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Mário Pedrosa e a arte social enquanto arma do proletariado

Afonso Machado

Mário Pedrosa e a arte social enquanto arma do proletariado

Afonso Machado

Houveram épocas em que certos críticos de arte eram abertamente políticos e alguns artistas sinceramente revolucionários. É provável que nos nossos dias isso, em parte, ainda seja fato, desde que seja levada em conta a tremenda dificuldade para fazer com que as opiniões revolucionárias adentrem pelo peito e pelo cérebro das massas. Enquanto um dos pioneiros do movimento trotskista no Brasil, Mário Pedrosa foi um daqueles intelectuais militantes que segurou uma barra política pesadíssima: a geração de Pedrosa teve que enfrentar o vampiro stalinista instalado no Estado operário deformado, a Besta moderna do fascismo que fornecia uma alternativa política totalitária para o capitalismo, a escalada autoritária do varguismo... Pedrosa foi um homem de vanguarda que deitou regra sobre arte revolucionária, defendendo a inventividade e a independência enquanto condições indispensáveis para a atividade artística poder participar da luta pela emancipação humana. Ele é uma referência impar para os militantes de esquerda que lutam hoje contra os setores autoritários que possuem taras pelos figurinos históricos da Gestapo, da Inquisição e do AI-5.

Ao longo do seu itinerário crítico Mário Pedrosa compreendeu a dimensão revolucionária da estética de diferentes maneiras. Ele saboreou o vinho da revolta junto a André Breton e Benjamin Péret para filiar-se ao movimento surrealista. Conheceu em profundidade os movimentos de vanguarda dos períodos Entre Guerras (1919-1939) e Pós Segunda Guerra Mundial. Refletiu de maneira original sobre a arte politicamente engajada. Levando em conta aqui a rica simbologia histórica do título da presente publicação, ou seja a referência á canção Carcará composta por João do Vale e imortalizada pelo canto violento de Maria Bethânia em 1965, encontramos uma brilhante reflexão de Mário Pedrosa: lá estava o já veterano crítico escrevendo em 1966 sobre o caráter de resistência política desta canção. Segundo Pedrosa:

"(...) Pode-se dizer que o grupo Teatro de Arena com sua Opinião 65, foi o grande respiradouro dos cidadãos abafados pelo clima de terror e de opressão cultural do regime militar implantado em 1964(...) Desse contexto geral opressor surgiu uma formidável criação revolucionária e simbólica que foi Carcará de João do Vale. Pouca gente ouvia então aquele canto, expressando a realidade implacavelmente feia, malvada e egoística da miséria natural e social do nordeste, sem ser sacudido por dentro e sem lágrimas nos olhos. Desde então Carcará é um hino da revolução social camponesa nordestina como Carmagnole o foi para a plebe urbana e dos Sans Culottes da Revolução francesa (...)".

O comentário de Pedrosa nos coloca no campo extraordinário das analogias históricas, algo certamente enraizado na narrativa marxista: ao associar Carcará com Carmagnole ocorre uma aproximação revolucionária entre o movimento político/cultural de resistência contra a ditadura militar (1964-1985) no Brasil e a arte política que se desenvolveu na França durante o final do século XVIII, muito especialmente a partir da marca incandescente do jacobinismo. Se saltarmos da Grande Revolução francesa iniciada em 1789 e aterrissarmos na Revolução russa de 1917, vislumbraremos nesta última a tempestade histórica que tomou de assalto o imaginário da geração de artistas e intelectuais que Mário Pedrosa pertenceu. A arte social que brotava diretamente do solo de Outubro colocava a vida cultural sob o signo da luta de classes, o que iria intensificar-se ainda mais a partir do cenário econômico e social da Grande Depressão dos anos de 1930. Foi particularmente neste contexto que Pedrosa, atento ao trabalho da gravurista alemã Kathe Kollwitz , realiza no ano de 1933 uma conferência no Clube dos Artistas Modernos na cidade de São Paulo. Na conferência As Tendências Sociais da Arte e Kathe Kollwitz o crítico trotskista concebe a produção artística a partir da luta de classes. Visto que no Brasil de hoje a arte deve contribuir com o acirramento das lutas sociais, vejamos o que Pedrosa tem a dizer:

"A arte não goza de imunidades especiais contra as taras da sociedade nem o seu pórtico param, sem transpô-lo, os prejuízos e as contingências mesquinhas ou trágicas do egoísmo de classe. Como qualquer outra manifestação social, é ela corroída interiormente pelo determinismo histórico da luta entre os diversos grupos sociais. Sendo o fenômeno estético uma atividade social como outra qualquer, está por isso mesmo situado pelo conjunto de todas as outras manifestações da sociedade, isto é, por uma determinada civilização."

Mário Pedrosa busca definir o sentido social da arte. Ele realiza um notável panorama sobre a função social da arte ao longo da história das civilizações e destaca o seu empobrecimento na civilização capitalista, aonde a experiência coletiva da arte é profundamente afetada. Num mundo cortado pelas lutas entre a burguesia e o proletariado, a função social da arte só pode estar no seu caráter revolucionário:

"(...) Em nossos dias, a arte só poderá ser restaurada na sua dignidade antiga e representar uma função social, embora talvez com prejuízo de sua pureza estética, se se opuser aos valores admitidos. Na sociedade cortada pelo mais terrível antagonismo de classe, só atingirá pública, ou pelo menos a uma forma classista de consciência pública, sendo revolucionária. Esta forma de consciência geral, só uma das duas classes em luta tem o direito de representar. Não só pelo número crescente, como pelo formidável papel histórico a que está destinada- esta classe é o proletariado moderno. (...)"

Em sua análise da obra de Kathe Kollwitz, artista revolucionária que soube atingir extraordinária solução formal a partir da articulação entre os componentes estéticos do Expressionismo alemão e do Realismo social, Pedrosa defende que sendo o proletariado uma classe transitória sua arte também deve ser transitória e... utilitária. Isto aparentemente poderia assanhar ainda hoje os defensores da equivocada tese da arte proletária. Todo marxista que se preza e deu-se ao trabalho de pelo menos folhear o livro Literatura e Revolução (1923) de Leon Trotski, sabe que a condição histórica do proletariado não é a mesma das classes dominantes do passado. Não teria sentido histórico a classe trabalhadora estabelecer uma arte ou uma cultura de classe. O proletariado deve apropriar-se das formas culturais historicamente acumuladas: é segundo este critério histórico que ocorre, num possível contexto de lutas revolucionárias internacionais, o processo de elevação cultural das massas, gerando as bases para as formas artísticas da futura sociedade comunista, isto é, sem classes e sem Estado. Todavia, não podemos ignorar as necessidades ideológicas da classe trabalhadora no presente, insistindo assim na elaboração de experiências estéticas que sem qualquer forma de dirigismo político-partidário participam da luta de classes. Pedrosa sugere possibilidades para isso.

Pedrosa estava atento ás diversas contribuições dos movimentos de vanguarda para a elaboração da arte de combate do proletariado. O trabalho da artista alemã estaria entre estas genuínas contribuições. O autor frisa que diante das obras de Kollwitz, que denunciam a miséria e o sofrimento da classe operária, espectadores de origem proletária não apresentam a atitude diletante ou piedosa do público burguês: diante da arte social os trabalhadores ficam com "olhos faiscantes" e "punhos trancados". Portanto a arte social, politicamente utilitária, não serve pra nada quando destinada aos “ bem pensantes“, aquela meia dúzia de esnobes que pede autorização para doutores e teses acadêmicas até para respirar. Diante do interessantíssimo contexto cultural das periferias das cidades brasileiras marcado pela intensa produção artística popular, a crítica marxista e o legado das vanguardas devem ser apropriados pelos artistas do proletariado, pelo seu público. Feitas estas considerações, Pedrosa ainda acerta na mosca:

"A arte social hoje em dia não é, de fato, um passatempo delicioso: é uma arma"

O que o crítico brasileiro chama de "arte proletária" não tem nada a ver com os erros teóricos do Proletkult e nem com as cartilhas do Realismo Socialista. Sua análise que não se dissocia das contribuições estéticas revolucionárias da arte moderna, conflui em 1933 na direção das afirmações que Trotski realizou no seu referido livro:

“Se rejeitamos o termo ’cultura proletária’, que fazer então com o Proletkult? Convenhamos então que o Proletkult significa atividade cultural do proletariado, isto é, a luta encarniçada para elevar o nível cultural da classe operária. Tal interpretação, na verdade, não diminui em nada a sua importância (...)"

A afirmação de Trotski ( realizada num contexto histórico em que o proletariado russo havia assumido o poder político mas ao mesmo tempo se deparava com o autoritarismo da burocracia que freava a Revolução) adquire um significado particular no Brasil de hoje: perante as ameaças da extrema direita e do fundamentalismo religioso, os artistas militantes devem promover "atividades culturais do proletariado" afim de elevar a consciência política, difundir o conhecimento histórico e despertar as potencialidades criativas desta classe. Não se trata portanto de carimbar pateticamente a cultura com "a arte proletária", coisa que aliás só pequenos burgueses de esquerda acreditam. Pedrosa representa um importante elo teórico dentro das tradições artísticas revolucionárias. São estas tradições que, apropriadas pelos artistas trabalhadores, oferecem material para as novas formas de arte revolucionária. Estas últimas, necessariamente plurais, não obedecem receitas estéticas e devem estar abertas para os mais variados temas e necessidades expressivas. Uma coisa é certa: num quadro histórico em que o desemprego e a fome assombram os trabalhadores brasileiros, a arte social é uma necessidade.

Levando em consideração que existe atualmente um descompasso entre as condições objetivas (que exigem uma saída histórica revolucionária) e as condições subjetivas de grande parte do proletariado, fica estampada a necessidade da construção de uma cultura revolucionária capaz de agitar a consciência daqueles que não enxergam no nublado céu da história a presença do pássaro que resiste contra a opressão. Mário Pedrosa é um autor que certamente interessa aos artistas e militantes que desejam entender a estética das tempestades sociais e os impactos da luta de classes na produção artística. O traço de um desenho pode ter o mesmo trajeto do pavio de uma bomba acesa.


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