaremos com coca-cola
no bar mais próximo

algumas pontes o contacto estabelecem
entre o vazio e o vazio
sugerindo paisagens que não vivemos

ao meio-dia
se debruçarmos sobre as ferragens
esperando a volta para os estábulos de ar condicionado
nos chamarão de pederastas

estátuas há
que olham para as árvores
contemplando as estátuas

no grande parque infantil
de arame rodeado
crianças são treinadas
como cães de apartamento
a beber nas horas certas
urinar nos w.c.
sem sujar o uniforme

na parte mais baixa se repararmos
sem muita preocupação
agências de turismo aveludadas
casas bancárias de velhas tradições
restaurantes e cafés
lojas de créditos
rodeiam o que mais se salienta no local:

o mictório público
moralmente dividido
para homens e senhoras
não importa a condição

A perdição
Orlando Parolini

porque estou arrependido
de cinzas cobrirei a cabeça
os pés lavarei com água benta carismal
com cacos de telha a epiderme rasparei
porque estou arrependido
a boca encherei de pedregulhos
as costas açoitarei
um cilício na cintura o sexo prenderá
os rins amortecendo
em cruz abertos braços jejuarei
7 dias 7 noites
comendo pão ázimo de judeus
gafanhotos mel
porque estou arrependido
conhecerei a Av. São João
da Cruz ou Evangelista não sei
e na primeira praça pública me despirei
em sinal de humilhação
porque estou arrependido
vomitarei nas portas das igrejas
nos umbrais dos cemitérios defecarei
que tudo é pó diz o Testamento
e se quiserem saber por que estou arrependido
não me perguntem.

– ah, perdida geração,
o último avião passou e nos esqueceram
na plataforma nos deitamos
esperando
esperando
esperando

Parolini e Reichenbach: poesia e cinema

O poeta é uma espécie de ator-fetiche do diretor Carlos Reichenbach. Destacamos aqui quatro parcerias desta dupla "marginal".

"Sangue Corsário" (1979).

Um dos primeiros filmes brasileiros a fazer um balanço da contracultura no Brasil. Perambulando por São Paulo, um bancário (Roberto Miranda, ator-fetiche do diretor) encontra um amigo poeta (Parolini, outro ator-fetiche) com quem viveu os loucos anos da psicodelia. As mudanças econômicas e políticas da época fizeram com que eles tomassem caminhos diferentes. O "sonho hippie" acabou e o poeta esta sozinho, fugindo-combatendo a vida "hope" vendida pelo capitalismo. O amigo bancário "se adaptou ao sistema", virou pai de família, funcionário padrão etc. O clima é de derrota. Mas é importante lembrar que em 1979, ano de lançamento do filme, explodiu o ascenso operário protagonizado pelos metalúrgicos do ABC e do interior de São Paulo. Os bancários realizaram greves importantes na década de 80. Segue o balanço da contracultura no Brasil.

Como mencionado acima, Parolini é um poeta praticamente inédito em livro. Em "Sangue Corsário", assim como em "O Vampiro da Cinemateca" (1979) de Jairo Ferreira, o cinema é o suporte da sua poesia. Parolini fica na fronteira entre a poesia e o cinema, poeta-ator, um performer talvez.

"Império do Desejo" (1980)

Parolini interpreta o personagem Di Branco. Conforme o diretor, um "ex-tudo que liquida à porretadas: proselitistas renitentes, turistas predatórios e bocais de todo tipo".

"Amor, Palavra Prostituta" (1982)

Fernando (Parolini), professor desempregado, sobrevive com o salário de sua companheira, a operária têxtil Rita (Patrícia Scalni). Fernando expressa o intelectual deslocado, cindindo da realidade.

"Filme Demência" (1986)

Fausto, vê sua fábrica de cigarros falir e entra em crise, abandona a esposa, pega um revólver e vaga pela noite de São Paulo onde vai encontrar figuras como o guru Honduras, interpretado por Parolini. O filme é construído a partir da obra "Fausto" de Goethe.

Underground do underground

De vez em quando os "cadernos culturais" da Folha e do Estadão dedicam um espaço para a poesia e o cinema das décadas de 60 e 70, mas dificilmente citam o Parolini. As pesquisas acadêmicas e as publicações especializadas em cinema também poderiam comentar mais. O ensaio "Orlando Parolini: o evangelho segundo o inconformismo e o desespero" de Fabiano Calixto é um dos poucos materiais mais de fôlego sobre o artista que eu encontrei numa pesquisa nem tão rápida na internet. Mesmo entre os "malditos", existem aqueles "mais malditos", ou seja, menos divulgados, praticamente apagados da história.


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