×
sexta-feira 29 de julho de 2016 | Edição do dia
Tradução: Odete Cristina

Foto: Antonio Litov / ID

A perspectiva defendida por Judith Butler, surge como oposição ao feminismo radical dos Estados Unidos na década dos setenta. Se trata de uma corrente feminista, cujo abordagem principal é a defesa do patriarcado como um sistema de opressão dos homens sobre as mulheres, que funciona de forma autônoma. A partir dessa ideia, começa-se a conceitualizar que os homens constituem o inimigo principal das mulheres, posto que se beneficiam de maneira geral das opressões a estas. Por tanto, o patriarcado antes que o capitalismo é considerado o inimigo principal das mulheres. No entanto, a teoria dessa autora, se opõe ao chamado “Feminismo Francês” ou “Feminismo da Diferença”, que sob a influência de Lacan acaba convertendo-se em um feminismo profundamente essencialista que mantém o binarismo de gênero como condição para começar a pensar a questão da sexualidade.

Butler, por sua parte, tratará de oferecer uma visão alternativa tanto ao essencialismo da diferença como ao construtivismo social.

Os principais conceitos na obra de Butler e a “Teoria Queer”

Butler, define o “gênero” como “significados culturais que aceita o corpo sexuado”. Ela não se centra simplesmente na dimensão cultural do “ser homem” e do “masculino” ou o “ser mulher” e o “ser feminino” em si mesmos, mas através de que meios e com que finalidades se realiza esta construção.

Sua crítica a heterossexualidade como regime de poder e disciplinamento, localiza os corpos como receptores discursivos que adquirem o gênero através da repetição prática e constante de umas características concretas. O gênero para Butler são “atos e gestos, desejos atuados e articulados criam a ilusão do gênero, uma ilusão mantida discursivamente para regular a sexualidade dentro do marco obrigatório da heterossexualidade reprodutiva”.

Para a autora, o corpo não existe por fora dos discursos que lhe dão forma. O gênero não é natural, mas performativo. Ao largo de sua obra, tratará de responder à pergunta de por que só há uma forma de ser homem/masculino e de ser mulher/feminino.

O conceito de “universalização da identidade”, é chave para tratar de responder a essa pergunta. Segundo a autora, o discurso heteronormativo disciplina os corpos em base a uma forma ideal e fictícia de “ser homem” e “ser mulher”. A ideia em si mesma não existe, mas que como produto ideal que nunca chegará a realizar-se, em mudança, na realidade tem lugar diferentes práticas imitadoras. Como esta ideia nunca chega a realizar-se provoca que tenham lugar múltiplas formas diferentes mais próximas do ideal. Este processo é enormemente opressivo. Por uma parte porque o discurso disciplinar da identidade universal nos permite uma só forma que nunca acabamos de desenvolver totalmente, mas por outra, porque detesta todas as demais fórmulas alternativas de desenvolver nossa identidade.

Na obra de Judith Butler, o problema da opressão está intimamente ligado a ideia de identidade universal. Não é o capitalismo em si, não é a relação entre o capitalismo e o patriarcado, mas a própria construção cultural do “ser homem” ou “ser mulher”. Para ela a “heterossexualidade normativa”, considerada um pilar fundamental para a manutenção do sistema capitalista, diretamente relacionada com a manutenção de um sistema de divisão sexual do trabalho e disciplinamento dos corpos, poderia subverter-se através das práticas paródicas performativas, abrindo uma fenda irreparável nos estereótipos de gênero.

Sem embargo, chegados a esse ponto, a pergunta que nos apresenta é a seguinte: é possível acabar com a opressão sem romper com as estruturas materiais que a produzem? Ou, o que é o mesmo, é possível acabar com o binarismo de gênero, a heterossexualidade normativa, mantendo o capitalismo?

A democracia plural e radical é possível liberar-se dentro do capitalismo?

Como dizíamos, é mediante a repetição ritualizada das características como os indivíduos, os corpos, assumem seu gênero e, portanto, seu lugar na ordem social. Por tanto existe a possibilidade de deslocar esta ordem simbólica mediante a performatividade mesma. A reprodução constante dos “gêneros da coerência” mediante a prática do que ela chama o “nomadismo de gênero”, teriam a capacidade de golpear até a destruição do caráter hegemônico da heterossexualidade normativa e deslocar o “significado original”, núcleo da opressão.

Por uma parte o que se sucede disto é uma aposta política pela proliferação de práticas individuais, onde o próprio corpo e a própria identidade são o único campo de batalha fértil para liberarmos da opressão. Sua aposta política é destruir a opressão da mulher, destruindo a própria identidade de “mulher”, através da soma de práticas individuais que a questionem.

O que o feminismo dos anos 60 e 70 planteava até este momento, que era a aliança coletiva para lutar contra um sistema de submetimento coletivo para as mulheres e para a comunidade LGBT, e que se identificava como o capitalismo e o patriarcado, não são questões prioritárias para a autora.

Em segundo lugar, o que disto se desprende é uma renúncia a possibilidade de acabar com o poder como elemento de opressão. Posto que toda prática gera uma exclusão, ao máximo que podemos aspirar é uma democracia radical e plural em que proliferem os espaços em que as relações de poder mudem constantemente. Desde sua visão foucautiana, os sujeitos se formam através da exclusão, e toda resistência ao poder dará origem a um novo discurso de poder, algo que em termos práticos significa aceitar a derrota antes da batalha.

O que ocorre é que Butler não apresenta qual seria o caráter de classe dessa suposta democracia radical. Se vai acabar com a opressão da identidade mantendo um sistema de exploração em que a identidade e a expressão hegemônica estão ligadas a uma forma concreta de exploração do trabalho e a uma forma concreta de organizar a reprodução? Tão pouco explica qual será o processo em que o sujeito da transformação já não é um sujeito coletivo, a saber, a classe trabalhadora, mas um sujeito individualizado que no máximo consegue através de sua própria prática individual criar certos espaços marginais que consigam romper momentaneamente com a opressão da identidade.

Porém, como coloca Andrea D’Atri em “Feminismo e Democracia em Judith Butler”: “A democracia dos cidadãos livres, fraternos e iguais, tem necessariamente que incluir como contrapartida para sua realização a existência de uma classe que há expropriado historicamente a humanidade dos meios de produção”.

Qual será o processo de construção desta suposta democracia plural e radical? Para a autora já não é mediante a destruição do capitalismo, mas mediante a luta pela abertura de novos espaços políticos alternativos no interior mesmo da democracia capitalista.

Chantal Mouffe e Ernesto Laclau, aprofundam muito mais esse raciocínio em “Hegemonia e Estratégia Socialista”, e afirmam que “o projeto de uma democracia plural e radical em um primeiro sentido não é mais que uma luta por uma autonomização máxima de esferas a partir da generalização da lógica equivalencial e igualitária” e adicionam “uma vez rechaçada a ideia da classe trabalhadora como ‘classe universal’ se pode reconhecer a pluralidade dos antagonismos que tem lugar no âmbito do que arbitrariamente se engloba na etiqueta de ‘lutas operárias’ e a importância inestimável de grande parte delas (como a luta pela libertação sexual) para o aprofundamento do processo democrático”. O único marco de atuação para as autoras é a democracia burguesa capitalista, e o único horizonte alcançável segue sendo a democracia burguesa rechaçando a centralidade da classe trabalhadora e sua ação política. A perspectiva revolucionária acaba sendo substituída por uma prática reformista, que planta a ideia de que é possível mediante a acumulação de pequenas reformas humanizar o capitalismo até o ponto de que deixe de ser um sistema gerador de misérias e opressão.

Feminismo radical, da diferença e Teoria Queer:

O feminismo radical, o feminismo da diferença e a Teoria Queer mantém visões diferentes sobre o gênero, o sexo e a sexualidade mas seguem mantendo importante pontos de contato. Como disse a autora Cinzia Arruzza, em seu livro “As sem parte, matrimônios e divórcios entre feminismo e marxismo”: “o que há compartilhado em geral tem sido um deslocamento radical de atenção ao plano do discurso e da linguagem como lugar de definição da identidade de gênero e da formação de uma hierarquia entre os sexos”.

No plano teórico, a consequência disso tem sido reduzir a atenção a dimensão ideológica da opressão de gênero, reduzindo a linguagem e discurso a complexa realidade social sem prestar atenção aos elementos materiais que constituem a desigualdade. Por outra parte, contribui a formar uma percepção a-histórica do patriarcado, priorizando a luta contra este sistema por cima de qualquer outra coisa, como o capitalismo. Algo que desde estas perspectivas ou bem não guarda relação ou sua relação não é prioritária, posto que com a desaparição do patriarcado como sistema autônomo as mulheres, os gêneros e a sexualidade serão capazes de liberar-se.

Esta é uma abordagem totalmente inversa ao marxismo, que trata de compreender os condicionantes materiais que permitem o surgimento e o desenvolvimento da desigualdade, compreendendo as características e especificidades históricas e contextuais, para aprofundar na relação dialética que se dá entre o capitalismo e o patriarcado.

A falta de uma perspectiva “totalizante” como a que oferece o marxismo, tem também como temos visto fortes implicações políticas. A falta de atenção nas estruturas materiais da desigualdade se convertem de fato na impossibilidade de oferecer uma saída real da emancipação pela ideia da humanização do capitalismo e a ideia de destruir a democracia liberal burguesa pela ideia de fazer menos opressiva esta mesma democracia, fazendo-a mais radical e plural, embora esta mesma democracia tenha sua condição de existência a desigualdade e a opressão de milhões de pessoas para benefício de uns poucos




Comentários

Deixar Comentário


Destacados del día

Últimas noticias