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SEMANÁRIO

Lincoln, Marx e a Guerra da Secessão norte-americana

Paula Schaller

Ilustração: Ana Laura Caruso
Tradução: Alexandre Miguez

Lincoln, Marx e a Guerra da Secessão norte-americana

Paula Schaller

Há 160 anos do início da Guerra Civil americana, lemos “Guerra e Emancipação. Lincoln & Marx”, que reúne vários de seus escritos sobre o assunto e a correspondência entre os dois.

Lincoln e Marx, uma convergência controversa

Em sua clássica obra A People’s History of the United States, Howard Zinn sentenciou que “não há país na história mundial em que o racismo tenha tido um papel tão importante e durante tanto tempo como nos EUA”. Esta questão, de fato, atravessa quase geneticamente o conjunto da história americana e, em particular, um de seus mais sangrentos e heroicos capítulos, o da Guerra Civil transcorrida entre os anos de 1861 e 1865, na qual os estados da União (o Norte), com um modelo de desenvolvimento industrial baseado no trabalho assalariado livre, enfrentaram-se com os Estados Confederados (o Sul), com seu modelo de desenvolvimento agrário baseado na extensão das plantações e do trabalho escravo. Uma guerra que, para sua época, havia sido a mais espetacular. “Qualquer ângulo de que se olhe a Guerra Civil americana oferece um espetáculo sem paralelo nos anais da história militar. A imensa extensão do território em disputa; a amplitude das linhas de operação e de frente; a potência numérica dos exércitos rivais, cuja criação não se viu, praticamente, apoiada em nenhuma base organizacional anterior; o custo fabuloso desses exércitos; suas modalidades de comando e os princípios gerais de tática e estratégia que regem esta guerra: tudo é novo para o observador europeu”, afirmou Marx [1]

Esse é o tema do livro “Guerra e Emancipação. Lincoln & Marx”, que, partindo de prefácio do intelectual espanhol Andrés de Francisco e introdução do renomado historiador marxista britânico Robin Blackburn, compila dez textos de Lincoln, dez de Marx e a troca epistolar entre os dois (este último como representante da International Workers Association – AIT) em torno da Guerra Civil. Sabe-se que a carta de apoio a Lincoln e à causa da União foi uma das primeiras ações políticas públicas da AIT. Mas por que uma associação de trabalhadores apoiou um dos bandos envolvidos em uma guerra entre facções burguesas? Marx e Engels, inclusive, foram precursores desse apoio, em um momento em que a maior parte do radicalismo europeu ainda tendia a apoiar os Confederados do sul, devido ao princípio da “livre autodeterminação dos povos”. Essa questão, analisam Francisco e Blackburn.

Duas leituras sobre Marx

Explicar as bases (e o escopo) da convergência entre dois políticos de natureza tão diferente como Marx e Lincoln acerca de um processo tão transcendental para o futuro da história contemporânea é o fio analítico que percorre tanto o prólogo quanto a introdução do livro, tarefa que revela as tradições intelectuais de cada um de seus autores com transparência.

Assim, Andrés de Francisco, localizado no campo do marxismo analítico e na tradição do que na Espanha se caracteriza como um republicanismo de esquerda, reivindica um Marx que compartilha com Lincoln uma espécie de “humanismo cosmopolita”, emanado das convicções republicano-democráticas de ambos, cuja pedra angular seriam os Direitos Humanos, criados pelo Iluminismo. Embora esclareça que a ideia de emancipação de Marx (noção que estaria ausente em sua linguagem política e teria sido introduzida após a Guerra Civil) transcende a de Lincoln ao se estender para a emancipação do trabalho assalariado, somos trazidos a um Marx de ética quase liberal que vê na guerra norte-americana uma cruzada de ordem moral em defesa dos princípios universais.

Por sua vez, Robin Blackburn faz uma leitura que recupera uma dimensão mais socio-estrutural da análise de Marx. Partindo da crítica que este fazia diante das explicações economicistas vulgares dos que buscavam os motivos da guerra em disputas meramente comerciais, tarifárias, de protecionismo vs livre comércio, Blackburn propõe que os argumentos de Marx se centravam nas propriedades estruturais dos bandos enfrentados, na medida em que representavam dois sistemas econômicos com seus consequentes interesses, relações sociais e modos de vida contraditórios: “a guerra estourou porque os dois sistemas não podem coexistir em paz por mais tempo sobre o continente americano. Esta luta só pode terminar com a vitória de um ou do outro” [2].

Assim, para Marx, embora o Norte estivesse se expandindo mais rápido do que o Sul, este precisava urgentemente de expansão territorial por três motivos: uma agricultura extensiva, em razão da qual os colonos estavam constantemente em busca de novas terras; a necessidade de estados escravistas conquistarem novos estados para manter seu poder de veto no Senado; a existência de uma base de jovens brancos ávidos por fazer fortuna e dispostos ao aventureirismo a quem deveriam dar uma saída externa para evitar perturbações internas. O sistema social escravista colocava necessidades que tendiam a colidir com os interesses do Norte, razão pela qual a escravidão é analisada por Marx como a questão-chave da guerra.

Isto o levou a apoiar a União e Lincoln mesmo quando este, sobretudo no início da guerra, se recusava a converter a questão da escravidão em um fato central e longe de levar a frente um programa abolicionista radical, apoiava a emancipação gradual, com compensação aos proprietários e promovendo a “colonização” dos afro-americanos, isto é, seu envio à África quando eram nascidos nos EUA.

Marx, Lincoln e Clawsewitz

Em um aporte interessante, Blackburn assinala como um subproduto do surgimento do nacionalismo moderno a nova concepção da arte da guerra formulada pelo militar prussiano Carl von Clausewitz, que formulou a guerra como continuação da política por outros meios, ressaltou a importância dos “fatores morais” naquela, e insistiu na prioridade de derrotar a maior parte do exército inimigo em vez de capturar territórios ou capitais. Embora, nos diz Blackburn, a noção clausewitziana (pós-napoleônica) da guerra foi ignorada inicialmente pelos estrategistas da União, a dinâmica desta mudou sua direção: Lincoln havia feito tudo ao seu alcance para promover a aliança mais ampla possível em defesa da União, acomodando os moderados e fazendo concessões aos proprietários de escravos nos estados fronteiriços. Mas, no verão de 1862, a falta de progresso, pesadas baixas e a direção cautelosa e defensiva da guerra inspiraram críticas crescentes e uma maior disposição para ouvir abolicionistas e republicanos radicais, que defendiam uma estratégia mais ousada, tanto militar, quanto politicamente [3].

Howard Zinn assinalou que, ao repousar a existência da escravidão sobre raízes econômicas profundas – em 1790, o Sul produzia mil toneladas anuais de algodão, cifra que em 1860 havia subido para um milhão de toneladas, enquanto no mesmo período se passou de 500.000 escravos para 4 milhões – “para acabar com um sistema tão profundamente entrincheirado, seria necessária uma rebelião de escravos de proporções gigantescas ou uma guerra geral.” [4]. Esta última foi a saída norte-americana.

Assim aconteceu o que foi o ponto de inflexão da política da União e, por extensão de sua estratégia de guerra: a Proclamação Provisória de Emancipação de Lincoln de 1862, que entrou em vigor no ano seguinte e para a qual estavam em condições de serem libertos cerca de 3,1 milhões escravos, contra o moderadorismo dos estados aliados fronteiriços e da ala mais conservadora dos republicanos que, defendendo um caminho pactualista com os Confederados, se recusaram a apoiar a perspectiva abolicionista. Essa virada foi precedida de duas medidas anteriores fundamentais para o andamento da guerra: a aprovação pelo Congresso da Segunda Lei de Confisco, que permitia a libertação dos escravos pertencentes a Confederados, e a sanção da nova Lei de Milícias que eliminou a estipulação, em vigor desde 1792, segundo a qual apenas homens brancos podiam se alistar. Ambas as medidas legalizaram uma prática que na verdade já vinha se espalhando: a chegada aos campos de batalha de milhares de fugitivos vindos das fazendas do sul, que constituíam os chamados “contrabandos”. Irrompeu, assim, na guerra, a “questão do escravo”, seu verdadeiro fator moral: 180 mil negros foram alistados nos exércitos da União e cerca de 20 mil na sua Marinha. Além disso, essa fuga de escravos danificou a máquina de guerra dos Confederados, que achavam cada vez mais difícil sustentar a produção para a guerra. Blackburn aponta que esta foi a época em que o radicalismo europeu foi unificado em torno do apoio à União, uma tendência na qual Marx e Engels confiaram para o desenvolvimento da AIT.

Internacionalismo e nacionalismo

Em seu conhecido panfleto sobre a Primeira e a Segunda Internacionais, George Novack argumenta que, embora a revolução burguesa, estágio histórico ascendente em que a burguesia lutou contra a velha ordem acaudilhando as massas populares, continha um componente internacionalista, como as ideias de fraternidade entre os povos e paz entre as nações expressa por suas alas esquerdas, sua norma dominante era o nacionalismo. A nação, contra todo particularismo e fragmentação feudal, foi a ideia e o programa burguês na medida em que correspondia às necessidades de expansão produtiva do capitalismo. Embora Blackburn considere errônea a caracterização de Marx de que os Confederados careciam da ideia de nação, coincide com o fato de que o programa de unidade nacional e a própria noção de nação encarnada na União foi um elemento central na guerra, parte constitutiva de seu fator moral. Esse nacionalismo foi, por sua vez, alimentado por um componente que Blackburn considera comumente subestimado na análise da guerra, os germano-americanos: só em 1853, mais de um quarto de milhão de emigrantes alemães chegaram aos Estados Unidos, fugindo da reação de que espalhou pela Confederação Alemã após a derrota de 1848, e contribuíram para a disseminação do republicanismo e do antiescravismo, alistando-se em massa nos exércitos da União sob essas bandeiras e levando a frente os combates mais heroicos. Desta forma, toda a resolução e radicalidade das alas esquerdas se infiltraram, expressando a tendência internacionalista dentro do nacionalismo progressista da burguesia em sua luta contra a reação escravista.

O apoio da AIT à causa da União foi expressão orgânica desta tendência. Assim, na carta que Marx escreveu representando esta no ano de 1864, dizia que “os operários da Europa estão convencidos de que se a Guerra de Independência norte-americana inaugurou a nova época de expansão das classes médias, a guerra antiescravista americana inaugurou a nova época de ascenso das classes trabalhadoras” [5].

Terminada a Guerra Civil, Marx dirige uma carta a Engels afirmando que “acabada a guerra civil, é agora que os Estados Unidos estarão entrando em uma fase verdadeiramente revolucionária.” [6]. Blackburn assinala o acerto desta lógica ao descrever a radicalização do proletariado norte-americano que sobreviveu com posteridade à Guerra Civil, o que inclusive levou à multiplicação de sessões da AIT. “Embora a bandeira do trabalho livre expressasse a hegemonia burguesa em um momento, ela forjou os meios de mobilização contra ela em outro” [7], diz Blackburn. Porém, deste último fato, não se extraem as conclusões necessárias. No livro, está sugestivamente ausente uma dimensão que faz verdadeira justiça, em toda sua profundidade, à posição de Marx frente à guerra norte-americana: a dinâmica da revolução burguesa e seu entrelaçamento com a revolução proletária. Diz Novack: “a urgente necessidade de conquistar a unidade nacional e a independência foi a força motriz por trás das ideias nacionalistas, as consignas e o programa dos movimentos revolucionários democrático-burgueses. Enquanto estas tarefas básicas do desenvolvimento históricos permaneciam incompletas, os movimentos nacionalistas dos países avançados do ocidente mantinham um caráter progressista, e mereciam o apoio dos revolucionários.” [8].

No caso norte-americano, a Guerra Civil permitiu a consolidação das tarefas necessárias para a consolidação do desenvolvimento burguês: a unidade nacional na base de um modelo de desenvolvimento sustentado pelo trabalho livre, base sem a qual o fortalecimento estrutural e político do proletariado norte-americano era impossível. É neste sentido que a bandeira da emancipação da escravidão é a bandeira do proletariado que luta por sua própria emancipação, que é por definição a da própria humanidade. Mas esta posição não era linear nem mecânica, precisamente porque a experiência histórica havia transcorrido, mostrando as contradições da revolução burguesa europeia e a covardia de uma burguesia continental que renunciava a sua juventude revolucionária e havia se tornado pactualista com as forças do antigo regime. Nesse sentido, Alain Brossat destacou que o tempo em que Marx e Engels desenvolveram sua atividade tinha um caráter transitório, no qual a burguesia não podia levar sua revolução até o final, enquanto a classe operária ainda não conseguia retirá-la da fase histórica, destacando o caráter antecipatório do pensamento de Marx e Engels no sentido de que desenvolvem um programa e uma tática para a revolução proletária a partir do impasse da revolução burguesa. Mas sua época não generalizava ainda as premissas para a revolução proletária, precisamente porque o capitalismo estava em expansão e consolidação. Será necessário um pensamento profundamente dialético e nada mecanicista para dotar o proletariado de uma tática ajustada a cada experiência concreta, com o norte estratégico de sua consolidação como coveira da dominação do capital. Apenas deste ângulo emerge a enorme agudeza política das elaborações de Marx sobre a Guerra Civil norte-americana.


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FOOTNOTES

[1Karl Marx e Friedrich Engels, “La Guerra Civil americana”, em Andres de Francisco (org.), Guerra y Emancipación. Lincoln & Marx, Capitán Swing, Madrid, pág. 169.

[2Karl Marx e Friedrich Engels, “La Guerra Civil em los Estados Unidos”, em Andres de Francisco (org.), Guerra y Emancipación. Lincoln & Marx, pág. 22

[3Andrés de Francisco (org.), Guerra y Emancipación, Lincoln & Marx, pg. 37.

[4Howard Zinn, La otra Historia de Estados Unidos (A People’s History of the United States), Edit. Otras Voces, 2005, p. 160-161.

[5Karl Marx, “A Abraham Lincoln, presidente de los Estados Unidos de América”, em Andrés de Francisco (org.), Guerra y Emancipación, Lincoln & Marx, pg. 44.

[6Karl Marx, Friedrich Engels, “La Guerra Civil en los Estados Unidos”, em Andrés de Francisco (org.), Guerra y Emancipación, Lincoln & Marx, pg. 46.

[7Andrés de Francisco (org.), Guerra y Emancipación, Lincoln & Marx, pg. 49.

[8George Novack, Dave Frankel, Fred Felman, Las tres primeras internacionales. Su historia y sus lecciones, pg. 20.
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Paula Schaller

Licenciada en Historia-UNC
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