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TEORIA | Marxismo e Antropologia

quarta-feira 19 de agosto de 2015 | 00:00

Assim a antiga concepção segundo a qual o homem, sempre aparece (por mais estreitamente religiosa, nacional ou política, que seja à apreciação) como objetivo da produção parece muito mais elevada que à do mundo moderno, na qual a produção é o objetivo do homem e a riqueza, o objetivo da produção.

Karl Marx, Formações econômicas pré-capitalistas

[no século XIX] uma abundante documentação surgiu, abalando de forma séria a velha noção do caráter eterno da propriedade privada e de sua existência desde o começo do mundo, para logo a destruir completamente.

Rosa Luxemburgo, Introdução a Economia Política

Uma tendência geral do capitalismo é a naturalização de suas próprias formas e categorias. O desenvolvimento da economia capitalista acompanhou um conjunto de teorizações, chamada de economia política, que buscava explicar o funcionamento econômico do capitalismo. Estas teorias se aproximavam de conhecimentos objetivos sobre a produção de riquezas no sistema capitalista, porém engendravam em seu cerne a a-historização de categorias que são especificas, produtos históricos, do capitalismo. A antropologia, que desde seus primórdios se esforçou em entender sociedades não capitalistas, enfrentou-se contraditoriamente com a naturalização a-histórica das categorias da economia política.

É comum dentro dos debates antropológicos a advertência de que o marxismo não poderia servir como teoria útil para a Antropologia devido a um suposto carácter economicista-reducionista. Importante ressaltar que esta negativa está muito relacionado à influência do pensamento pós-moderno nas últimas décadas, e não generalizado na história da Antropologia.

Primeiramente, considerando que a caricatura stalinista do marxismo lhe deu uma visão evolucionista e mecânica, a antropologia também não esteve salva das contaminações evolucionistas, positivistas, economicistas e etc. O seu desenvolvimento, principalmente na chamada antropologia econômica, possui uma convivência com as teorias utilitaristas e com a concepção burguesa de homo economicus. Estas noções surgiram no bojo dos clássicos da economia política e com a escola neoclássica ganhou a forma de uma tendência universal da prática humana. O homem seria entendido sempre com uma tendência de maximizar os fins e reduzir os meios, buscar o prazer e fugir da dor. O homo economicus seria uma concepção universal que transpassa distintas realidades sociais e os momentos históricos. Desse ponto de vista, o homem é sempre um animal calculista, que se satisfaz pelo mercado, guia-se pelo valor de uso dos produtos. O Marxismo, em compensação, foi a teoria que surgiu contra a naturalização destas categorias capitalistas. Toda a crítica da economia politica de Marx implica em um radical combate à a-historização das categorias da economia-política burguesa, mostrando por um lado seu carácter ideológico, e por outro seu carácter efêmero, transitório.

Em segundo lugar, a Antropologia precisou de um longo e tortuoso caminho para se livrar das categorias econômicas burguesas e do próprio evolucionismo. Na nossa opinião, para desgosto dos pós modernos, Franz Boas não é o único responsável por essa separação. O contato da Antropologia com o Marxismo contribuiu muito para isso, com o mérito de não descartar a reflexão econômica e se debruçar sobre a ecologia, técnicas e relações produtivas¹. Em diversos países, muitos antropólogos se valeram do arcabouço marxista para entender sociedades não capitalistas e sociedade camponesas.

Não só a escola estruturalista francesa, da segunda metade do século XX, com Godelier e Meillaseux são exemplos. Mas também, na primeira metade deste século (período de surgimento da Antropologia moderna) Leslie White. Este influenciou uma geração de antropólogos simpáticos ao marxismo, como Marshal Sahlins (antes de seu acerto de contas em “Cultura e Razão Prática”), Erick Wolf e Elman Service.

Segundo o Antropólogo Mauro Almeida, mesmo a antropologia estrutural-funcionalistas de Malinowski e Radcliffe-Brown possuía certa correspondência com os preceitos da Ideologia Alemã ao priorizar tanto a vida econômica quanto as relações de parentesco, e os sistemas políticos que dela emergem, como estruturas.

O clássico “Ensaio sobre a dádiva” de Marcel Mauss, ainda que tenha servido como base privilegiada da análise econômica da troca e não da produção, possui vários contatos com a análise da mercadoria de Marx. Sinteticamente, a noção de dádiva e reciprocidade é um contra ponto a forma-mercadoria no capitalismo. Enquanto esta representa a valorização do mundo das coisas, e as pessoas são meios para obter coisas, a primeira estabelece laços de relações sociais por meio da “memória social” implícita na forma-dádiva. O livro foi escrito em um espirito de crítica ao desemprego e a competição capitalista desumana no período crítico do entre guerras e apresenta uma visão política reformista onde a sociedade capitalista deve reconhecer certa dívida ao trabalhador.

Na segunda metade do século XX Max Gluckman, e a escola de Manchester, criticou a falta de dinamicidade das teorias e análises antropológicas anteriores tomando os conceitos de contradições estruturais, conflitos e revolução. E, novamente, nos Estados Unidos, Michael Taussig se influenciava pelas leituras marxianas das sociedades pré-capitalistas e pelas análises sobre história de Walter Benjamin. Mesmo o surgimento da antropologia estrutural-simbólica não descartou o marxismo, como o senso comum acadêmico atual tanto faz. Lévi-Strauss, além de “beber” muito do próprio Marx para suas diferenciações de mudanças históricas, afirmou que o estruturalismo seria uma teoria da superestrutura que não invalidava a tese da determinação em última instância da super-estrutura pela estrutura.

É evidente que para cada um destes contatos da Antropologia com o Marxismo cabe uma infinidade de debates: a-historicidade, alguns traços positivistas e uma concepção ainda utilitarista de cultura (pelo menos em Malinowski) do estrutural funcionalismo; o mecanicismo e neo-evolucionismo da escola norte-americana; as influências de um marxismo social-democrata, reformista, nas análises de Mauss; a inflação gnoseológica do estruturalismo; o teoricismo althusseriano de Godelier; a recusa de Meilassoux em compreender relações de parentesco como relações de produção e sua expansão do conceito de classe para as mulheres nas sociedades sem Estado. Porém estes contatos são importantes para contrapormos a recusa de qualquer relação entre Marxismo e Antropologia e para afirmamos: a noção de “crítica da economia política” continua um ponto chave para a compreensão das dinâmicas sociais e a Antropologia precisou deste diálogo para escapar da naturalização dos conceitos econômicos burgueses.

Importante ressaltar que muitas vezes estes contatos foram velados. O ambiente político conturbado da primeira metade do século XX e as tendências apolíticas da produção teórica universitária neste período são uma das explicações deste silêncio. No caso de Mauss é notável que sua vida militante socialista não estava sempre expressa em suas teorias. E no caso norte americano tanto a hegemonia culturalista Boasiana quanto as perseguições aos pensadores pró-sovieticos explicam o silêncio das referências a Marx nos escritos de Leslie White. Porém é conhecido sua militância no Socialist Labour Party e seus textos políticos sob o pseudônimo de John Steel.

Por outro lado o desenvolvimento do marxismo também se nutriu da Antropologia nascente e da reflexão sobre “o outro” (aqui, no sentido de povos não capitalistas). Ainda que a reflexão guia do marxismo seja o desenvolvimento histórico do capitalismo e seu funcionamento, sua exposição madura necessitou de uma ampla apropriação, principalmente das pesquisas de Morgan, e outros precursores da etnografia como John Budd Phear, Georg Maurer e John Lubbock. Marx e Engels encontraram em Morgan exposições empíricas sobre a transitoriedade do Estado e das classes sociais e também a correspondência entre produção material e formações sociais e políticas exposto como teoria em A Ideologia Alemã. Outra afinidade marxiana com o pensamento antropológico nascente foi a valorização de certos traços das comunidades ditas primitivas. Marx debruçou muitas anotações elogiosas sobre a democracia gentílica dos iroqueses descrita por Morgan. E a valorização de alguns traços das sociedades sem Estado voltam a aparecer em Rosa Luxemburgo, Mariátegui, Walter Benjamin. Lênin em “O Estado e a Revolução” afirma:

“É impossível passar do capitalismo ao socialismo sem um ‘certo retorno’ ao democratismo ‘primitivo’ (pois enfim, como fazer de outra forma para que as funções do Estado sejam exercidas pela maioria)”

A segunda relação que podemos estabelecer entre o mundo não civilizado e o pensamento marxiano é a relação histórica entre europeus e não europeus, colonizadores e colonizados, como condição de surgimento do capitalismo. O processo de acumulação primitiva de capital implicou por um lado a separação violenta do camponês do dos seus meios de produção na Europa, e por outro a espoliação massiva do resto do mundo e do trabalho das populações não europeia. Lévi-Strauss ainda afirma que uma das inovações marxistas sobre a relação entre “civilizados e não civilizados” é o reconhecimento das inovações técnicas das sociedades antigas, sem as quais o mundo ocidental não seria possível.

Por último, a ideia de um evolucionismo teológico, único para toda humanidade, nas leituras de Marx cai por terra quando percebemos que Marx não utiliza no “O Capital” qualquer sistema classificatório geral das formações sociais; e quando nos deparamos com sua análise sobre as comunidades camponesas russas (MIR). Em debate com os Narodniks russos é possível salientar três concepções de Max que nos é importante neste ponto:

1. Marx adverte que sua teoria sobre a transição de distintas formas de propriedade se limita à análise do desenvolvimento do capitalismo na Europa ocidental e não é uma teoria ou lei universal.
2. Que os perigos da dissolução das comunidades camponesas na Rússia não eram uma teoria, nem um fatalismo histórico, mas um processo concreto da opressão estatal e da exploração capitalista.
3. A inserção potencial do MIR em uma dinâmica geral da revolução no conjunto da Europa.

Em suas anotações etnográficas Marx também reconhece a existência de uma variedade de formações sociais não-capitalistas e de formas transitórias de regimes de propriedade. Além de salientar que não foi em todo lugar do mundo que houve a transição do regime feudal para o capitalista. Nestes textos Marx reconhece uma variedade de dimensões históricas que se explicam pela variedade de formações sociais e pelos processos históricos concretos diferenciados que estas sociedades passaram.

Logo não podemos concordar com a tese de que o marxismo não pode servir como conjunto conceitual para Antropologia. As noções de dialética em Marx, em nossa opinião, responde a uma relação entre mundo apreendido e processos reais, mas não em uma unidade mecânica. A famosa teoria unilateral e mecânica do reflexo é uma deturpação da dialética materialista. As concepções de “modo de vida” presentes na Ideologia Alemã, as concepções sobre conhecimento engajado e relação entre sujeito e objeto nas teses de Feurbach, a análise histórica e o combate das categorias da economia burguesa, e a relação entre desenvolvimento capitalista e povos não europeus são alguns exemplos de um conjunto de concepções marxistas que contribuem para análise de temas atuais caros a Antropologia.

Porém, compreendemos que a Antropologia contemporânea não possui apenas o objetivo de compreender sociedades não capitalistas. Além de contribuir para o estudo das relações entre os chamados povos originários e as dinâmicas capitalistas, a abordagem antropológica ainda pode servir para desnaturalizar as categorias e ideologias capitalistas. Para esta finalidade o marxismo nos parece um conhecimento privilegiado, uma vez que seu surgimento destaca a necessidade de historicizar e demonstrar a transitoriedade das formas e categorias capitalistas. A crítica da economia política de Marx em “O Capital” ainda nos parece uma obra prima para este objetivo.

Como exemplo conclusivo, Trotsky ao elucidar sobre as categorias econômicas oriundas do capitalismo nos apresenta uma similaridade com um dos objetivos do chamado relativismo cultural: “Transformar o familiar em exótico”.

“A mercadoria transformou-se em um elemento tão universalmente difundido e tão familiar da nossa vida que nem sequer nos ocorre considerar porque os homens entregam objetos importantes, necessários para a sustentação da vida, em troca de pequenos discos de ouro ou de prata (...)
Todas e cada uma das categorias da economia de mercado costumam ser aceitas sem análise, como evidentes por si mesmas, e como se fossem as bases naturais das relações humanas.” (Resumo de O Capital por Trotsky”)

¹ É fácil reivindicar a não contaminação de etnocêntrismo econômico se recusando a qualquer reflexão econômica como fazem alguns culturalistas. Porém, inclusive aqui cabe um debate, entre certas afinidades ideológicas de Boas, pois este participou nos Estados Unidos do comitê em defesa de Trotsky.

Este artigo validou-se das seguintes obras:
Marx Selvagem de Jean Tible
Antropologia, economia e marxismo: uma visão crítica de Cecília Manzoli Turati
Marxismo e Antropologia de Mauro Almeida




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