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Opinião | ‘Não Olhe Para Cima’ e o apagamento do sujeito revolucionário

O filme "Não Olhe Para Cima", de Adam McKay, vem tomando os debates nas redes sociais nos últimos dias ao retratar de forma alegórica fenômenos como o negacionismo e as fake news e por gerar identificação nos brasileiros que tiveram de suportar a irracionalidade de Bolsonaro e Cia. no trato da pandemia. Agora, que formas são usadas pela Indústria Cultural para fazer isso? CONTÉM SPOILERS.

quinta-feira 30 de dezembro de 2021 | Edição do dia

No dia 24 de dezembro de 2021, a Netflix trouxe a público a sátira política Não Olhe para Cima, um longa-metragem que trata metaforicamente e não metaforicamente de questões político-sociais como o negacionismo, a operação ideológica burguesa, os governos capitalistas no trato contra a pandemia, e etc. O diretor Adam McKay conquistou a gargalhada de muitos brasileiros, que nos últimos dias produziram uma bateria de memes sobre o filme, por ter criado personagens, como a presidente dos EUA e seu filho babaca, que diretamente nos lembram das barbaridades ditas e feitas pelo clã Bolsonaro nos últimos anos de pandemia, quando sentimos que macacos estavam governando o país (com todo o respeito aos macacos).

Nos marcos de ser um filme que toca em elementos de extrema relevância para o nosso tempo, nesta crítica buscarei mostrar como, apesar desta importante identificação que o público teve com os bizarros governantes de extrema direita e os elementos corretos de crítica à lógica do sistema capitalista, na realidade ele é um discurso da Indústria Cultural que, na tentativa de formalizar o fenômeno do trumpismo (uma corrente de massas de extrema direita nos EUA que se mantém mesmo após a derrota eleitoral do Trump), acaba por apagar o sujeito da transformação social e a luta de classes, fortalecendo dicotomias como Ciência × Negacionismo, Inteligência × Burrice, Democracia × Barbárie, as quais levam a uma saída política de letargia e resignação, uma vez que, então, deveríamos voltar para a lógica burguesa do lucro pintada de vias democráticas (ex.: Democratas), pois ela seria melhor do que lidar com negacionistas da realidade (ex.: Republicanos), sendo conscientemente apagada, portanto, uma saída revolucionária.

Uma Alegoria Pouco Alegórica

Em Não Olhe Para Cima somos apresentados a um enredo em que dois astrônomos de baixo escalão, Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence) e Dr. Randall Mindy (Leonardo DiCaprio), encontram um meteoro “destruidor de planetas” que está vindo em direção à Terra. Após essa descoberta científica, o filme coloca o seu olhar crítico em diversos setores da sociedade, como a casa Branca, encarnada principalmente na figura da presidenta dos EUA, Jaine Orlean (Meryl Streep), que facilmente pode ser vista como uma sátira de Donald Trump; os grandes empresários, personificados na imagem do ganancioso Peter Isherwell (Mark Rylance) que prefere colocar a humanidade em risco para poder lucrar trilhões com os minérios do meteoro; e a imprensa norte-americana, através, principalmente, dos apresentadores de um famoso TalK Show, Brie Evantee (Cate Blanchett) e Jack Bremmer (Tyler Perry), que buscam constantemente alienar o público, tirando o foco do importante e alimentando ilusões paralisantes.

Há aqui, portanto, uma sátira em primeiro lugar da forma como esses setores sociais lidariam, hipoteticamente, frente a uma catástrofe natural de níveis literalmente astronômicos: um meteoro que acabaria com toda a vida do Planeta Terra. Todavia, é também uma sátira do manejo desses setores em relação à atual crise climático-ambiental, à crise econômico-social que estourou em 2008 e até hoje não foi superada e à própria pandemia do Coronavírus, que assola o mundo nos últimos anos e já ceifou mais de 5,41 milhões de vidas.

Agora, aqui é importante vermos que as críticas são feitas em cima de dicotomias que constroem caricaturas, simplificando e distorcendo o debate, e levam, assim, a uma saída política equivocada. Essas dicotomias se dão na forma de: Ciência × Negacionismo; Inteligência × Burrice; Democracia × Barbárie. Mas, afinal, quais os problemas delas? Analisar o fenômeno social do trumpismo, por exemplo, (que no Brasil poderia aparecer na forma do bolsonarismo) por esses primas, nos leva a crer que Joe Biden, por ser supostamente “racional” ou “mais racional” do que Trump, é uma saída para as massas trabalhadoras ao redor do Planeta, quando, na verdade, o que ele fez foi, em poucos meses de governo, bombardear os povos palestinos, promovendo o genocídio desse povo.

Não se trata de dividir os empresários e os governos capitalistas em científicos de um lado e negacionistas de outro, assim como nunca foi uma disputa entre democracia e barbárie: a barbárie é o próprio sistema capitalista que lucra em cima da exploração de bilhões; produz alimento suficiente para todos, e ainda assim 1 a cada 10 pessoas passa fome; um sistema que criou as bases para a existência da pandemia do corona vírus, ao promover criações de animais himuno-deficientes propícios a desenvolverem doenças, e não apresentou um combate eficiente à pandemia, havendo por um lado a carência de respiradores e insumos, enquanto, por outro lado, as empresas automobilísticas continuaram construindo automóveis ao invés de reconverterem a produção, a partir dos próprios materiais que eles já tinham, para oferecer aquilo que a população realmente precisava (o mesmo vale para as indústria da moda que preferiram manter sua produção de bolsas de luxo ao invés de produzirem máscaras).

Uma Caricatura Equivocada

Em um determinado momento do filme, surge o movimento que dá nome à obra: não olhe para cima. São extremistas orientados ideologicamente pela presidente Jaine Orlean a negarem a existência do meteoro. Embora seja abordada a maneira perversa como a imprensa lida com os fatos, levando as massas à cultura do cancelamento, à banalização da vida e diretamente criando mentiras (fake news) para aliená-las, além da perversidade de Jaine e seu clã de conscientemente não falarem do meteoro enquanto ele não os ajudasse eleitoralmente, há uma lacuna disto para o nascimento do movimento negacionista “não olhe para cima”. Tal lacuna, propositalmente construída, caricaturiza esses indivíduos, simplificando e distorcidos os elementos da realidade que os criaram, nos fazendo crer que então o problema seria educacional ou moral/individual, e que se todos fossem devidamente instruídos no pensamento científico (como se ele fosse neutro e livre da ideologia burguesa), então não teríamos de lidar com tal problemática. Portanto, o filme faz uma sátira de um fenômeno social, com um fim em si mesmo, e acaba por reafirmá-lo.

Peguemos o caso brasileiro para demonstrar os perigos de tal visão: o bolsonarismo não nasce por um problema educacional em si. O Bolsonaro é eleito por eleições manipuladas e através das fake news, e o bolsonarismo advém de uma conjuntura política em que o PT, nos seus anos de governo, fortaleceu os setores que futuramente seriam base para Bolsonaro (o agronegócio, a bancada evangélica e os militares, a famosa bancada do Boi, da Bala e da Bíblia), em um país já atravessado por uma profunda crise econômico-social, e onde o único candidato que tinha um discurso aparentemente mais radical e antissistema era o Bolsonaro, nos marcos de uma esquerda totalmente adaptada às instituições e que não apresentou uma saída revolucionária. Ou seja, para entender o complexo fenômeno que deu origem ao bolsonarismo, mas também ao trumpismo nos EUA e a fenômenos muito mais destrutivos e irracionais como o nazismo e o fascismo, é necessário ir além do senso comum e daquilo que a própria burguesia social democrata deseja que acreditemos para que seja ela a nos explorar.

A Completa Ausência de Sujeito Revolucionário

Uma das coisas que mais me deixou agoniado durante o filme, e talvez você tenha sentido isso também, foi sentir que a catástrofe iminente era inevitável e que nada poderia ser feito senão confiar na Casa Branca, ou na ONU, ou na coligação entre China-Índia-Rússia para salvar a vida na Terra. Não há a presença de um sujeito transformador no enredo. Mesmo os cientistas, que são os protagonistas e são bem mais sensatos do que os demais personagens, no final do filme estão sentados à mesa com a consciência limpa de que tentaram ao máximo impedir o extermínio, enquanto tudo é destruído. Todo mundo, independente do "lado", é reduzido a meros espectadores da barbárie capitalista e de seus governos. Logo, a máxima de que hoje é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo nunca esteve tão clara quanto nesta película.

O filme não apresenta a questão de que, por exemplo, quem constrói cada um dos foguetes, computadores, respiradores, naves, drones, satélites e quem também opera cada uma dessas máquinas, são os trabalhadores. A partir do momento em que os capitalistas não querem mais destruir o meteoro porque estão preocupados em extrair os minérios dele por conta do lucro, então a classe trabalhadora deveria assumir o controle do centro operacional e apertar o botão para salvar a vida no planeta.

Essa possibilidade é totalmente apagada, e com ela a luta de classes também. As poucas cenas em que vemos algum nível de radicalização das massas, ela é posta de maneira isolada e carente de um conteúdo político que possa direcionar à vitória e à unificação de toda classe para o objetivo em comum. Agora, mesmo que pela negativa, no filme fica mais claro do que nunca que os interesses de toda a humanidade estão cada vez mais subordinados aos interesses da classe trabalhadora, uma vez que o planeta só foi destruído pois quem estava na direção do processo era a burguesia, e não os trabalhadores, e se estes tivessem entrado em cena, teriam não só se salvado, como também a toda vida na Terra.

O Fantasma do Comunismo Nunca Esteve Tão Vivo

Por fim, gostaria de entrar em um elemento que no filme não tem muito peso ou relevância, mas que me saltou aos olhos quando vi. Durante os ciberataques contra os cientistas, os quais apresentavam o perigo que todos estavam correndo e a gravidade daquilo que estava por vir, o termo “marxista(s)” foi usado mais de uma vez como algo pejorativo. É interessante ver que o fantasma do comunismo cresce tanto, principalmente entre os jovens, que ele é usado por setores de direita como ataque e que isso aparece inclusive em um longa da Industria Cultural no ano de 2021.

Tudo isso, embora demonstre que o que seria o marxismo não está claro para a maior parte das pessoas hoje (uma vez que inclusive o próprio Biden ou o Lula são acusados disto quando andam bem longe do espectro do comunismo e da revolução), é um tapa na cara daqueles que dizem que o socialismo é uma ideia ultrapassada. Uma matéria de 2021 do jornal The Guardian nos mostra o seguinte:

“De acordo com um relatório publicado em julho pelo instituto de Assuntos Econômicos (IEA), de direita, os britânicos mais jovens deram uma virada decididamente para a esquerda. Quase 80% culpam o capitalismo pela crise imobiliária, enquanto 75% acreditam que a emergência climática é “especificamente um problema capitalista” e 72% apoiam a nacionalização radical. Ao todo, 67% desejam viver sob um sistema econômico socialista.”

Vivemos em um momento de Crise Orgânica: uma crise social, política e econômica de níveis colossais. Este filme nasce no meio desta conjuntura histórica e ele cumpre o papel ideológico de apagar por completo o horizonte revolucionário. E ele faz isso não porque a revolução seja impossível, mas porque a burguesia tem mais medo da classe trabalhadora assumir o controle da produção do que do fim do mundo.

A burguesia não só sabe muito bem que é possível a revolução, como ela investe milhões em filmes como esse para limitar nossos sonhos e nos fazer perder de vista não só nosso inimigo, que é o sistema capitalista como um todo, mas também e principalmente para fazer com que a gente se sinta impotente e fraco. Precisamos então tomar as bandeiras daquilo que os burgueses mais temem, as bandeiras do marxismo revolucionário, que no século XXI se traduzem no trotskismo, para que possamos construir uma vida que realmente valha a pena ser vivida!




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