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Lançamos nosso manifesto internacional num 8 de Março histórico, com um chamado internacional de paralisação das mulheres e há 100 anos da Revolução Russa iniciada e levada a frente por milhares de mulheres. Pelo direito ao pão e às rosas!

Pão e Rosas@Pao_e_Rosas

quarta-feira 8 de março de 2017 | Edição do dia

Neste 8 de março de 2017, Dia Internacional das Mulheres, estamos mobilizadas, em greve ou realizando diversas ações, em distintos países, levantando a consigna #ParoInternacionalDeMujeres.

Essa consigna não caiu do céu: foi se forjando nas recentes e massivas lutas de mulheres contra a violência machista e os feminicídios como na Argentina, Chile, México e Itália; pelos direitos reprodutivos e o direito ao aborto como na Polônia, Irlanda e Coreia do Sul; contra a diferença salarial entre mulheres e homens como na França e Islândia ou nas mobilizações contra a misoginia de Donald Trump, recentemente eleito presidente dos Estados Unidos, que não apenas foram massivas em diversas cidades norte-americanas, como também em cidades europeias, como Londres, Barcelona, Berlin, Amsterdã, Budapeste e Florença. Estas lutas das mulheres expressaram, também, a resistência à crise capitalista em curso que a classe dominante e seus governos pretendem descarregar sobre o povo trabalhador, atacando as condições de vida da classe trabalhadora e os setores mais pauperizados, nos quais a maioria são de mulheres.

Mas também, este 8 de março de 2017 coincide com o centenário da Revolução Russa, que se iniciou no Dia Internacional das Mulheres de 1917, com uma greve de trabalhadoras têxteis em São Petersburgo, que rapidamente se estendeu à trabalhadoras e trabalhadores de outras áreas e outros setores da população, culminando, no mês de outubro, com a tomada do poder por parte da classe trabalhadora. Uma revolução que, apenas em poucos meses, conquistou direitos e liberdades pelos que, ainda hoje, cem anos depois, seguimos lutando em grande parte do mundo.

Nós, mulheres que assinamos este Manifesto, reivindicamos essa tradição, que consideramos mais vigente do que nunca na luta por nossa emancipação. E estamos convencidas de que ela só poderá ser alcançada definitivamente quando derrubarmos todos os vestígio dessa sociedade baseada na exploração e opressão de milhões de seres humanos e construirmos, sobre suas ruínas, uma nova sociedade socialista.

Pão e Rosas, Março de 2017

Alemania, Argentina, Bolivia, Brasil, Chile, Estado Español, Estados Unidos, Francia, México, Uruguay, Venezuela

A história da luta de classes é também a história da luta das mulheres

Estas mobilizações de mulheres em todo o mundo, que assistimos hoje, não são uma novidade. Desde tempos remotos, nós mulheres temos oferecido resistência à discriminação, à submissão e à desigualdade que nos impõe a dominação patriarcal e todas as formas de opressão e exploração impostas pelas classes dominantes ao longo da história. As mulheres camponesas europeias, durante séculos, se rebelaram contra a escassez e os preços elevados do pão e da farinha, que condenavam suas famílias à fome e à miséria. Na América Latina, são numerosas as valentes histórias de mulheres dos povos originários que resistiram à dominação colonialista. Nos tempos da Revolução Francesa, as mulheres denunciaram que a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão não contemplava seus próprios direitos como cidadãs, enquanto uma multidão encabeçada pelas mulheres dos bairros populosos de Paris marchava a Versalhes reivindicando diante do Rei por suas condições de vida. E quase um século depois, também as mulheres do povo pobre de Paris resistiram historicamente nas barricadas da Comuna, defendendo o primeiro governo operário da história que, além de tudo, converteu as mulheres em cidadãs com iguais direitos em relação aos homens. Por isso armaram batalhões que combateram até o sangrento massacre imposto pela burguesia francesa, que lhes custou deportações e fuzilamentos.

Antes da Primeira Guerra Mundial, milhares de mulheres se mobilizaram na Inglaterra, França e outros países reclamando seu direito a votar e serem votadas nas eleições. Nos Estados Unidos, muitas dessas sufragistas lutavam, na sua época, pela abolição da escravidão. Nos países da América Latina e no Caribe, as mulheres lutavam pelo acesso à educação superior e por todos os direitos civis que ainda lhes eram negados. Muitas vezes, essas mulheres encontraram eco à suas reivindicações apenas nos partidos socialistas-operários da época. Na Europa, durante a mesma guerra, foram as trabalhadoras que tentaram evitar o envio de tropas ao fronte de batalha, freando os trens com motins e revoltas, como também sabotando a produção de armamento e munições. E também estiveram na primeira fila dos protestos contra o desabastecimento e a carestia que impunha o conflito militar.

Assim fizeram as trabalhadoras têxteis de São Petersburgo, na Rússia, que em 1917 escolheram comemorar o Dia Internacional das Mulheres, declarando-se em greve e exigindo “Pão, Paz e Abaixo a autocracia”. Sem pretende-lo, as mais oprimidas entre as mulheres e mais exploradas entre os proletários, abriram caminho ao processo revolucionário mais grandioso da história do movimento operário: a Revolução Russa, que liderada pelo Partido Bolchevique de Lenin e Trotsky, acabaria com o regime czarista e, vários meses mais tarde, imporia um governo de trabalhadores, baseado nos conselhos operários. Há cem anos, as mulheres russas conquistaram, com a revolução operária, direitos pelos quais ainda hoje, um século depois, seguimos lutando na maioria das democracias capitalistas, inclusive alguns que deveriam ser considerados elementares, como o direito ao aborto.

A história está regada de heroísmo, abnegação e coragem de milhões de mulheres anônimas e outras, com nome próprio, como a valente lutadora ameríndia Bartolina Sisa, da Bolívia, as operárias socialistas Teresa Flores, do Chile; ou Carolina Muzzilli, da Argentina; a general zapatista Amelia Robles, do México; como Dandara, Luisa Mahin que lutaram contra a escravização do povo negro no que viria a ser o Brasil; a organizadora operária Mother Jones, dos Estados Unidos; a socialista e feminista a franco-peruana Flora Tristán; Elizabeth Dimitrieff e Louise Michel, que lutaram na Comuna de Paris; as revolucionárias internacionalistas como a alemã Clara Zetkin ou a russa Nadezhda Krupvskaia; as oposicionistas que enfrentaram o stalinismo, como Nadezhda Joffe, da Russia; Marvel Scholl e Clara Dunne, dos Estados Unidos; Patrícia Galvão, do Brasil; ou Pen Pi Lan, da China. Nem todas elas foram feministas – no sentido que hoje poderia ter essa definição –, mas todas elas enfrentaram a opressão, estiveram junto às exploradas e explorados e lutaram por sua organização, seus direitos e sua emancipação. Tampouco todas sustentaram uma perspectiva socialista e revolucionária – como a que nós compartilhamos – mas são algumas das mulheres junto a tantas outras, de cujos combates nós, as mulheres que integramos o Pão e Rosas, aprendemos.

Levamos com orgulho a herança desse legado e a tradição de mulheres como Rosa Luxemburgo, que, superando enormes adversidades, demonstrou que nem a opressão de gênero, nem a discriminação por sua origem e nacionalidade, constituíram um impedimento para que – com suas fortes convicções, abnegação e coragem – pudesse transformar-se em uma das maiores dirigentes revolucionárias da história.

Mais direitos e maiores ofensas: um legado contraditório para as mulheres nas últimas décadas

Na última metade do século, a vida da maioria das mulheres do Ocidente – especialmente nos países centrais e nas grandes metrópoles – se transformou de uma maneira que, apenas um século antes, haveria sido impensável.[1] Relativamente em poucas décadas, com as lutas dadas pelas mulheres, se eliminaram as normas e leis que nos proibiam o aceso a todos os níveis educativos ou a exercer cargos públicos, se conquistaram direitos democráticos elementares, nos tornamos independentes legalmente da tutela patriarcal do pai e do marido e grandes setores urbanos de massas femininas, em numerosos países, conquistaram mais possibilidades legais de decidir sobre seus projetos de vida, sobre sua sexualidade e seus corpos.

A pesar de não ser um processo linear, que evolui gradualmente em um único sentido, nem é estendido a todas as mulheres, é tão importante seu alcance que até a classe capitalista precisa reconhecê-lo e colocar, na primeira fila de seus representantes para aplicar políticas ultrarreacionárias, mulheres como Ángela Mérkel, na Alemanha, ou Teresa May, na Gran Bretanha. Poderíamos dizer que, se o compararmos com as décadas anteriores, foram reduzidas, em grande medida, as limitações legais para o acesso das mulheres a lugares de poder (com exceção do trono de São Pedro no Vaticano). Isso é algo bem distinto do que acontecia na época em que socialistas revolucionárias como Rosa Luxemburgo combatiam o regime imperial alemão, quando as mulheres, os estudantes e os estagiários eram proibidos de aderir a organizações políticas e assistir a reuniões onde se discutisse política.

Desde um ponto de vista, muitos destes direitos atuais são uma consequência das lutas das mulheres dos anos ’60 e ’70 que souberam revelar, conceitualizar e transformar em bandeira e programa de luta a ideia de que “o pessoal é político”. Nesse período, distintas correntes do feminismo radical gritaram ao mundo que a desigualdade política, econômica, social, cultural e sexual das mulheres com respeito aos homens não era um problema particular de cada mulheres e de cada homem, restringido a seus vínculos no âmbito privado; havia um padrão repetido em inúmeros testemunhos individuais, demonstrando que a singularidade dessa experiência exibia, dialeticamente, seu verdadeiro caráter estrutural. Aquilo estipulado como “natural” era a cristalização de complexos processo sócio históricos.[2]

Nessas décadas, não só o patriarcado, mas também o colonialismo, o racismo e a heterossexualidade foram questionadas como sistemas de dominação, no marco de um processo de grande radicalização social e política das massas, que se levantaram contra a exploração capitalista no Ocidente e a opressão exercida pela burocracia stalinista nos estados operários do Leste da Europa.

No entanto, embora as mudanças alcançadas na vida cotidiana de milhões de mulheres possam ser vistas por alguns analistas como verdadeiramente "revolucionárias" em comparação com a vida das mulheres de gerações anteriores, é evidente que esses direitos, conquistados no marco das democracias capitalistas, não eliminaram a opressão patriarcal, o racismo, nem a exploração que mantém milhões de seres humanos submetidos à escravidão assalariada, afundados na barbárie da fome, guerras, poluição, inundações e secas, desemprego, miséria. Hoje, das mais de um bilhão de pessoas que vivem na pobreza extrema, 70% são mulheres e meninas.

Portanto, os direitos adquiridos por grandes setores de massas femininas coexistem e contrastam brutalmente com as estatísticas vergonhosas que indicam, por exemplo, que a cada ano, entre 1 milhão e meio e 3 milhões de mulheres e meninas são vítimas de violência machista. Que, apesar dos enormes avanços científicos e tecnológicos em todo o mundo, 500 mil mulheres morrem, anualmente, de complicações na gravidez e no parto, enquanto 500 mulheres morrem diariamente por causa das consequências de abortos inseguros e clandestinos. Que a prostituição tornou-se uma indústria de grandes proporções e grande rentabilidade, que por sua vez desenvolveu expansivamente as redes de tráfico. Que dos 960 milhões de analfabetos, 70% são mulheres e meninas. Que também aumentou exponencialmente a "feminização" do trabalho: as mulheres representam mais de 40% da força de trabalho, à custa de que 50,5% destas mulheres são precarizadas, além de carregar sobre os nossos ombros a dupla jornada de trabalho que implicam nos trabalhos domésticos. Ainda mais recentemente, assistimos a um giro político à direita em vários países ocidentais, que tentam atacar ainda mais os direitos acima mencionados. Por exemplo, nos Estados Unidos, Donald Trump tem a intenção de avançar decisivamente contra o direito ao aborto, com base nos ataques já levados adiante pelos governos de alguns estados, sob a administração do Partido Democrata, com Barack Obama na Casa Branca. Na Europa, houve importantes mobilizações da direita e fundamentalistas católicos não só contra o direito ao aborto, mas também contra o matrimônio igualitário e outros direitos democráticos.

Se este é o resultado, é porque esta etapa de ascenso da luta de classes e radicalização das massas, como observado anteriormente, da qual também emergiram os movimentos sociais como o feminismo, foi derrotada e desviada. O que tem sido chamado de "neoliberalismo" não é senão a reação furiosa do capitalismo diante desta onda de protestos, greves e processos revolucionários que abalaram o domínio do capital nos anos 70.

Pela mão traidora das direções reformistas das massas - tanto políticas como sindicais -, no Oriente o no Ocidente, o capitalismo conseguiu sobreviver às suas crises, impondo uma política econômica que empurrou milhões para o desemprego, fragmentando a classe trabalhadora e estabelecendo os valores do individualismo e do "salve-se quem puder", em meio ao marasmo global. Para impor essa derrota, as classes dominantes não só contaram com a cooperação das direções traidoras das classes exploradas. Também tiveram que assimilar, cooptar e reduzir as arestas mais críticas dos movimentos sociais que questionavam o capitalismo patriarcal, heterossexista, racista e colonialista. Os direitos conquistados durante este período foram, de alguma forma, um "reconhecimento" das classes dominantes à nova correlação de forças imposta pelas massas e uma tentativa de responder a esse descontentamento e à crescente feminização da força de trabalho. Desta forma, o capitalismo tentou resolver sua necessidade de aumentar a mão de obra disponível, aumentando a concorrência entre as massas de assalariados e avançando no ataque às conquistas históricas da classe trabalhadora (como o fez desde as suas origens, desenvolvendo um "exército industrial de reserva" para baixar os salários, dividindo as fileiras dos trabalhadores entre homens e mulheres, nativos e estrangeiros, brancos e negros, efetivos e temporários etc.).

A separação entre a classe trabalhadora e os movimentos sociais se consolidou, depois de uma longa história de lutas em comum. O feminismo abandonou a luta contra a ordem social, imposta pelo capitalismo, que é a responsável por descarregar sobre as mulheres as maiores misérias desse mundo. Ao mesmo tempo, a ausência de um horizonte revolucionário e a traição de suas direções empurrou a classe trabalhadora para um corporativismo economicista. Além disso, as mulheres que desejavam sua emancipação não tiveram, durante essas décadas de profunda restauração conservadora, um modelo a seguir nos países faziam parte do chamado "socialismo real", como tinham tido no início do século XX. Só o que viam por lá era a confirmação de que qualquer tentativa de se opor à dominação existente podia gerar novas e monstruosas formas de dominação e exclusão, porque o stalinismo restabeleceu a ordem familiar, promovendo o papel das mulheres como esposas, mães, e donas de casa; retirou o direito ao aborto; criminalizou a prostituição, como na época do czarismo; reduziu drasticamente, ou mesmo eliminou, as políticas de criação de lavanderias, restaurantes e creches comunitárias, e liquidou todos os organismos partidários femininos. Com essas e outras medidas, a burocracia stalinista destruiu e reverteu os audazes e importantes passos dados pela Revolução Russa de 1917.

Com a derrota da onda de radicalização dos anos 70 se construiu a ideia de que o capitalismo era inabalável e que qualquer perspectiva de transformação radical das condições de vida dos explorados e oprimidos era completamente utópica. Não podemos negar que os direitos adquiridos nesse período (ainda que restritos apenas a algumas camadas sociais em alguns países, e sempre sob o risco constante de serem retirados frente a novas conjunturas políticas) foram um certo "triunfo". No entanto, assinalamos que ao mesmo tempo esses avanços serviram para acalmar os ânimos e estabilizar o capitalismo durante o prolongado período denominado "neoliberalismo". Isso porque quando a ideia da transformação radical da sociedade saiu do imaginário das massas, a luta pela emancipação foi majoritariamente abandonada também pelo feminismo, dando lugar a uma estratégia de reformas graduais para acumular direitos no interior das democracias capitalistas, buscando utopicamente sua modificação "por dentro". A crítica às raízes estruturais da opressão no capitalismo se converteram na busca pela ampliação da cidadania em democracias capitalistas tão degradadas que pouco ou nada têm a oferecer para amenizar o sofrimento das massas. Ainda que a ordem cultural, social e moral fundada nas relações de produção capitalistas tenha sido criticada às vezes, essa crítica sempre apareceu desligada do caráter econômico da exploração do trabalho humano que a sustenta, esse permanece inquestionável.

Isso permitiu que o feminismo hegemônico, durante as décadas de neoliberalismo, fosse aquele que se dedicou à luta pelo reconhecimento de direitos no terreno do "Estado democrático". O Estado capitalista, que não é neutro, serve para garantir a violência da exploração assalariada de milhões de seres humanos pela minoria parasitária que compõe a classe dominante, e é fundado na proteção da propriedade privada pelo uso do monopólio da violência contra esses mesmos explorados. É dele que querem exigir que se reconheçam os abusos cometidos contra as mulheres e que aplique a punição aos seus autores.

Assim chegamos à época atual, tendo conseguido o reconhecimento de que a violência doméstica é violência e não um direito do cônjuge; que o abuso sexual é violência e não um costume cultural; que o assédio nas ruas é violência e não uma ofensa inócua. No entanto, paradoxalmente ao se exigir esse reconhecimento pelo Estado e seu sistema penal, se obteve o resultado inverso do que se se buscava. Porque, apesar de se ter avançado em estabelecer direitos antes inexistentes e em dar visibilidade ao sofrimento que a opressão patriarcal impõe, isso acabou sendo reduzido a problemas individuais, tipificados no direito penal.

Depois de décadas de luta para desnaturalizar a opressão às mulheres, para demonstrar que o machismo é estrutural na sociedade de classes e que o patriarcado é um sistema que permeia nossas vidas e relações interpessoais, se colocaram em primeiro plano os comportamentos violentos mais extremos e odiáveis de alguns indivíduos, enquanto as instituições do Estado capitalista e patriarcal foram esquecidas, ficando livres de qualquer responsabilidade, fortalecendo ainda mais seu papel punitivo. É como se o capitalismo patriarcal dissesse a nós mulheres: "As democracias capitalistas já concederam o direito à igualdade perante a lei, por isso agora a emancipação é uma questão individual pela qual só você é responsável." A direita conservadora também elaborou seu "próprio feminismo" a partir dessa concepção liberal: se se tratam apenas de direitos individuais, então pode-se reivindicar o "direito de ser dona de casa e servir ao marido e à família", o "direito a abandonar as carreiras profissionais para se dedicar unicamente ao cuidado com os filhos" etc.

O feminismo liberal é incapaz de enfrentar essa direita, porque caiu em sua própria armadilha. Mas como se está mostrando com as recentes mobilizações de mulheres em todo o mundo e os debates que gerou a vitória de Trump nos EUA, esse feminismo liberal, também chamado de "feminismo empresarial", ao qual se identifica Hillary Clinton, entrou em crise. Só um feminismo que pretenda se transformar em um movimento político de massas, onde a luta por mais direitos e liberdades democráticas esteja ligada à denúncia deste regime social de exploração e miséria para a grande maioria, com o objetivo de derrubá-lo, pode ser verdadeiramente emancipador.

Reforma do estado capitalista e mais punições para derrotar o patriarcado: uma utopia reacionária

Finalmente conseguimos que na maioria das democracias capitalistas, com todas as suas instituições – incluindo o Direito Penal – sejamos reconhecidas como vítimas do machismo. E é verdade que nós mulheres seguimos sendo vítimas da violência de gênero, de assédio e abuso sexual, de violações nas ruas, na escola, no trabalho, na igreja e em casa. Vítimas da exploração que chega a níveis insuportáveis que acabam com nossa saúde e com nossa vida. Somos especialmente vítimas "colaterais" das guerras. E somos vítimas de feminicídios.

Mas o patriarcado também insiste, dessa forma, que sejamos vistas, e nos vejamos a nós mesmas, como impotentes. Quer que sejamos incapazes de transformar radicalmente as bases dessa opressão, limitadas a buscar individualmente que o Estado aplique punições (também individuais) a quem nos violenta, obrigadas a pensar sob a mesma lógica punitivista que usa a direita política que ganha espaço em todo o mundo, forçadas a depositar nossa confiança nas mesmas instituições deste regime social que legitima e garante nossa subordinação. Para conseguir isso, o capitalismo patriarcal precisa apagar de nossa memória histórica as lutas de muitas gerações de mulheres. Precisa plantar em nós o ressentimento contra os homens que compartilham conosco as cadeias de exploração capitalista e romper os laços de solidariedade com as demais mulheres, também exploradas e oprimidas. Precisa eliminar o ódio social contra as condições absurdas em que vive a maioria da humanidade e que fizeram surgir potentes convicções para o combate ao longo da história.

Nós mulheres do Pão e Rosas não aceitamos ser as vítimas impotentes que este sistema quer que sejamos. Escolhemos, ao contrário, as potentes convicções que surgem ao sabermos que nós – assim como milhões de outros seres humanos em todas as partes do planeta – somos vítimas de uma ordem social apodrecida. Não é um ódio pessoal, subjetivo. É o ódio social que, como uma faísca, sempre acendeu a insurreição de escravas e escravos durante a história. No final do século XIX, Louise Michel, lutadora da Comuna de Paris, afirmou: "Cuidado com as mulheres quando se sentem enojadas de tudo que as rodeia e se levantam contra o velho mundo. Nesse dia nascerá o novo mundo." Nós mulheres do Pão e Rosas lutamos por esse novo mundo, livre de todas as amarras que hoje restringem a humanidade, e duplamente as mulheres.

Não pedimos, exigimos, nosso direito ao pão, mas também às rosas!

O Pão e Rosas é uma agrupação internacionalista de mulheres da Alemanha, Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Estado Espanhol, Estados Unidos, França, México, Uruguai e Venezuela. Somos militantes das correntes que integram a Fração Trotskista – Quarta Internacional[3] que, junto a companheiras trabalhadoras e estudantes independentes, compartilhamos a ideia defendida sinteticamente pela socialista Louise Kneeland em 1914: "Quem é socialista e não é feminista carece de amplitude; quem é feminista e não é socialista carece de estratégia." Ou seja, consideramos que apenas uma revolução social, que acabe com este sistema de exploração, pode criar as bases para a emancipação das mulheres. Aqui apresentamos alguns pontos centrais de nosso programa político.

Nem uma a menos!

Nós mulheres do Pão e Rosas estamos na linha de frente das lutas pelas liberdades e direitos democráticos, e também enfrentamos todos os preconceitos machistas da classe trabalhadora, que são alimentados pelas classes dominantes por meio das instituições do regime e seus agentes entre as fileiras proletárias, como a burocracia sindical. Quer dizer, diferentemente de outras correntes que se reivindicam de esquerda, não achamos que a luta por nossos direitos deve esperar para "depois da revolução" ou da "tomada do poder", como sugerem as correntes populistas ou o stalinismo. Sustentamos que enquanto lutamos por um sistema onde não existam a exploração e a opressão, é nosso dever impulsionar a luta das mulheres por melhores condições de vida que sejam possíveis ainda neste sistema, pelos direitos democráticos mais básicos. Isso é parte de nossa prática militante cotidiana, por exemplo na Argentina, onde integramos a Frente de Esquerda junto a outros partidos trotskistas, e nossas companheiras e companheiros parlamentares são reconhecidos por usar seus mandatos no Congresso Nacional e Legislaturas estaduais como uma tribuna e um ponto de apoio para a luta das mulheres por seus direitos.

Também discordamos das correntes populistas quando dizem que a organização independente das mulheres na luta por seus direitos "ameaça" a unidade da classe trabalhadora. Ao contrário, consideramos que quando uma mulher é humilhada, violentada ou discriminada por seus companheiros de classe, isso representa um enfraquecimento da classe trabalhadora. Mas quando as mulheres tomam em suas mãos a luta por seus direitos, a classe explorada fica mais fortalecida para enfrentar os exploradores. Não é nosso combate ao machismo que nos divide: é a classe dominante que alimenta os preconceitos machistas, LGBTfóbicos, xenofóbicos, racistas e nacionalistas para dividir os explorados.

O número de casos de violência contra as mulheres é altíssimo, principalmente contra meninas e mulheres jovens. Além de toda a violência psicológica, física, sexual e abusos nos locais de trabalho, também precisamos remarcar que o feminicídio é uma das maiores causas de mortes de mulheres. Na maioria desses crimes, os responsáveis são homens próximos à vítima. Trata-se do último elo de uma corrente de violências que tem sua origem na sociedade patriarcal e que se legitima, se reproduz e se justifica por meio do Estado capitalista e de suas instituições.

Por isso gritamos: Chega de violência contra as mulheres! Nenhuma a menos! Nos queremos vivas! Exigimos dos governos que implementem todas as medidas para diminuir as consequências da violência machista e prevenir os feminicídios; e também que ofereçam abrigos para as vítimas, licença remunerada do trabalho, seguro-desemprego que cubra o custo de vida para todas as mulheres que necessitarem, acesso a crédito familiar sem taxa de juros, etc.

Dizemos que se atacam uma, organizaremos milhares, e para isso impulsionamos a criação de comissões e secretarias de mulheres em todos os lugares de estudo e trabalho e nos bairros. Queremos pôr em pé movimentos de luta das mulheres, independentes do Estado e dos partidos políticos do regime capitalista. É a única opção que resta a nós mulheres para enfrentarmos e acabarmos com a violência machista.

Direito ao aborto legal, seguro e gratuito!

Em muitos países nós mulheres não temos o direito de decidir quando e como sermos mães. Apesar de haver a proibição ao aborto, isso não significa que ele ainda não aconteça em condições inseguras e clandestinas, provocando a morte das mulheres mais pobres. Aquelas que têm a sorte de sobreviver a esta situação dramática geralmente sofrem sequelas irreparáveis para sua saúde. E ainda por cima o acesso aos diversos métodos anticoncepcionais segue sendo difícil.

E se por um lado nossos filhos são considerados "estorvos" para os patrões, que não garantem creches nos locais de trabalho, deixam de pagar os benefícios sociais, ou mesmo demitem as mulheres grávidas, por outro as instituições do Estado, a família, a Igreja, a educação, nos dizem que não somos "verdadeiras mulheres" se não somos mães.

Por isso exigimos creches gratuitas para as mães custeadas pelos patrões e pelo Estado em cada local de trabalho, 24 horas por dia. Plenos direitos para as mulheres trabalhadoras mães ou grávidas. Lutamos pela educação sexual para decidir, anticoncepcionais gratuitos para não abortar e aborto legal, seguro e gratuito para não morrer. Exigimos a separação total e efetiva da Igreja e do Estado.

A vida das mulheres negras importa!

No modo de produção capitalista, além da relação entre a exploração e a opressão de gênero, a opressão racial é um problema estrutural em países como Brasil, Estados Unidos, Haiti, e em um continente inteiro como a África, entre outros mundo afora que carregam em sua história a escravidão dos negros, o comércio de escravos que demonstra como o racismo é um produto do próprio capitalismo. Carregam também muitas lutas pela libertação do povo negro que vão desde a formação dos quilombos em toda América às lutas pela independência na África traídas pelo stalinismo.

O racismo se expressa cotidianamente na vida das mulheres negras, e em cada demanda que lutamos pelo direito das mulheres podemos dizer que são as mulheres negras e também as mulheres imigrantes as que mais sofrem. Estão entre os maiores índices de mulheres assassinadas e de mulheres mortas por abortos clandestinos, são as que ocupam os piores postos de trabalho sofrendo com a precarização e terceirização. No Brasil são um verdadeiro exército de trabalhadoras domésticas sem direitos e com jornadas intermináveis. Têm também a pior média salarial em países como Brasil, chegando a receber 63% a menos que os homens e que as mulheres brancas.

Um feminismo socialista e revolucionário precisa dar a maior atenção aos setores mais explorados e oprimidos da nossa classe, mostrando que a luta pela identidade das mulheres negras só pode ter uma resposta contundente se estiver aliada a luta revolucionária pra destruir esse sistema capitalista que até os dias de hoje busca se beneficiar dos resquícios da escravidão a negras e negros. Por isso é alentador que venham surgindo movimentos no mundo inteiro lutando em defesa da vida dos negras e negros do qual viemos participando ativamente como Pão e Rosas com uma perspectiva socialista e revolucionária. Para nós, esta luta é de primeira ordem e deve ser tomada pelo conjunto da classe trabalhadora.

Por isso é fundamental lutarmos pela retirada imediata das Tropas "de Paz" no Haiti comandadas pelo governo brasileiro e rechaçando toda a intervenção imperialista neste e em outros países. Lutar pela igualdade salarial entre homens e mulheres, negros e brancos, pelo fim dos assassinatos às mulheres negras, pelo fim do trabalho precário e efetivação imediata de todas terceirizadas, sem necessidade de concurso público ou processo seletivo.

Resgatar a luta de mulheres negras como Harriet Tubman, Rosa Parks, Luiza Mahin, Dandara e tantas outras lutadoras que deixam um legado pra que nós socialistas e revolucionárias possamos resgatar à luz das tarefas da revolução operária e socialista. O grande revolucionário russo Leon Trotsky em uma frase conhecida dizia que "aqueles que mais sofreram com o velho são os que lutarão com mais força pelo novo". Isso sintetiza em poucas palavras a força revolucionária que as mulheres negras já mostraram e mostrarão nos próximos processos da luta de classes.

Espaço para a mulher trabalhadora!

A crescente feminização da força de trabalho, principalmente nos postos mais precários, de menos qualificação e menor salário, somada à manutenção das enormes desigualdades, faz crescer também as condições de opressão às mulheres. Com salários inferiores aos dos homens, piores condições, e majoritariamente excluídas das organizações sindicais onde poderíamos lutar por nossos direitos trabalhistas, nós mulheres trabalhadoras constituímos um dos setores mais explorados da classe trabalhadora mundial. E junto com essas condições de exploração ainda somos vítimas de assédio sexual e moral no trabalho. Não temos o mesmo direito de alcançar postos de trabalho mais altos, ou de conseguir determinados cargos, simplesmente por sermos mulheres. A discriminação começa já nos processos de seleção, onde os homens só precisam provar sua capacidade e experiência, e nós além disso ainda precisamos mostrar nosso corpo e dizer que não pretendemos ter filhos (ou esconde-los caso os tenhamos), isso para não falar de quando nos submetemos às mais humilhantes situações.

Essa opressão se intensifica no caso de mulheres imigrantes: Nos Estados Unidos e na Europa Central, as mulheres latino-americanas, africanas, asiáticas ou do leste europeu sofrem as consequências das leis de nacionalidade, ficando sujeitas à deportação, à perseguição policial e à maior exploração nos piores trabalhos, enquanto a extrema direita racista e xenofóbica avança.

As mulheres dos povos indígenas e as negras também são as mais exploradas e oprimidas, mesmo em seus países. As mulheres lésbicas e transexuais são discriminadas no trabalho, sofrem nas mãos da polícia e de outras instituições e são excluídas socialmente, mesmo nos países onde houve avanços nas leis anti-discriminação, onde é permitido o casamento igualitário e o foi atingido o reconhecimento das identidades de gênero. Isso porque a igualdade perante a lei ainda não é a igualdade perante a vida.
Por isso lutamos para acabar com todo o trabalho precário. Pela efetivação imediata de todas as trabalhadoras e trabalhadores. Que trabalhos iguais ofereçam as mesmas condições, direitos e salários. Igualdade de oportunidades na capacitação e nos empregos. Divisão das horas de trabalho entre todos trabalhadores empregados e desempregados, com o mesmo salário. Exigimos a criação de comissões ou secretarias de mulheres em todos os locais de trabalho e em todas as organizações sindicais. Cega de discriminação!

Mas acima de tudo, o capitalismo que nos empurra ao trabalho nas cadeias de produção, não tira nossa responsabilidade nas tarefas de reprodução da vida, que são realizadas dentro de casa e sem remuneração, duplicando nossa jornada de trabalho. Mesmo que nos países mais ricos e nos centros urbanos a tendência é cada vez maior para que se contratem trabalhadoras domésticas (em sua maioria imigrantes ou negras), esse trabalho não se elimina numa escala maior. Nos setores mais pobres, nos países atrasados e no campo o trabalho doméstico recai principalmente sobre mulheres e meninas. Isso porque é justamente desse trabalho não remunerado que advém parte dos ganhos dos capitalistas, que se eximem de pagar pela força de trabalho considerada improdutiva (como as donas de casa, os desempregados, as futuras gerações de trabalhadores e os aposentados). Quem defende a cultura patriarcal ancestral, segundo a qual os afazeres domésticos são tarefas "naturais" das mulheres, permite que esse "roubo" do nosso trabalho e do nosso tempo permaneça escondido.

Sabemos que a opressão patriarcal existe desde tempos remotos, antes mesmo do desenvolvimento do sistema capitalista, mas nenhum sistema anterior soube tão bem se apropriar dessa opressão, podendo perpetuá-la e se desenvolver a partir dela, oprimindo milhões de mulheres em todo o planeta. Mas contraditoriamente, acaba também cavando a própria cova e criando seu próprio coveiro, engrossando as fileiras da classe trabalhadora com essas milhões de mulheres trabalhadoras empurradas para o trabalho fora de casa. Por isso, não podemos pensar na opressão de gênero sem levar em conta que a imensa maioria da humanidade pertence às classes exploradas e que essa opressão fortalece ainda mais a exploração capitalista às mulheres.

***

O Pão e Rosas defende que as mulheres e homens que produzem toda a riqueza social que é expropriada pelos capitalistas são aqueles que podem acabar com este sistema de exploração e opressão. E que, na luta contra a exploração, a classe trabalhadora encontrará aliados entre aqueles que buscam se emancipar do jugo da opressão que sofrem pela cor de sua pele, por sua sexualidade, seu gênero, sua etnia, etc. Essa aliança encabeçada pela classe trabalhadora é a que será capaz de dar o golpe mortal no capitalismo, não as "alianças de oposição" aos governos, conduzidas por "setores progressistas" que na verdade representam os interesses dos patrões que vivem da exploração de nossa força de trabalho.

Por isso defendemos que é necessário romper relações com os capitalistas, com seu Estado, com os partidos políticos que defendem seus interesses e com seus infiltrados na classe trabalhadora, que só servem para trair as lutas da classe trabalhadora. Quer dizer, afirmamos a necessidade de independência política da classe trabalhadora e abraçamos todos os passos que se dão nesse sentido.

Nossa luta pela emancipação das mulheres é parte, também, de nossa luta para construir um partido revolucionário da classe trabalhadora – em cada país e no nível internacional –, com um programa anticapitalista, operário e revolucionário que conduza à revolução socialista para impor um governo operário que seja, por sua vez, um ponto de apoio na luta para acabar com o capitalismo e com todas as formas de exploração e opressão.

Viva a luta das mulheres por nossa emancipação para lutar com igualdade de condições ao lado de todos os oprimidos e explorados, no caminho para a revolução social!

Viva a revolução social para assentar as bases da libertação definitiva das mulheres e de toda a humanidade contra as correntes que hoje nos oprimem!

Coloquemos de pé o grupo internacional de mulheres Pão e Rosas!


[1] Nos referimos fundamentalmente ao Ocidente porque não é igual o processo nos países do Oriente ou do norte de África.

[2] Apesar de sermos críticas a essas correntes feministas radicais que, em sua maioria, opõem mulheres contra homens, o período foi um celeiro de debates sobre se a base da opressão das mulheres está na propriedade e controle da capacidade reprodutiva das mulheres, por parte dos homens; se os homens exploram o trabalho não remunerado das mulheres em todos os setores sociais, incluindo o seu afeto - e se apropriam de seu produto etc. Feministas socialistas, entretanto - retomando o método do materialismo histórico e elaborações de Marx e Engels - destacaram, nesses debates, a relação indissociável da atual opressão patriarcal com o modo de produção capitalista, na qual o trabalho doméstico tem um papel fundamental na reprodução gratuita da força de trabalho.

[3] As organizações que integram a Fração Trotskista – Quarta Internacional são: Revolutionäre Internationalistische Organisation (RIO) da Alemanha; Partido de los Trabajadores Socialistas (PTS) da Argentina; Liga Obrera Revolucionaria por la Cuarta Internacional (LOR-CI) da Bolívia; Movimento Revolucionário de Trabalhadores (MRT) do Brasil; Partido de Trabajadores Revolucionarios (PTR) do Chile; Clase contra Clase (CcC) do Estado Espanhol; Left Voice dos Estados Unidos; Courant Communiste Révolutionnaire (CCR) da França; Movimiento de los Trabajadores Socialistas (MTS) do México; Liga de Trabajadores por el Socialismo (LTS) da Venezuela e FT-CI no Uruguai.

Tradução: Barbara Molnar e Heitor Carneiro




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