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Matrix Resurrections e a lobotomia ideológica de Hollywood

Gabriel Fardin

Matrix Resurrections e a lobotomia ideológica de Hollywood

Gabriel Fardin

Matrix Resurrection veio para desfigurar o núcleo criativo construído na primeira obra de 1999, responsável por torná-la um ícone inquestionável do cinema. Seja pela sua irreverência estética, técnicas inovadoras ou temática subversiva, o primeiro filme da franquia Matrix mudou a história da arte cinematográfica e influenciou centenas de milhares de jovens em todo o mundo.

O retorno de Matrix para as telas do cinema coloca em segundo plano a luta contra o sistema, a guerra contra as máquinas e a urgência no despertar da humanidade para sua condição de escravidão inconsciente, transformando-o em mais um filme de amor predestinado, onde toda a jornada tem como objetivo unir um casal, sendo a grandeza desta união maior e mais imperioso do que qualquer mau utilizado de cenário para explorar mais um romance batido de Hollywood.

- SPOILER ALERT -

De volta à Matrix

Vinte dois anos após o lançamento do filme original, estamos assistindo agora ao quarto filme da franquia, em meio a uma onda de refilmagens, continuação e reciclagens de obras clássicas, em uma campanha de Hollywood para extrair todo o valor que ainda possa ter restado de suas produções que seguem com algum prestígio.

Com Matrix não foi diferente. O filme original foi produzido com início e fim em uma obra única, mas embalado no lucrativo formato de trilogias, as continuações vieram para prosseguir a saga e finalizar a história definitivamente, segundo as próprias diretoras, no terceiro filme. É consenso entre os fãs e na crítica cinematográfica que as continuações não conseguiram seguir o mesmo nível que o primeiro, um sintoma comum de obras artísticas movidas pela lucratividade ao invés da força criativa. Porém, podemos dizer com segurança que as sequências, embora não honrassem a essência do primeiro, também não deterioram o universo e nem mesmo contradizem o sentido mais profundo e criativo que havia ali, mantendo ao menos uma coerência estética e argumentativa.

O mesmo não podemos dizer deste último, “Matrix: Resurrection", que mais parece um spin-off baseado na história de um fanfic sobre o destino de Neo e Trinity. Porém, além de não honrar com a qualidade criativa do original, tampouco foi mantida uma coerência estética e argumentativa. Este filme foi produzido com interesse explícito e auto declarado de reinterpretar as metáforas, redesenhar os signos e a alterar o sentido da trama que move a narrativa e o universo original de Matrix. Se antes a subversão e a luta contra o sistema eram os objetivos que moviam a trama e inspiravam seus protagonistas, agora, neste novo filme, o amor predestinado entre os protagonistas passa a ser a coluna vertebral de todos o eventos, tornando todos outros elementos penduricalhos instrumentalizados que servem de plano de fundo para um história de amor entre herói e heroína.

Para não ser injusto é necessário dizer que o arco afetivo entre Neo e Trinity sempre esteve presente desde o primeiro filme, ganhando mais ou menos relevância a depender do momento da trama e do desenvolvimento da história, chegando em alguns momentos a ganhar o plano central da narrativa. Porém a relação e o sentimento entre esses personagens era parte do dilema da escolha do caminho que seria seguido por Neo e a dicotomia entre predestinação e livre arbítrio, entre destino ou individualidade. E ainda assim, no final do terceiro filme, o roteiro toma a decisão corajosa de retomar definitivamente para seu objetivo principal, colocando a relação afetiva dos protagonistas em segundo plano perante a urgência de libertar a humanidade do jugo das máquinas e da prisão digital da Matrix. Tal decisão é indiscutível quando Trinity morre acompanhando Neo até o local do seu sacrifício para salvar Zion, a última cidade resistente dos humanos.

O quarto filme não apenas desfaz tais sacrifícios, literalmente ressuscitando os personagens e colocando-os de volta na prisão da Matrix, utilizando de justificativas superficiais e forçadas pelo roteiro, mas também altera o motor da trama como um todo, pois, desta vez, o despertar dos heróis não tem nenhum compromisso com seguir a luta contra as máquinas. Nas palavras da icônica personagem Niobe, agora líder de uma nova cidade que se separou de Zion em busca de paz: “Eu me envergonho com quanto tempo me custou para acreditar que um mundo sem guerra era possível”, enquanto a humanidade segue aprisionada na Matrix e é reduzida ao papel de baterias que alimentam as máquinas.

Cada decisão que move a trama no novo filme é a necessidade do Neo e a Trinity ficarem juntos, pois assim estão destinados, torcendo a história construída até então para este propósito e alterando a origem das qualidades subversivas e heroicas dos protagonistas para a atração inexplicável que existe entre eles. O principal antagonista do filme, em uma dessas cenas clichês em que o vilão explica seu plano maligno para o mocinho, tenta nos convencer de que toda a mitologia da franquia estava errada, no seguinte diálogo: “nunca foi só você [Neo]. Sozinhos nenhum de vocês [Neo e Trinity] tem qualquer valor particular. Como ácidos e bases vocês só são perigosos quando misturados”.

Este é apenas um exemplo do que é martelado ao longo de todo o filme, seja nas falas, no roteiro ou nos recursos estéticos, para fazer valer a reconstrução do motor narrativo da trama, carregado de clichês e cenas cafonas como, por exemplo, explosões de luz e poder quando os protagonistas apaixonados dão as mãos, além de reviravoltas sem explicações e profundidade apenas para justificar a intensidade da atração inexplicável entre os dois.

Por outro lado, os signos que antes representavam e marcavam a opressão do sistema da Matrix, assim como a subversão dos protagonistas, estão completamente diluídos e desfigurados. Os principais antagonistas, os agentes, não despertam medo, e Smith, arquirrival de Neo, passa por uma crise de identidade, se tornando amistoso e ambíguo em suas intenções. Já o “novo Morpheus” costumava ser um dos agentes que antes caçava dissidentes e agora existem máquinas aliadas e bondosas, sem nenhum tipo de explicação suficientemente elaborada.

Mas de todas as diluições que nublam o grande abismo que existia antes entre opressores e rebeldes, uma das novidades tem contornos estéticos especialmente reacionários, criando uma imagem que inverte o vértice da estética subversiva dos filmes anteriores. Os “bots”, no filme, é uma tentativa de trazer para Matrix os perfis fakes das redes sociais, como uma atualização de metáforas para a contemporaneidade. Mas no filme os “bots” são representados como cidadãos usados pela Matrix para perseguir os dissidentes, ativados aos milhares, criando uma horda de zumbis de pessoas comuns que são alvejados com tiros de metralhadora pelos protagonistas.

Outra novidade que busca atualizar o arcabouço de metáforas do filme, dialogando com a enorme quantidade de jovens que atualmente sofrem algum tipo de transtorno emocional e/ou psicológico, é o papel do psiquiatra de Neo, que faz parte das artimanhas da Matrix para mantê-lo em um ciclo de auto desconfiança em relação as suas memórias, alimentando um quadro de distúrbio de personalidade, depressão e ansiedade. Esta, sem dúvida, é a face da Matrix mais desenvolvida no novo filme. Porém aqui também há uma alteração bastante relevante na relação entre o sistema, a Matrix, e os dissidentes que querem se libertar. Enquanto no filme original o conflito de tomada de consciência da prisão digital acontecia na medida em que os subversivos eram capazes de encontrar a falha dentro da normalidade, ou ainda, eram incapaz de aceitar a realidade na qual estavam inseridos devido sua irracionalidade e suas incoerências, agora o aprisionamento acontece dentro da mente do protagonista, que duvida de suas próprias capacidades cognitivas e não sabe mais discernir o que é realidade ou invenção de sua imaginação. Ou seja, o que antes era um conflito entre o indivíduo e a realidade em que estava inserido, agora passa a ser um conflito psicológico do indivíduo para com ele mesmo.

Por fim, do ponto de vista técnico e artístico o novo filme entrega uma péssima, quase inexistente, atuação de Keanu Reeves e Carrie-Anne Moss e abandona o repertório inovador da trilogia anterior para adotar fórmulas corriqueiras e preguiçosas de ação e efeitos visuais. Até mesmo os efeitos mais marcantes que são a assinatura da franquia, como a “bullet time”, são usados levianamente sem nenhum impacto.

Sobre a origem da Matrix

Matrix marcou uma geração tanto quanto é expressão cinematográfica de um momento muito particular das contradições do sistema capitalista. Nos anos 90 o capitalismo ainda gozava de sua contra-ofensiva histórica, período que podemos chamar de Restauração Burguesa [1]. Ao mesmo tempo grandes projetos de submissão de blocos inteiros de países dependentes e semicoloniais eram planejados pelo capital financeiro internacional, como a ALCA e o NAFTA, sob a vigia das instituições globais do FMI e da OMC. Essa investida capitalista encontrava resistências pontuais e muito aquém da classe operária que ainda sofria da desmoralização das derrotas e desvios dos processos revolucionários que participou e do período de intensa luta de classe nos anos 70 e 80.

O triunfalismo capitalista no campo ideológico, fruto desta correlação de forças favorável ao imperialismo, produziu ideologias profundamente individualistas e consumistas que impregnavam a mente das massas. Também é neste ápice que se elevam as teorias do “fim da história”, que defendiam que o capitalismo havia “vencido” a luta de classes, o socialismo havia perdido, e a classe trabalhadora já não existia mais. Por fim, o vislumbre de que uma outra sociedade era possível além do capitalismo, já não estava mais no horizonte e a palavra “revolução” foi praticamente riscada dos dicionários, sendo esquecida do imaginário coletivo das massas de oprimidos e explorados. Os ideólogos do capital financeiro chamavam esta investida global de “globalização”, mas hoje nos é mais familiar termos como neoliberalismo.

É neste contexto de conformação e apatia que surge uma vanguarda de jovens, que se inspiram em semi estratégias anticapitalistas e exemplos de resistências pelo mundo, e, mesmo sem a possibilidade da revolução visível no horizonte, passam a se rebelar contra os planos do imperialismo. O movimento antiglobalização [2] era um destes movimentos, que lutava contra o capital financeiro, os acordos comerciais do FMI e a ação predatória e bélica das potências mundiais na periferia do globo. Manifestações eram marcadas para acontecerem simultaneamente por todo o mundo, foram as primeiras ações massivas coordenadas mundialmente usando a internet. Os enfrentamentos contra a polícia eram constantes e ferozes, tendo como um dos principais e mais marcantes eventos uma manifestação nos EUA que ficou conhecida como a batalha de Seattle, onde a juventude conseguiu furar o cerco da polícia através da ação direta e a imagem dos black blocs foi transmitida pela TV para todo o mundo.

A vanguarda da juventude encontrava na ação direta e nas manifestações do movimento antiglobalização uma via de expressar sua frustração e fúria contra o capitalismo imperialista. Mas um setor de massas também buscava nas tribos urbanas uma forma de se defrontar moralmente e esteticamente com um mundo que não os representava, seguindo os ritmos das músicas de protesto do rock, hip-hop e eletrônico, quando não fundidos em um só, como é possível ouvir através da banda Rage Against the Machine. Influenciados por ideologias que incentivavam o modo de vida alternativo como meio de enfrentamento ao sistema, jovens tomavam os dias e as noites das cidades em coletivos de punks, góticos, roqueiros, rappers, etc, cada vertente buscando no choque com o mundo que lhes foi imposto expressar seus ideais subversivos e transgressões morais e estéticas.

Assim como hoje o Black Lives Matter está mudando a história do cinema contemporâneo, e explica filmes como Judas e o Messias Negro, praticamente um mês antes da batalha de Seattle, no dia 21 de maio de 1999, estreitou Matrix, carregando consigo as aspirações e contradições latentes de uma época. Entre o triunfalismo capitalista e a rebeldia da juventude, o primeiro filme introduz a história da resistência da humanidade contra as máquinas. Uma guerra que está sendo perdida por nós, enquanto vivemos uma vida artificial criada para não nos darmos conta de que estamos sendo escravizados. Mas ainda existe esperança, pois os protagonistas vestidos de preto, sobretudo e coturnos, são hackers combatentes e estão lutando para acordar outros como nós, capazes de ver as falhas na Matrix, e libertar a si mesmo e outros do sistema.

Decodificando a Matrix

Apenas a sinopse de Matrix não é o suficiente para expressar os méritos que o transformou em um clássico do cinema e uma referência subversiva no imaginário cinematográfico da juventude. Um filme que foi produzido no final dos anos 90, mas que passaria em todos os critérios de representatividade, produzido pelas diretoras irmãs Lilly e Lana Wachowski, que na época passavam pela sempre complexa transição de gênero, sendo uma das primeiras obras cinematográficas da grande indústria cultural dirigida por pessoas trans. Os feitos desta obra vão muito além de uma boa ideia e um roteiro argumentativo ou panfletário e rompem os limites das fronteiras estéticas, técnicas e criativas da época.

A fotografia, figurino, a trilha e efeitos sonoros, os efeitos visuais, as cenas de ação, as coreografias de combate e luta, foram muito mais inovadores e bem sucedidos do que apenas o efeito de “bullet time” que se tornou a assinatura do filme, fazendo com que inúmeras cenas passassem a ser revisitadas e admiradas contemplativamente em looping pelos fãs, antes serem totalmente incorporadas na indústria cinematográfica.

Esta mistura de inovação técnica e estética subversiva tornou, para a geração dos anos 90, a experiência de assistir Matrix nos cinemas um evento catártico. Cada cena carrega uma força própria, não apenas pela adrenalina, mas também pelos vários momentos metafóricos sobre a Matrix que nos permite refletir sensivelmente sobre a nossa realidade. Nas palavras de Morpheus:

A Matrix está em todo lugar. À nossa volta. Mesmo agora, nesta sala. Você pode vê-la quando olha pela janela ou quando liga a sua televisão. Você a sente quando vai para o trabalho, quando vai à igreja, quando paga os seus impostos. É o mundo que foi colocado diante dos seus olhos para que você não visse a verdade. – Morpheus.
– Que verdade? – Neo.
Que você é um escravo. Como todo mundo, você nasceu num cativeiro, nasceu numa prisão que não consegue sentir ou tocar. Uma prisão para sua mente. Infelizmente, é impossível dizer o que é a Matrix. Você tem de ver por si mesmo. – Morpheus.

Uma das formas de medir os méritos do primeiro filme é pelo imenso volume de discussões filosóficas que fervilhavam na época incentivadas pela busca de interpretar metaforicamente o filme e suas referências, passando pela Caverna de Platão, o Jogo das Contas de Vidro de Hermann Hesse, Teoria da Alienação de Karl Marx e a A Sociedade do Espetáculo de Guy Debord. Não por acaso Matrix é, ou foi, o filme favorito de centenas de milhares de jovens que se inspiraram nesta obra para incrementar sua subjetividade "anti-sistema".

Nas palavras de Lilly Wachowski em uma entrevista realizada em 2020 ao The Hollywood Reporter ela explica de onde veio a inspiração para produzir o primeiro filme de Matrix, associando os desafios e dificuldades da transição de gênero com a sociedade capitalista:

“(...) muita raiva, muita raiva, e é raiva do capitalismo e da estrutura corporativa e formas de opressão” (...) “A raiva fervendo dentro de mim era sobre minha própria opressão, que eu [estava me forçando] a permanecer no armário”.

Entretanto, longe de ser um filme panfletário, o conteúdo crítico à sociedade capitalista foi construído simbolicamente neste universo através dos diálogos dos personagens e alegorias dos próprios conflitos. Enquanto no mundo real, sem as vendas da Matrix, a última cidade dos humanos resiste em uma guerra de sobrevivência contra as máquinas, dentro da realidade virtual da Matrix as pessoas vivem em uma prisão digital alheia a sua situação de escravidão. A prisão digital da Matrix é descrita pelos protagonistas como um looping vazio de sentido profundo e repleto de sofrimentos, como pobreza, miséria, e, mais de uma vez enfatizado, a monotonia exaustiva do trabalho repetitivo, cotidiano e sem sentido e conexão com os indivíduos que o executam.

Mas as alegorias e o simbolismo não acabam aí. A conexão visual com os signos da exploração e opressão no capitalismo também aparecem nos vilões e antagonistas da Matrix. Em praticamente um terço do filme assistimos os protagonistas enfrentando, com encorajadora pirotecnia, a polícia, a primeira linha de defesa convencional e cotidiana da Matrix. Porém não deixamos de sentir o temor e a opressão quando entram em cena os “agentes”, vestidos com terno e gravata, em uma mistura de guarda costas de algum empresário bilionário e agentes do FBI, estes vilões sem sentimentos, programados para caçar os dissidentes do sistema, são a figura simbólica e metafórica do mundo corporativo e do poder hegemônico das instituições do capital financeiro.

Por fim, Matrix coloca como protagonistas jovens de distintas nacionalidades e etnias, vestindo figurinos inspirados nas tribos urbanas dos anos 90, especialmente derivadas do rock, que possuem a capacidade crítica de olhar para a Matrix e perceber as falhas do sistema, não se sentindo confortável e pertencente àquele lugar, captando a superficialidade e a artificialidade deste cenário digital de aparente normalidade. Em suma, a maior virtude dos protagonistas, que os tornam heróis neste universo, é a intuição de que existe algo errado no mundo e em sua aparência, que esconde uma verdade terrível, e por isso são incapazes de se encaixarem no sistema.

Matrix conseguiu captar um sentimento de época subversivo presente na vanguarda e nas massas da juventude que questionavam suas próprias realidades e a miséria que o capitalismo tinha a oferecer para suas vidas, mesmo diante do seu auge. Nas obras originais podemos traçar um correlato entre os protagonistas, a juventude dos movimentos antiglobalização e as tribos urbanas. Os antagonistas são simbolicamente os agentes de inteligência do capital e seus aparatos de repressão. Já no núcleo da trama vemos a crise existencial de uma vida fútil, monótona, destinada ao trabalho rotineiro, vazio e sem sentido, mas que esconde em si a verdade terrível da escravização da humanidade. E, por fim, o objetivo que movimenta a narrativa é a busca pelo despertar, a conquista da liberdade desta prisão do cotidiano, a luta contra o sistema e a esperança de sobrevivência na guerra contra a opressão das máquinas. Cada um desses elementos se encadeiam para destruir o código de “binariedades” que sustenta a Matrix nas telas de cinema, mas também instigam o questionamento das leis que regem as nossas vidas na realidade.

Hollywood também é parte da Matrix

É incrível a capacidade do capitalismo de destruir até mesmo suas obras artísticas mais criativas em troca de um punhado de dinheiro. Com Matrix não foi diferente. Em uma entrevista durante um festival de literatura na Alemanha, Lana Wachowski, diretora de Matrix: Resurrection e co diretora da trilogia anterior, afirma que vinha recebendo propostas, ano após ano, oferecendo “caminhões de dinheiro”, para que ela dirigisse um novo filme da franquia, mas que a produtora, Warner Bros, estava disposta a produzi-lo com ou sem as criadoras. Ainda assim Lana só teria aceito, finalmente, por motivos de cunho pessoal após a morte dos pais.

Sem pretender questionar os motivos pessoais da diretora, podemos ainda sim nos perguntar, salvo as devidas diferenças, o que teria sido de Romeu e Julieta de Shakespeare caso algum comerciante magnata da época, reconhecendo a genialidade de sua arte, o tivesse convencido, com o poder do dinheiro, a ressuscitar o casal para dar continuidade à uma história de amor e assim fazer fortunas com sua obra vendendo ingressos para o público cativo. Será que Romeu e Julieta seria reconhecido como a grande referência inquestionável da tragédia dramaturga?
Mas, ainda mais instigante do que este raciocínio, pode ser especialmente revelador um trecho de uma entrevista, que já citamos acima, com Lilly Wachowski, a irmã que co dirigiu a trilogia anterior, mas não participou deste último filme, quando explica por que se afastou da indústria cinematográfica:

“Entrei quando o cinema estava no auge, antes de conselheiros e marqueteiros encontrarem um jeito de se meterem em filmes. Eventualmente, todas essas pessoas e instituições acabaram na sala com você e especificamente atrás da máquina de escrever, atrás da câmera e atrás do [programa de edição de vídeo]. Isso criou um pouco de tensão para mim, pessoalmente. Eu cheguei no limite e tive que me afastar.”

Entre os fãs e críticos de cinema da cultura pop, há quem diga que Lana fez este filme propositalmente ruim, um tipo de "anti Matrix", em uma espécie de sabotagem artística cinematográfica. Entretanto, a verdade é que é impossível determinar se o resultado final deste dispensável quarto filme da franquia de Matrix esta sob responsabilidade da própria diretora, que em um novo momento decidiu por negar sua obra anterior, ou se foram os produtores e a indústria cinematográfica querendo "escolher a música” após terem pago por ela, tolhendo a liberdade artística de Lana. De toda forma, só pelo fato de não podermos determinar onde está a responsabilidade criativa do filme, já há razão mais do que o suficiente para afirmarmos, antes de mais nada, que as motivações de sua produção são, no mínimo, bastante questionáveis.

Conclusão

Matrix: Resurrection expressa em primeiro lugar o atual momento de decadência do capitalismo em que estamos e o enorme controle que o capital financeiro ganhou sobre as obras da indústria cinematográfica enquanto mercadorias e extensões ideológicas de suas aspirações. Mas também expressa, contraditoriamente, o profundo e leviano desprezo por suas melhores criações e o compromisso para com a produção e a liberdade artística.

Na busca de maximizar seus lucros Hollywood apela para ressuscitar uma das franquias mais criativas e inovadoras da história do cinema, mas para fazê-lo é preciso negar todos os seus aspectos subversivos e revolucionários. Diante de sua crise histórica, os capitalistas da sétima arte não podem se dar o luxo de incentivar a subversão autêntica, a rebeldia, a desobediência e o confronto com as autoridades. Por isso usam da franquia de Matrix para negá-la, e apagar do imaginário potencialmente subversivo criado por ela. E desta forma inserir em seu lugar, mais uma vez, o enredo mais reproduzido, batido, cansado, reciclado e conservador em toda a história do cinema, a história de casal predestinados a ficar juntos, o imaginário do sagrado matrimônio, só que dessa vez usando a Matrix de cenário.

Os protagonistas, Morpheus, Neo e Trinity, de 1999, assistiram Matrix: Ressurrection e não teriam dúvidas em afirmar que é mais uma façanha ardilosa para nos manter conectados ao sistema. Sem nenhum mérito próprio, o único sentido deste novo filme é lucrar em cima da fama das obras originais e contar com o saudosismo dos fãs que se empolgam com as menções de uma obra prima em tempos de tanta miséria criativa e artística da indústria cinematográfica.


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FOOTNOTES

[1Após a emblemática queda do muro de Berlim e a degeneração, deformação e restauração dos antigos estados operários do leste europeu, em especial da União Soviética, as principais potências imperialistas encontravam espaço para expandir seus negócios sobre o globo, evitando que suas crises cíclicas, próprias do sistema capitalista, ganhassem proporções capazes de questioná-lo como modo de produção vigente, como foi a crise de 1929, ou então a recente crise de 2008. O avanço do capitalismo imperialista sobre o mundo, liderado especialmente pelos EUA, também se deu atacando e destruindo direitos trabalhistas, precarizando em especial o trabalho da juventude, criando o subemprego, o trabalho terceirizado, temporário e precário, que são tão comuns nos dias de hoje.
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