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Letícia Parks: “Controlam nossos corpos para nos sentirmos como uma mercadoria barata”

Letícia Parks

Letícia Parks: “Controlam nossos corpos para nos sentirmos como uma mercadoria barata”

Letícia Parks

Reproduzimos abaixo fala de Letícia Parks, professora e militante do grupo internacional de mulheres Pão e Rosas, em lançamento da pré-candidatura a deputada estadual de Carolina Cacau, no Rio de Janeiro, pelo Polo Socialista e Revolucionário. O evento de conjunto será disponibilizado em breve no Esquerda Diário.

Boa tarde, pessoal, é um prazer poder estar aqui com vocês no lançamento da candidatura da Cacau, ao lado da Diana que é minha grande amiga e que deu esse panorama fundamental aqui para nossa conversa. E a Cacau, gente, pouca gente sabe mas a gente começou a militar juntas, quando estávamos na UNESP, no interior de São Paulo, e um dos momentos em que a gente esteve juntas foi num festival que organizamos com dezenas de artistas, que não foi só uma festa não. A gente ficou indignada com um caso de violência contra a mulher horroroso num desses eventos esportivos da universidade, sabe? O caso que eu tô falando ficou conhecido como rodeio das gordas. A gente ficou revoltada, né Cacau, e organizamos em resposta um festival que chamamos de ‘interunesp contra a opressão’, foi ali que eu vi ela e outras mulheres que iam fazer de tudo para a gente poder ter um festival que fosse uma resposta a altura daquele acontecimento horroroso. E foi ali, eu com 18 anos de idade e ela com 21, há 12 anos, que a gente percebeu juntas que para acabar com a opressão às mulheres a gente ia precisar lutar também contra o capitalismo.

A crise econômica que a gente tá vivendo tá deixando muito evidente como o racismo e o ódio às mulheres e a população LGBTQIA+ é muito importante pro sistema capitalista. Para poder avançar nos ataques contra a nossa classe trabalhadora, os capitalistas no mundo todo estão usando essa extrema direita como carrasco contra a gente. Foi chocante o caso de que ocorreu com a menina de 11 anos que teve seu direito ao aborto negado pela Juíza Joana Ribeiro, em SC. Nos EUA, nesse dia 24 de junho, a Suprema Corte revogou o direito ao aborto, colocando mais uma vez a vida de milhões de mulheres em risco.

O caso da atriz Klara Castanho, que foi exposta por um jornalista e um grupo de conservadores porque ela descobriu que estava grávida de um estupro e decidiu fazer uma adoção do bebê, mostra que o problema dos conservadores não é o aborto mas o fato de nós, mulheres, podermos decidir sobre o nosso corpo. Eles querem que a gente seja mãe, mas não as mães que lutam por justiça pelos seus filhos assassinados pela polícia, como as mães de Jacarezinho. Eles nos querem mães recatadas e do lar, mulheres obedientes e silenciosas, tirando freneticamente a poeira e ignorando as notícias e os ataques contra a nossa classe.

A luta pelo aborto legal faz parte das principais pautas do movimento de mulheres na história, em primeiro lugar porque as mulheres sempre abortaram, sempre interromperam gestações de forma artesanal. Em várias vilas do Brasil, as parteiras eram também abortadeiras. E em um determinado momento, o Estado decidiu intervir no que acontece dentro dos nossos ovários. A existência dessa lei faz com que as mulheres tenham que recorrer então a abortos clandestinos, que no Brasil são a maior causa de morte materna, no mundo é a segunda causa, e a primeira causa de mutilação feminina. No Brasil, a cada 4 mulheres mortas por aborto clandestino, 3 são negras. Então quando os conservadores dizem que é “pela vida” que são contra o aborto legal, estão mentindo de cara lavada, logo eles que aplaudem as operações policiais assassinas aqui no RJ e em todo país, que defendem o bombardeio israelense contra o povo palestino, o bombardeiro estadunidense contra o povo sírio, e todas as empreitadas bélicas que fazem dos EUA a polícia do mundo.

No capitalismo, todos os corpos são mercadorias, mas com as mulheres e com a sexualidade de LGBTQIA+s eles precisam controlar ainda mais. Vocês que como eu são trabalhadores, a gente não é dono de nada a não ser da nossa força de trabalho, então todos os dias o que a gente faz quando sai de casa é vender um certo tempo da nossa força de trabalho produzida pelo nosso corpo pro patrão para poder ter comida na mesa. Para nós, depois de ter faxinado o hospital, depois de ter cansado a voz nas salas de aula, a gente lava, limpa, cozinha e cuida, tudo isso de graça para voltar pros braços do patrão no dia seguinte. Se esse trabalho que a gente foi convencida pela cultura patriarcal que é um “dever” nosso - a mulher recatada ‘do lar’ - fosse um trabalho feito socialmente, por exemplo com restaurantes, lavanderias públicas, creches para todas as crianças… quanto dinheiro isso tiraria da mão dos capitalistas?

Querem controlar os nossos corpos na mais profunda intimidade porque precisam disso para a gente acreditar que não somos donas do nosso destino, porque quando a gente percebe isso coisas espetaculares acontecem.

Uma amiga nos EUA me disse que “sem as mulheres não haveria movimento Black lives matter”, o “vidas negras importam” que chacoalhou o mundo em 2020, mudando completamente o que seriam os anos de pandemia nos EUA e no mundo todo. Pesquisas mostravam que as mulheres eram cerca de 70% dos maiores protestos. Tem também o caso da luta das trabalhadoras da indústria têxtil que em abril de 2020 conseguiram reverter demissões de cerca de 100 trabalhadoras na Camboja através da denúncia em vídeo que uma trabalhadora de lá, a Soy Sros, fez no seu facebook. Em Myanmar a patronal demitiu centenas de trabalhadoras que estavam na linha de frente da fundação do seu sindicato, e elas responderam com uma espetacular organização pela base que também envolveu a comunicação com irmãs de classe de outras partes do mundo e conseguiram reverter suas demissões. Elas diziam “Não somos escravas”.

Eles querem controlar nossos corpos para tentar nos convencer de que somos uma mercadoria barata. Na saga conservadora contra o direito ao aborto, tentam reprimir corpos insurgentes, rebeldes, grevistas. Não querem que sejamos jovens que entendem sua sexualidade de forma livre, mas também não querem que sejamos mães como a cambojana Soy Sros.

A indústria têxtil é historicamente uma franja do capital mundial que adora contratar mulheres e nos pagar salários de fome. Talvez seja por isso que essa franja da classe trabalhadora tenha tido uma participação tão importante na história de luta da nossa classe. Foram elas que em 1917 começaram na Rússia a convocar uma greve geral para derrotar o governo que apoiava a guerra e continuava mantendo com frio e fome as grandes massas trabalhadoras do país. No 8 de março de 1917 elas saíram pelas ruas e pelas fábricas onde trabalhavam seus companheiros homens jogando pedras nas janelas e chamando a que se somassem a sua greve. Quando a greve se transformou em revolução, tomando o controle da produção das indústrias e colocando toda a economia a serviço de resolver os problemas mais sentidos pela classe trabalhadora e pelo povo pobre russo, a Rússia que tinha virado União Soviética se torna o primeiro país a legalizar o aborto no planeta. E não só isso. Garante um conjunto de medidas que buscavam libertar a mulher das tarefas domésticas para que pudesse ser parte da direção política do país.

Nenhum direito nosso nunca foi conquistado sem luta, nunca veio de presente, e nunca veio dos acordos com a direita. Como a Diana mostrou, os acordos com a direita só serviram para nos fazer perder espaços. Quando o PT governou, durante 13 anos, esse partido que foi eleito com várias mulheres acreditando que serviria para avançar nossos direitos, foram na verdade 13 anos em que mais de 40 mil mulheres morreram por abortos clandestinos. E o PT que pretende governar em 2013 está aumentando a sua distância da luta das mulheres ao se aliar com Geraldo Alckmin, membro da Opus Dei, um dos setores mais reacionários das altas cúpulas da igreja. O próprio Alckmin sobre o direito ao aborto já disse que “Sou contra (o aborto). Sou favorável ao planejamento familiar”... mas que tipo de planejamento familiar defende um governador que esteve à frente da maior chacina da história moderna do Brasil, os mais de 600 assassinados pela polícia na Baixada Santista em maio de 2006?

O PSOL está acompanhando esse caminho da conciliação. Se comprometeu com uma federação, que é uma espécie de partido em comum, por 04 anos com a REDE da Heloísa Helena, uma conhecida de vocês aqui, que em 2013 desabafou que saía do PSOL porque obrigaram ela a defender o direito ao aborto, agora dá um contra golpe com uma federação que vai garantir que o PSOL não seja um defensor dessa luta, e saibamos, uma federação que vai ser mais um obstáculo do movimento de mulheres para poder lutar pela livre sexualidade e pelo direito ao nosso corpo. Frente a essa federação e à sua diluição no projeto de conciliação petista com Alckmin e Marina Silva, nós viemos no Esquerda Diário fazendo um chamado a que todos os setores socialistas sinceros do PSOL saíssem desse partido. Nós inclusive viemos nas últimas eleições participando com candidatos através da legenda do PSOL por filiação democrática para levantar nossas ideias, ainda que justamente no caso do Rio de Janeiro nas últimas eleições a companheira Cacau bravamente retirou sua candidatura já que era um Coronel da Polícia Militar que estaria como candidato a vice-prefeito pelo PSOL, algo incompatível com a nossa luta. Por isso também hoje estamos batalhando para construir um polo de independência de classe que permita apresentar pros trabalhadores brasileiros um programa para que sejam os capitalistas que paguem pela crise, e não a classe trabalhadora.

A nossa candidatura da Cacau aqui no RJ e do MRT por todo o país está a serviço de fortalecer essa perspectiva.

Uma intelectual feminista chamada Judith Butler certa vez disse que a repressão ao direito ao aborto é a repressão a livre sexualidade como um todo. Eu agrego: a burguesia, para manter o mundo como está, odeia a ideia de que experimentemos nosso corpo, nossa sexualidade, e possamos perceber que queremos uma vida com tempo e liberdade suficiente para o amor de qualquer forma que ele seja. Eles precisam que nossos corpos sejam prisões, e enquanto falam de forma mentirosa de “defesa da vida”, os capitalistas nos negam a vida todos os dias. E falando em vida, eu queria ler para vocês um trecho de uma obra da Lygia Fagundes Telles, uma romancista brasileira que faleceu esse ano. Ela diz:

“Na vocação para a vida está incluído o amor, inútil disfarçar, amamos a vida. E lutamos por ela dentro e fora de nós mesmos. Principalmente fora, que é preciso um peito de ferro para enfrentar essa luta na qual entra não só fervor mas uma certa dose de cólera, fervor e cólera. Não cortaremos os pulsos, ao contrário, costuraremos com linha dupla todas as feridas abertas. E tem muita ferida porque as pessoas estão bravas demais, até as mulheres, umas santas, lembra?”

Muito obrigada e vamos para luta.


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Letícia Parks

do Quilombo Vermelho
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