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Literatura e Revolução: Arte Revolucionária e Arte Socialista

Leon Trótski

Literatura e Revolução: Arte Revolucionária e Arte Socialista

Leon Trótski

Nesse mês que se completam 81 anos do assassinato de Leon Trótski por um agente a mando de Stalin, retomamos uma das suas mais importantes publicações sobre cultura e revolução. Neste texto de 1924, Trótski busca refletir as relações e possibilidades de uma arte revolucionário e uma arte socialista a partir do intenso processo de transformações no interior da revolução russa.

Quando se fala de arte revolucionária, pensa-se em dois tipos de fenômenos artísticos: as obras cujos temas refletem a Revolução e as que, não se ligando à Revolução pelo tema, estão profundamente tomadas e coloridas pela nova consciência que dela surgiu. Estes são fenômenos, é claro, que pertencem ou poderiam pertencer a planos inteiramente distintos. Aleksis Tolstói, no seu romance O caminho dos tormentos, descreveu o período da guerra e da Revolução. Ele integra a velha escola de Iasnaia-Poliana, com menor envergadura, um ponto de vista mais estreito. Quando se refere aos grandes acontecimentos, isso serve apenas para lembrar com crueldade o que Iasnaia-Poliana foi e não é mais. Mas, quando o jovem poeta Tikhonov descreve um armazém — parece que ele tem medo de falar sobre a Revolução —, percebe e reproduz a inércia e a imobilidade com tal leveza e apaixonada veemência que só um poeta da nova época pode fazer.

A arte revolucionária e as obras sobre a Revolução não constituem, assim, uma única e mesma coisa. Elas têm pontos de contato. Os artistas criados pela Revolução só podem escrever sobre ela. A arte que terá realmente alguma coisa a dizer sobre a Revolução deverá, por outro lado, rejeitar sem piedade o ponto de vista do velho Tolstói, seu espírito de grande senhor e sua amizade pelo mujique [1].

Não existe ainda arte revolucionária. Há elementos dessa arte, sinais, tentativas de realizá-la e, antes de tudo, o homem revolucionário, que forma a nova geração à sua imagem e que necessita cada vez mais dessa arte. Quanto tempo transcorrerá para que ela claramente se manifeste? É difícil adivinhar. Trata-se de um processo imponderável, que não se pode calcular. Mesmo quando pretendemos determinar a duração dos processos sociais, limitamo-nos a meras suposições. Por que essa arte, ao menos a primeira grande onda, não chegaria logo, como a arte da geração que nasceu da Revolução e que é conduzida por ela?

A arte da revolução, que reflete abertamente todas as contradições de um período de transição, não se deve confundir com a arte socialista, para a qual as bases ainda não existem. Não se pode esquecer, entretanto, que a arte socialista surgirá do que se fizer nesse período.

Não é por amor aos esquemas pedantes que insistimos nessa distinção. Engels não caracterizou gratuitamente a revolução socialista como o salto do reino da necessidade para o reino da liberdade. A Revolução não representa ainda o reino da liberdade. Ela, ao contrário, desenvolve ao mais alto grau os traços da necessidade. O socialismo abolirá os antagonismos de classe ao mesmo tempo que as próprias classes, mas a Revolução leva ao seu auge aqueles antagonismos. Durante a Revolução, a literatura — que fortalece os operários na sua luta contra os exploradores — é necessária e progressiva. A literatura revolucionária deve estar impregnada do ódio social que, na ditadura do proletariado, constitui um aspecto criador nas mãos da história. Toda a literatura e toda a arte precisam afinar-se em outro ritmo. Todas as emoções que nós, revolucionários de hoje, hesitamos em chamar pelos seus nomes, de tanto que os hipócritas e vulgares aviltaram-nas, a exemplo da amizade desinteressada, o amor ao próximo e a simpatia, ressoarão como poderosos acordes na poesia socialista.

Um excesso de solidariedade não ameaçaria degenerar o homem num animal sentimental, passivo, como os nietzschianos temem? De modo algum. A poderosa força da emulação, que na sociedade burguesa se reveste das características da concorrência no mercado, não desaparecerá na sociedade socialista. Para usar a linguagem da psicanálise, ela será sublimada, isto é, assumirá forma mais elevada e fecunda, convertendo-se em luta pela própria opinião, pelo próprio projeto e pelo próprio gosto. À proporção que cessem as lutas políticas — numa sociedade onde não haja classes não haverá tais lutas —, as paixões liberadas irão se voltar para a técnica, para a construção, inclusive da arte, que naturalmente se tornará mais geral, madura, forte, a forma ideal de edificação da vida em todos os terrenos. A arte não será simplesmente aquele belo acessório sem relação com qualquer coisa.

Todas as esferas da vida, como a cultura do solo, o plano de habitações, a construção de teatros, os métodos de educação, a solução dos problemas científicos, a criação de novos estilos, tudo interessará a cada um e a todos. Os homens irão se dividir em partidos diante de um novo canal gigante ou da distribuição de oásis no Saara (esta questão também existirá), da regularização do clima, do novo teatro, de hipóteses químicas, das tendências da música, do melhor sistema de esportes. Semelhantes agrupamentos não serão envenenados com qualquer egoísmo de classe ou casta. Todos irão se interessar pelas realizações da coletividade. A luta assumirá um caráter puramente intelectual. Nada terá com a corrida aos lucros, a vulgaridade, a traição e a corrupção — tudo isso que constitui a essência da competição na sociedade dividida em classes.

Nem por isso a luta será menos excitante, dramática e apaixonada. E como os problemas da vida — que outrora se resolviam de modo espontâneo e automático, tanto quanto os da arte, submetidos à tutela de castas sacerdotais — irão se tornar o patrimônio de todo o povo na sociedade socialista, pode-se dizer com certeza que interesses coletivos, paixões e concorrência individual encontrarão campo mais vasto e oportunidades ilimitadas para se exercitar.

A arte não sentirá falta dessas descargas de energia nervosa e desses impulsos psíquicos da coletividade que geram novas tendências artísticas e mutações de estilo. As escolas estéticas irão se agrupar em torno de seus partidos, isto é, associações formadas por temperamentos, preferências e tendências intelectuais. Numa luta tão desinteressada e intensa sobre bases culturais que constantemente aumentarão, a personalidade humana, com suas inestimáveis qualidades de não se contentar com o que até agora conseguiu, poderá se aperfeiçoar em todos os sentidos. Não temos razão alguma para temer que, na sociedade socialista, a personalidade se entorpeça ou conheça a prostração.

Qual dos antigos nomes mais se adapta para designar a arte? O camarada Osinski, em algum lugar, chama-a de realista. Isso é verdadeiro e significativo, mas devemos definir esse conceito a fim de evitar equívocos.

O realismo mais perfeito coincide, na nossa história, com a idade de ouro da literatura, ou seja, com o classicismo da nobreza.

O período da literatura de tendência, quando se julgava uma obra em primeiro lugar de acordo com as intenções sociais do seu autor, coincide com a etapa em que a intelligentsia, despertando, buscava a atividade pública e tentava ligar-se ao povo em sua luta contra o velho regime.

A escola decadente e o simbolismo, que nasceram em oposição ao realismo dominante, correspondem à época em que a intelligentsia, separada do povo, adorando seus próprios feitos e de fato submetida à burguesia, não queria dissolver-se psicológica e esteticamente na burguesia. Nesse transe, o simbolismo invocou o auxílio do céu.

O futurismo de antes da guerra representou uma tentativa da intelligentsia para salvar-se, por meio de um plano individualista, do naufrágio do simbolismo e para encontrar um ponto de apoio pessoal nas realizações impessoais da cultura material.

Eis, grosso modo, a lógica da sucessão dos grandes períodos na literatura russa. Cada uma dessas tendências compreendia uma concepção social ou uma atitude de grupo diante do mundo que deixava seu selo em temas, conteúdo, escolha do ambiente, caráter dos personagens etc. A idéia de conteúdo não se liga ao assunto, no sentido formal do termo, mas à concepção social. Uma época, uma classe e seus sentimentos podem expressar-se tanto no lirismo sem tema como num romance social.

Apresenta-se, em seguida, a questão da forma, que, dentro de certos limites, se desenvolve de acordo com suas próprias leis, como qualquer outra técnica. Cada nova escola literária — quando se trata realmente de uma escola, e não de um enxerto arbitrário — resulta de todo o desenvolvimento anterior, da técnica das palavras e das cores já existentes, e se afasta das praias para novas viagens e outras conquistas.

Nesse caso a evolução também é dialética: a nova tendência artística nega a anterior. Por quê? Certos sentimentos e pensamentos se vêem tolhidos nos limites dos velhos métodos. Mas, ao mesmo tempo, encontram, na antiga arte fossilizada alguns elementos que, pelo desenvolvimento ulterior, podem lhe propiciar a expressão necessária. A bandeira da revolta levanta-se contra o velho, no seu conjunto, em nome de elementos que se podem desenvolver. Cada escola literária está em potencial contida no passado, e se desenvolve por uma ruptura hostil com ele. Determina-se a relação recíproca entre forma e conteúdo (entendendo-se por conteúdo não só o tema, mas o complexo vivo de sentimentos e idéias que reclamam uma expressão artística) pela nova forma descoberta, proclamada e desenvolvida sob a pressão de uma necessidade interior, de uma exigência psicológica coletiva que, como toda a psicologia humana, tem raízes na sociedade.

Daí a dualidade de qualquer tendência literária: de um lado, ela acrescenta alguma coisa à técnica da arte, elevando ou rebaixando o nível geral do ofício; de outro, sob sua forma histórica concreta, expressa exigências definidas que, em última análise, constituem exigências de classe. Estas significam também exigências individuais: por meio do indivíduo exprime-se sua classe. E igualmente significam exigências nacionais, pois o espírito de uma nação é determinado pela classe que a dirige e que a si subordina a literatura.

Vejamos o simbolismo. Que significa? A arte de transformar simbolicamente a realidade como método formal de criação artística? Ou a tendência particular representada por Blok, Sologub e outros? O simbolismo russo não inventou os símbolos. Só fez enxertá-los de modo mais íntimo no organismo da moderna língua russa. A arte de amanhã, quaisquer que sejam seus caminhos, não desejará renunciar à herança formal do simbolismo. O simbolismo russo real, em determinados anos, serviu-se do símbolo para determinado fim social. Quais?

A escola decadente, que precedeu o simbolismo, buscou uma solução para todos os problemas artísticos no âmbito das experiências vividas pela personalidade: sexo, morte etc., ou, sobretudo, sexo e morte. Só podia esgotar-se em muito pouco tempo. Seguiu-se, não sem certo impulso social, a necessidade de encontrar uma sanção para suas exigências, sentimentos e humores de espírito, e assim enriquecê-los e elevá-los a um plano superior. O simbolismo, que fez da imagem não só um método artístico, mas um símbolo de fé, serviu para a intelligentsia como a ponte que levaria ao misticismo. O simbolismo, de modo socialmente concreto, e não abstratamente formal, não constituiu apenas um método de técnica artística, mas uma fuga da realidade pela construção de um mundo do além, a complacência na soberana fantasia, a contemplação e a passividade. Encontramos em Blok um Jukóvski modernizado.

Os velhos textos e panfletos marxistas (de 1908 e dos anos seguintes), por mais elementares que fossem algumas de suas generalizações, apresentaram um diagnóstico e um prognóstico sobre o declínio literário, incomparavelmente mais significativos e corretos que os estudos do camarada Tchujak, que se debruçou sobre o problema antes e de forma mais atenta que outros marxistas, mas sob a influência de escolas artísticas contemporâneas. Ele aí viu as etapas da acumulação de uma cultura proletária, e não as etapas através das quais, progressivamente, a intelligentsia se afastava das massas.

Que se entende por realismo? Este, em vários períodos, refletiu sentimentos e necessidades de diferentes grupos sociais por meios bem diversos. Cada uma das escolas realistas requer uma definição literária e social e uma avaliação literária formal distintas. Que têm em comum? Certo interesse, não sem importância, por tudo o que diz respeito ao mundo, pela vida tal como é. Longe de fugir da realidade, elas a aceitam, em sua estabilidade concreta ou em sua variabilidade. Esforçam-se para pintar a vida tal como é ou para fazê-la o ápice da criação artística, seja para justificá-la ou condená-la, seja para fotografá-la, generalizá-la ou simbolizá-la. Mas é sempre preocupação com a vida, em suas três dimensões, como inestimável e completa matéria de criação artística.

No mais amplo sentido filosófico, e não no sentido estreito de uma escola literária, pode-se dizer com segurança que a nova arte será realista. A Revolução não pode coexistir com o misticismo. Se o que Pilniak, os imaginistas e alguns outros chamam de romantismo representa, como se pode recear, um tímido impulso de misticismo sob novo nome, a Revolução não o tolerará por muito tempo. Dizê-lo não é mostrar-se doutrinário, mas julgar com justiça. Não se pode trazer, nos dias atuais, um misticismo transportável, algo assim como um pequeno cão, que se carrega.

A época de hoje corta como um machado. A vida amarga, tempestuosa, profundamente perturbada, diz: “Necessito de um artista capaz de um só amor. De qualquer modo que tu te aposses de mim, quaisquer que sejam as ferramentas e os instrumentos que escolhas, entrego-me a ti, ao teu temperamento, ao teu gênio. Mas deves me apreciar como sou, tomar-me como me tornei, e não ter nenhuma outra a meu lado.”

Eis um monismo realista segundo uma concepção filosófica, e não um realismo de acordo com o repertório tradicional das escolas literárias. O novo artista, ao contrário, necessitará de todos os métodos e procedimentos criados no passado, além alguns outros, para compreender a nova vida. E isso não constituirá ecletismo artístico, pois a unidade da arte é criada pela percepção ativa do mundo.

Muitas vezes, nos anos 1918 e 1919, se encontravam na frente de batalha colunas de tropas começando com a cavalaria e terminando com os carros, que transportavam atores, atrizes, cenários e outros acessórios. O lugar da arte, em geral, está no trem do desenvolvimento histórico. Por causa das rápidas mudanças nas frentes de batalha, os carros com atores e cenários ficavam numa situação difícil, não sabendo para onde ir. E muitas vezes caíam nas mãos dos brancos. Em posição não menos difícil que se acha toda a arte, surpreendida por inesperada e brusca mudança no front da história.

O teatro está numa posição em particular difícil e não sabe para onde vai nem o que mostrar. Nota-se que, como forma de arte, talvez a mais conservadora, possui os teóricos mais radicais. Todo mundo sabe que o grupo mais revolucionário na União da República Soviética compõe-se dos críticos teatrais. Ao primeiro sinal de uma revolução, no Ocidente ou no Oriente, seria bom organizá-los num batalhão militar especial de Levtretsi (críticos teatrais de esquerda). Quando os nossos teatros apresentam A filha da senhora Angot, A morte de Tarelkin, Turandot, os veneráveis Levtretsi mostram-se pacientes.

Quando, entretanto, chegou a vez do drama de Martinet A noite, [2] eles se rebelaram antes mesmo que Meyerhold a encenasse. A peça é patriótica! Martinet é um pacifista! E um dos críticos declarou: “Para nós é do passado e, por conseguinte, sem o menor interesse.” Um filisteísmo desprovido do menor grau de espírito revolucionário oculta-se por trás desse esquerdismo. Se devemos retomar as coisas do ponto de vista político, diríamos que Martinet era um revolucionário e internacionalista numa época em que inúmeros dos nossos representantes atuais da extrema esquerda ainda nem imaginavam a Revolução.

O drama de Martinet pertence ao passado? Que quer dizer isso? A revolução social na França já ocorreu? Já triunfou? Devemos considerar uma revolução na França como um drama histórico independente ou somente como enfadonha repetição da Revolução Russa? Esse esquerdismo abrange, entre muitas outras coisas, a mais vulgar estreiteza nacional. Não há dúvida de que a peça de Martinet peca pela prolixidade e mais parece um drama livresco que uma peça teatral. O próprio autor quase não esperava que a encenassem.

Esses defeitos permaneceriam em segundo plano se o teatro considerasse a peça sob seu aspecto concreto, histórico, nacional, isto é, como o drama do proletariado francês numa determinada etapa de sua grande marcha, e não como o esboço de um mundo apoiado sobre as pernas traseiras. Transpor a ação de determinado meio histórico para outro, abstratamente constituído, significa se separar da revolução, dessa revolução real, verdadeira, que se desenvolve obstinada e passa de um país para outro. E que, por conseguinte, para alguns pseudo-revolucionários, parece ser a repetição monótona do que viveram.

Não sei se o palco precisa hoje da biomecânica, se esta consta da lista das mais urgentes necessidades históricas. Não duvido, porém, se me permitem empregar uma expressão subjetiva, da necessidade que tem o teatro russo de um repertório novo que focalize a vida revolucionária, e sobretudo da necessidade de uma comédia soviética. Deveríamos ter o nosso próprio Mineiro, nossa própria Infelicidade de ter muito espírito e nosso próprio Inspetor-geral [3]. Não uma nova encenação dessas velhas comédias, não uma paródia carnavalesca a fim de atender às exigências soviéticas, ainda que isso seja 99% dos casos vitais para o nosso repertório.

Temos simplesmente necessidade de uma comédia de costumes soviéticos que suscite riso e indignação. Uso de propósito os termos dos velhos manuais de literatura e não temo que me acusem de retrógrado. A nova classe, a nova vida, os novos vícios e a nova estupidez exigem que se levante o véu. Quando isso acontecer, teremos uma nova arte dramática, porque é impossível mostrar a nova estupidez sem outros métodos.

Quantos novos Mineiros aguardam que os representem no palco? Quantas preocupações surgem do fato de que se tem ou se pretende ter muito espírito. Como seria bom que um novo Inspetor-geral andasse pelos campos soviéticos. Não invoque a censura teatral. Não seria verdadeiro. Decerto se a comédia tentasse dizer: “Vejam onde nos conduziram, retornemos ao doce e velho ninho da nobreza”, a censura a proibiria e agiria como convém. Mas se a comédia diz: “Agora estamos em via de construir nova vida e eis a sujeira, a vulgaridade, a servidão antiga e nova, que precisamos limpar”, então a censura não a proibirá. Se ela interviesse incorreria numa estupidez contra a qual nos levantaríamos.

Nas raras ocasiões em que, diante da cortina levantada, eu devia guardar com polidez meus bocejos para não ofender ninguém, impressionava-me bastante o fato de que o auditório apanhava com muita vivacidade toda alusão, mesmo a mais insignificante, à vida atual. Percebe-se isso nas operetas reanimadas pelo Teatro de Arte, com sua alegria cheia de espinhos, grandes e pequenos (não há rosas sem espinhos!). Ocorre-me a idéia de que, se não estamos ainda mortos para a comédia, deveríamos ao menos montar uma revista social.

O teatro evidentemente sairá, no futuro, de suas quatro paredes e descerá à vida das massas, que se submeterão ao ritmo da biomecânica etc. Isto é, afinal, futurismo, exatamente a música de um futuro distante. Entre o passado do qual se alimentou o teatro e o futuro muito distante existe, porém, o presente no qual vivemos. Entre o passadismo e o futurismo, seria bom dar no palco uma oportunidade ao presentismo. Votamos por esta última tendência. Com uma boa comédia soviética, o teatro iria se reanimar durante alguns anos, e talvez passássemos a considerar a tragédia, e com alguma base, a expressão mais elevada da arte literária.

Esta época infiel, atéia, pode criar uma arte monumental? — perguntaram certos místicos, prontos a aceitar a Revolução sob a condição de que esta lhes garanta o céu. A tragédia é a forma monumental da arte literária. A Antigüidade clássica baseou a tragédia na mitologia. Profunda fé no destino, que dava sentido à vida, impregna toda a tragédia antiga. A arte monumental da Idade Média, por sua vez, vincula-se à mitologia cristã, que imprimiu sua marca não só às catedrais e aos mistérios, mas a todas as relações humanas. Ela só se tornou possível graças à unidade do sentimento religioso e à sua ativa participação na vida.
Quando se elimina a fé (não falamos do vago sussurro que se produziu na alma da intelligentsia moderna, e sim da religião real, com Deus, lei celeste e hierarquia eclesiástica), desnuda-se a vida, e não há lugar para os conflitos supremos do herói, do destino, do pecado e da expiação. O conhecido místico Stepun tenta abordar a arte desse ponto de vista em seu artigo “A tragédia e a época atual”. Ele parte das necessidades da própria arte, promete uma nova arte monumental, mostra a perspectiva de um renascimento da tragédia e, como conclusão, exige, em nome da arte, que nos submetamos às potências celestes!

Há uma lógica insinuante na construção de Stepun. O autor de fato não quer saber da tragédia. Que importam as leis da tragédia face à legislação do céu? Ele pretende agarrar a nossa época pelo dedo mínimo da estética trágica e assim apossar-se de toda a mão, método puramente jesuítico. De um ponto de vista dialético, o raciocínio de Stepun é formalista e superficial. Ignora os fundamentos materiais da história sobre os quais nasceram o drama antigo e a arte gótica, e a partir dos quais surgirá a nova arte.

A fé no destino inevitável revelava os limites estreitos nos quais o homem antigo, de pensamento lúcido mas técnica pobre, se confinava. Não podia empreender a conquista da natureza na escala que o fazemos hoje, e a natureza pairava acima dele como o fado. A limitação e a rigidez dos meios técnicos, a voz do sangue, a doença, a morte, tudo o que comprime e estabelece fronteiras, isso é o fado. O trágico exprimia uma contradição entre o mundo da consciência despertada e a limitação dos meios. A mitologia não criou a tragédia, somente a exprimiu na linguagem simbólica, própria da infância da humanidade.

Na Idade Média, a concepção espiritual da redenção e, em geral, todo o sistema de contabilidade de saída dupla (uma celeste e a outra terrena) gerado pelo dualismo da religião, e em particular do cristianismo histórico, isto é, do verdadeiro cristianismo, não criaram as contradições da vida. Refletiram-nas apenas, e na aparência, as resolveram. A sociedade medieval superou suas crescentes contradições pela transferência de uma nota promissória para o filho de Deus: as classes dirigentes assinaram-na, a hierarquia eclesiástica endossou-a para a burguesia e as massas oprimidas se preparavam para descontá-las no outro mundo.

A sociedade burguesa, atomizando as relações humanas, conferiu-lhes flexibilidade e mobilidade sem precedentes. A unidade primitiva da consciência, que constituía a base de uma arte religiosa monumental, desapareceu, ao mesmo tempo que as relações econômicas primitivas. A religião adquiriu um caráter individualista com a Reforma. Os símbolos religiosos da arte, cortado o seu cordão umbilical com o céu, desabaram e buscaram um ponto de apoio no vago misticismo da consciência individual.

Nas tragédias de Shakespeare, que não podiam ser concebidas sem a Reforma, as paixões humanas individuais, tais como amor, inveja, sede de vingança, avidez e conflito de consciência, expulsam a fatalidade dos antigos e as paixões da Idade Média. A paixão individual, em um dos dramas de Shakespeare, chega a tal ponto de tensão que supera o homem, ergue-se sobre ele e se converte numa espécie de fatalidade: a inveja de Otelo, a ambição de Macbeth, a avareza de Shylock, o amor de Romeu e Julieta, a arrogância de Coriolano, a perplexidade intelectual de Hamlet. A tragédia de Shakespeare é individualista, e nesse sentido não tem a significação geral de Édipo Rei, que traduz a consciência de todo um povo. Comparado a Ésquilo, Shakespeare representa enorme passo adiante, e não um passo atrás. A arte de Shakespeare é mais humana. Não mais aceitaremos, em todo caso, uma tragédia na qual Deus ordena e o homem obedece. Nem haverá mais quem a escreva.

A sociedade burguesa, ao atomizar as relações humanas, propusera-se um grande objetivo durante seu desenvolvimento: a libertação da personalidade. Dele nasceram os dramas de Shakespeare e o Fausto de Goethe. O homem considerava-se o centro do Universo e, por conseguinte, da arte. Esse tema satisfez durante séculos. Toda a literatura moderna resultou de sua exploração. O objetivo inicial — a libertação e a qualificação da personalidade — desvaneceu-se, todavia, no domínio de uma nova mitologia sem alma, quando se revelou a insuficiência da sociedade existente em face de suas insuportáveis contradições.

O conflito entre o pessoal e o que se acha além do pessoal pode desenrolar-se na esfera religiosa como também no domínio de uma paixão humana que ultrapassa o homem. O que está além do indivíduo é antes de tudo o elemento social. A organização da sociedade permanecerá acima do homem, como o fado, enquanto ele não a dominar. Que se despoje da aparência religiosa ou não, isso é secundário e depende do grau de desamparo do homem. A luta de Babeuf pelo comunismo numa sociedade que ainda não estava amadurecida para sua implantação reproduziu a luta do herói antigo contra o destino. A sorte de Babeuf possui todas as características de uma verdadeira tragédia, exatamente como a dos Graco, dos quais Babeuf tomou o nome.
A tragédia das paixões pessoais exclusivas é muito insípida para o nosso tempo. Por quê? Porque vivemos numa época de paixões sociais. A tragédia de nossa época consiste no conflito entre o indivíduo e a coletividade, ou entre duas coletividades hostis no seio de um mesmo indivíduo. Nossa época volta a ser a dos grandes objetivos. Isso é o que a caracteriza. Sua grandeza reside no esforço do homem para libertar-se das nuvens místicas ou ideológicas a fim de construir a sociedade e a si mesmo de acordo com um plano por ele elaborado. Trata-se de um empreendimento mais grandioso que o brinquedo dos antigos, próprio de sua época infantil, que o delírio dos monges medievais, que a arrogância individualista, destacando o indivíduo da coletividade e esgotando-o depressa até precipitá-lo no abismo do pessimismo, a menos que se ajoelhe diante do boi Ápis, a pouco restaurado.

A tragédia constitui uma expressão elevada da literatura porque implica a tenacidade heróica dos esforços na determinação de fins, conflitos e paixões. Stepun tinha razão ao considerar insignificante nossa arte da véspera, conforme sua expressão, isto é, a arte de antes da guerra e da Revolução.
Sociedade burguesa, individualismo, Reforma, drama shakespeariano e grande Revolução não deixaram lugar ao sentido trágico dos fins que se fixavam de fora. Um grande fim deve responder à consciência de um povo ou da classe dirigente para criar o heroísmo, preparar o solo onde nascem os grandes sentimentos que animam a tragédia. A guerra czarista, cuja finalidade não penetrava a consciência, só deu origem a versos baratos, a uma poesia individualista de trapaça, incapaz de elevar-se à objetividade e à grande arte.

A escola decadente e o simbolismo, com todas as suas ramificações, constituíam, do ponto de vista da ascensão da arte na história, como forma social, rabiscos, exercícios, vagos acordes de instrumentos. A véspera foi, na arte, um tempo sem objetivo. Aqueles que o possuíam não tinham tempo para dedicar à arte. Agora, porém, pode-se chegar a grandes objetivos por meio da arte. É difícil prever se a arte revolucionária terá tempo para produzir uma grande tragédia revolucionária. Mas a arte socialista renovará a tragédia. Sem Deus, é claro.

A nova arte será ateísta. Despertará a comédia, porque o novo homem deseja rir. Dará nova vida ao romance. Concederá todos os direitos ao lirismo, porque o novo homem amará melhor e mais intensamente que os antigos, e terá outras idéias sobre o nascimento e a morte. A nova arte reviverá todas as formas que surgiram no curso do desenvolvimento do espírito criador. A desintegração e o declínio dessas formas não significam, em absoluto, que sejam incompatíveis com o espírito dos novos tempos. Basta que o poeta da nova época se ajuste de outro modo às idéias e aos sentimentos da humanidade.

A arquitetura, nesses últimos anos, foi a arte que mais sofreu. E não somente na Rússia. As velhas construções aos poucos caem em ruínas, e não se edificam novas. Existe uma crise de habitação no mundo inteiro. Quando os homens, depois da guerra, recomeçaram a trabalhar, eles voltaram-se em primeiro lugar para as necessidades cotidianas, e só depois para o reerguimento dos meios de produção e das residências. Por fim, as destruições provocadas pela guerra e pelas revoluções servirão à arquitetura, da mesma forma que o incêndio de 1817 contribui para o embelezamento de Moscou. Se existia na Rússia menos cultura material a destruir que nos outros países, as destruições foram maiores, e a reconstrução caminha de modo incomparavelmente mais difícil. Não surpreende que negligenciássemos a arquitetura, a mais monumental das artes.

Agora começamos aos poucos a calçar de novo as ruas. A restabelecer as canalizações, a concluir as casas inacabadas. Só fizemos começar. Construímos em madeira a Exposição Agrícola de Moscou. Devemos aguardar antes que possamos construir em larga escala. Os autores de projetos gigantescos como Tátlin terão tempo para refletir, corrigi-los ou revê-los de forma radical. Não pensamos, é claro, que continuaremos a consertar ruas e casas por dezenas de anos ainda.

Nesse processo, como em todos os outros, há períodos de consertos, de lenta preparação e acumulação de forças, e períodos de rápido desenvolvimento. Logo que se atendam às necessidades mais urgentes da vida e haja um excedente, o Estado soviético colocará na ordem do dia a questão das construções gigantescas, nas quais se encenará o espírito de nossa época. Tátlin tem razão, sem dúvida, ao retirar de seu projeto os estilos nacionais, a escultura alegórica, as peças de estuque, os ornamentos e enfeites, tentando utilizar de forma correta seu material. Foi assim que sempre se construíram máquinas, pontes e mercados cobertos. Resta provar que Tátlin tem razão no que concerne às suas próprias invenções: o cubo giratório, a pirâmide e o cilindro, todos de vidro. As circunstâncias darão a ele tempo para arrumar os argumentos em seu favor.

Maupassant odiava a Torre Eiffel. Não se obriga ninguém a imitá-lo. É verdade que a Torre Eiffel dá uma impressão contraditória: atrai pela simplicidade de sua forma e ao mesmo tempo repele pela inutilidade. Que contradição: utilizar a matéria de modo extremamente racional na construção de uma torre tão alta, mas para quê? Não é uma construção, é um exercício de construção.

Hoje, como se sabe, a Torre Eiffel serve de estação de rádio. Isso lhe dá um sentido e a torna esteticamente mais harmoniosa. Se a construíssem desde o início como estação de rádio, suas formas provavelmente se tornariam mais racionais e, portanto, conseguiriam maior perfeição artística.

O projeto de Tátlin, desse ponto de vista, parece menos satisfatório. Ele propõe a construção em vidro das salas de reuniões para o Conselho Mundial dos Comissários do Povo, para a Internacional Comunista etc. As vigas de sustentação, os pilares que suportam o cilindro e a pirâmide de vidro — que só servem para isso — são tão grosseiros e pesados que se assemelham a um andaime esquecido. Não se compreende por que estão aí. Dizem que para sustentar o cilindro giratório, no qual se realizarão as reuniões. Respondemos que as reuniões não precisam realizar-se num cilindro, e o cilindro não deve necessariamente girar.

Lembro-me de que vi, na minha infância, uma igreja construída dentro de uma garrafa de cerveja. Minha imaginação se excitou e me perguntei: para que serve? Tátlin segue o caminho oposto. Ele pretende encerrar a garrafa de vidro, para o Conselho Mundial de Comissários do Povo, na espiral de um templo de concreto. E de novo pergunto: por quê? Mais exatamente: aceitaríamos o cilindro e sua rotação se simplicidade e leveza se combinassem na construção, se os mecanismos que servem para fazê-lo girar não esmagassem toda a obra.

Não podemos, do mesmo modo, aprovar os argumentos que pretendem mostrar a importância, como arte, da escultura de Jacob Lipschitz. A escultura deve perder sua independência fictícia, uma independência que a relega à retaguarda da vida ou a deixa vegetar no cemitério dos museus, para unir-se à arquitetura numa síntese mais elevada. A escultura deve encontrar uma aplicação utilitária no mais amplo significado do termo.

Muito bem. Como aplicar essas idéias à plástica de Lipschitz? A fotografia mostra-nos dois planos que se cortam, esquematizando um homem sentado que segura um instrumento de corda. Dizem-nos que se não é utilitário ao menos é funcional. Em que sentido? Para julgar a funcionalidade ou a eventual utilidade dessas superfícies que se cortam, com suas formas angulosas e salientes, a escultura acabaria por transformar-se num cabide. Se o escultor se propusesse fazer um cabide, encontraria uma forma seguramente mais apropriada. Não podemos, em todo caso, recomendar que se molde no gesso esse cabide.

Resta a hipótese de que a escultura plástica de Lipschitz e as formas verbais de Kruchênik não passem de simples exercícios técnicos, escalas da música, da palavra e da escultura do futuro. Nesse caso, não apresentem exercícios como se fossem música. Deixemos que fiquem nos ateliês e não mostremos suas fotografias.

Não há dúvida de que no futuro, sobretudo num futuro distante, as tarefas monumentais, tais como os planos das cidades-jardins, das casas-modelo, das vias férreas e dos portos, interessarão arquitetos e engenheiros que participam das competições, e às massas populares. Em vez do amontoado, como os formigueiros, de quarteirões e ruas, pedra sobre pedra colocada de geração em geração, o arquiteto, compasso e mapa na mão, construirá, pró e contra, verdadeiros partidos técnico-arquitetônicos, com agitação, paixões, comícios e pleitos para discutir e votar esses planos.

A arquitetura palpitará de novo na excitação dos sentimentos e no estado de espírito das massas, numa escala elevada, e a humanidade educada mais plasticamente se habituará a considerar o mundo como dócil argila própria para esculpir formas sempre mais belas de vida. O muro que separa a arte da indústria ruirá. O grande estilo do futuro será plástico, não ornamental. Os futuristas, nesse aspecto, têm razão. Não se pode falar portanto de liquidação da arte, de sua eliminação pela técnica.

Consideremos um canivete. A arte e a técnica aí podem combinar-se de dois modos: ou bem se decora o canivete, pintando no cabo a figura de uma beleza premiada em concurso, ou a Torre Eiffel, ou bem a arte ajuda a técnica a encontrar uma forma ideal de canivete que corresponda melhor ao material, à função. Seria falso pensar que se possa chegar aí por meios puramente técnicos, porque o objeto e o material permitem incalculável número de variações.

Para fabricar um canivete ideal, deve-se ter, ao lado do conhecimento sobre as propriedades do material e dos métodos para usá-lo, imaginação e gosto. Na linha de evolução da cultura industrial, cremos que a imaginação artística se preocupará em criar a forma ideal de um objeto como tal, e não em ornamentá-lo como um prêmio a ele acrescentado. Se isso vale para um canivete, vale ainda mais para o mobiliário, o teatro e a vila. O que — repetimos — não significa a liquidação da arte dos ateliês, nem mesmo no futuro mais distante. Significa que a arte deve cooperar estreitamente com todos os ramos da técnica.

A indústria absorverá a arte ou a arte elevará a indústria a seu Olimpo? A resposta será uma ou outra, segundo o lado pelo qual se aborde a questão: o lado da indústria ou o da arte. As respostas, no resultado objetivo, não apresentam diferenças. Uma e outra supõem uma expansão gigantesca da qualidade artística da indústria, aqui entendida como toda atividade produtiva do homem, inclusive a agricultura mecanizada e elétrica.

O muro que separa a arte da indústria desabará assim como o que afasta a arte da natureza. Não, como pensava Jean-Jacques Rousseau, que a arte se aproxime cada vez mais da natureza. Esta, ao contrário, é que chegará mais perto da arte. Não se pode considerar definitivo o lugar atual de montanhas, rios, campos, prados, estepes, florestas e litoral. O homem já efetuou mudanças não destituídas de importância no mapa da natureza, que no entanto parecem simples exercícios escolares comparados ao que ainda acontecerá. A fé somente prometia mover montanhas. A técnica, que nada admite pela fé, pode realmente derrubá-las e movê-las. Só o fez, até agora, para fins industriais (minas e túneis). Mas no futuro poderá fazê-lo numa escala incomparavelmente maior, de acordo com extenso plano industrial e artístico. O homem irá se ocupar com o novo inventário de rios e montanhas. Corrigirá séria e repetidamente a natureza. Remodelará eventualmente a face da Terra, a seu gosto. Não temos razão para temer que possa demonstrar mau gosto.

Kliuev, polemizando com Maiakóvski, declara com malícia que “não convém ao poeta preocupar-se com guindastes” e que “nos altos-fornos do coração, e não nos outros, funde-se o ouro púrpuro da vida”. Ivanov-Razumnik, um populista que foi socialista revolucionário de esquerda, e isso diz tudo, meteu-se na discussão. A poesia do martelo e da máquina, declara Ivanov-Razumnik, de olho em Maiakóvski, será passageira. Falai-nos da “Terra original”, “eterna poesia do Universo”. De um lado, fonte eterna de poesia. Do outro, o efêmero.

O idealista semimístico, insípido e prudente Ivanov-Razumnik prefere naturalmente o eterno ao efêmero. Essa oposição da terra à máquina não faz sentido. Ao campo atrasado não se pode opor o moinho, a plantação ou a empresa socialista. A poesia da terra não é eterna, mas variável. E o homem só começou a cantar depois de colocar entre ele e a terra ferramentas e instrumentos, essas máquinas elementares. Sem a enxada, a foice e o arado não existirá poeta camponês. Isso equivale a dizer que a terra com a foice tem o privilégio da eternidade sobre a terra com o arado elétrico?

O novo homem que apenas começa a nascer não oporá, como Kliuev e Ivanov-Razumnik, as ferramentas de osso ou de espinha de peixe ao guindaste ou ao martelo-pilão. O homem socialista dominará a natureza inteira, inclusive com seus ossos e espinhas de peixe, com a mediação da máquina. Designará os lugares onde derrubará montanhas, mudará o curso de rios e regulará oceanos. Os idealistas simplórios podem dizer que tudo isso acabará pelo fastio. Eis por que são simplórios. Pensam eles que todo o globo terrestre se alinhará e se dividirá sem parcelas, que as florestas se transformarão em parques e jardins? Restarão bosques, florestas, faisões e tigres onde o homem decidir deixá-los. E o fará de tal modo que o tigre nem mesmo notará a presença da máquina e continuará a viver como sempre viveu. A máquina não se oporá à terra, ela é um instrumento do homem moderno em todos os campos da vida.

Se a cidade de hoje é temporária, ela não se dissolverá na antiga aldeia. Esta, pelo contrário, irá se elevar ao plano da cidade. E essa será nossa tarefa principal. A cidade é temporária mas indica o futuro e mostra o caminho. A aldeia atual representa inteiramente o passado. Sua estética nos parece arcaica, como se saísse de um museu de arte popular.

A humanidade sairá do período das guerras civis empobrecida, em conseqüência de terríveis devastações, sem falar dos tremores de terra como o que acaba de ocorrer no Japão. O esforço para vencer pobreza, fome, necessidade em todas as suas formas, isto é, para domesticar a natureza, dominará nossa preocupação durante dezenas e dezenas de anos. A paixão pelo progresso mecânico, como nos Estados Unidos, marcará toda a jovem sociedade socialista. A contemplação passiva da natureza desaparecerá da arte. A técnica vai se tornar a inspiração mais poderosa do trabalho artístico. E mais tarde a oposição entre técnica e arte se resolverá numa síntese mais elevada.

Os sonhos pessoais de alguns entusiastas de hoje, que procuram dar à vida qualidades dramáticas e educar o homem na harmonia do ritmo, coadunam-se de modo coerente com essa perspectiva. O homem, nacionalizando a economia, penetrando-a com sua consciência e planificando-a, não deixará qualquer vestígio da atual vida cotidiana. A tarefa cansativa de alimentar e educar as crianças passará da família para a iniciativa pública. A mulher sairá enfim de sua semi-escravidão. Ao lado da técnica, a pedagogia formará psicologicamente novas gerações e regerá a opinião pública. Experiências de educação social, na emulação de métodos, atingirão níveis até agora inconcebíveis.

O modo de vida comunista não crescerá às cegas como os recifes de coral no mar, mas controlado, dirigido e retificado de forma consciente pelo pensamento crítico. O homem, que saberá deslocar rios e montanhas, construir palácios do povo nas alturas de Mont Blanc ou no fundo do Atlântico, dará à sua existência riqueza, cor, intensidade dramática e o maior dinamismo. Mal uma crosta comece a formar-se sobre a superfície da vida humana, e eclodirá sob a pressão de novas invenções e realizações. Não, a vida do futuro não será monótona.

O homem, enfim, começará seriamente a harmonizar seu próprio ser. Tentará obter maior precisão, discernimento, economia e, por conseguinte, beleza nos movimentos de seu próprio corpo, no trabalho, no andar, no divertimento. Tentará dominar os processos semiconscientes e inconscientes de seu próprio organismo: respiração, circulação do sangue, digestão, reprodução. E, nos limites inevitáveis, desejará subordiná-los à razão e à vontade. A espécie humana, congelada no Homo sapiens, irá se transformar de forma radical, e se tornará, sob suas próprias mãos, objeto dos mais complexos métodos de seleção artificial e de exercícios psicofísicos.

Essas perspectivas decorrem de toda evolução do homem. Ele começou por expulsar as trevas da produção e da ideologia, por quebrar, com a técnica, a bárbara rotina de seu trabalho e por triunfar sobre a religião pela ciência. Expulsou o inconsciente da política, derrubando as monarquias e substituindo-as pela democracia e pelo parlamentarismo racionalista, depois pela clara e transparente ditadura dos sovietes. E, com a organização socialista, elimina a espontaneidade cega, elementar, das relações econômicas. Isso que permite reconstruir em outras bases a vida da família. A natureza do homem esconde-se nos recônditos mais obscuros do inconsciente. Não resulta claro que, para libertá-la, se voltem o pensamento e a iniciativa criadora? A espécie humana, que parou de rastejar diante de Deus, do czar e do capital, deveria capitular diante das leis obscuras da hereditariedade e da cega seleção sexual?

O homem libertado buscará melhor equilíbrio no funcionamento de seus órgãos e no mais harmonioso desenvolvimento de seus tecidos. Manterá assim o medo da morte nos limites de uma reação racional do organismo em face do perigo. Não há dúvida de que a falta de harmonia anatômica e fisiológica, a extrema desproporção no desenvolvimento de seus órgãos ou a utilização de seus tecidos provocam esse medo histérico e mórbido da morte, turvando o raciocínio e alimentando as humilhantes e estúpidas fantasias de outra vida. O homem irá se esforçar para dirigir seus próprios sentimentos, elevar seus instintos ao plano do consciente e torná-los límpidos, para orientar sua vontade nas trevas do inconsciente. Irá atingir assim um estágio mais elevado da existência e criará um tipo biológico e social superior, um super-homem, se isso lhe agrada.

É tão difícil predizer a extensão do autocontrole suscetível de ser alcançado como prever até onde o homem desenvolverá sua técnica, seu domínio sobre a natureza. A construção social e a auto-educação psicofísica vão se tornar duas faces de um só processo. E todas as artes — literatura, teatro, pintura, escultura, música e arquitetura — darão a esse processo uma forma sublime. Mais exatamente, a forma que revestirá o processo de edificação cultural e de auto-educação do homem comunista desenvolverá ao mais alto grau os elementos vivos da arte contemporânea.

O homem irá se tornar incomparavelmente mais forte, mais sábio e mais sutil. Seu corpo será mais harmonioso, seus movimentos mais rítmicos, sua voz mais melodiosa. As formas de sua existência adquirirão qualidades dinamicamente dramáticas. A espécie humana, na sua generalidade, atingirá o talhe de um Aristóteles, de um Goethe, de um Marx. E sobre ela se levantarão novos cumes.


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FOOTNOTES

[1Mujique: o camponês russo de antes da Revolução. (M.B.)

[2O diretor teatral Meyerhold encenou o drama de Martinet, A noite, com o título A terra rebelde. (M.B.)

[3O Mineiro, de Fonvizine (1742-92), A infelicidade de ter muito espírito, de Onboiédov (1793-1820), o Inspetor-geral de Gógol (1809-52). (M.B.)
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Leon Trótski

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