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Essa semana diversos acontecimentos marcaram o cenário da política nacional, aprovações de medidas, ataques, e também brechas que abrem espaço para avanços, como o caso da descriminalização parcial do aborto dada pelo STF em um caso específico. Isso fez com que o tema tomasse todas as timelines de facebook, grupos de whatsapp, conversas de trabalho, de escola, de ponto de ônibus, etc, dividindo opiniões. Mas já chega de debate superficial, o que significa a reivindicação pelo direito ao aborto?

sexta-feira 2 de dezembro de 2016 | Edição do dia

explicitei aqui um estudo sobre o histórico dessa reivindicação, que muito tem se dito nos debates nas redes sociais que vem desde a década de 60, na segunda onda do feminismo, mas na realidade é muito anterior a isso. O direito ao aborto é uma luta das mulheres desde a Grécia antiga e o primeiro país a tornar a prática legal, a partir da reivindicação das mulheres e dos revolucionários, foi a Rússia no pós-revolução, em 1920. Portanto, não é de hoje que as mulheres exigem não apenas o direito de decidir pelo seu próprio corpo, como também de não morrer por essa decisão. Não é culpa da “libertinagem” da época, “dessa juventude irresponsável”, nem nada do tipo. É sim o histórico grito das mulheres de que não é porque o corpo feminino é capaz de gestar um filho que somos obrigadas a fazer isso.

Muito do debate sobre o direito ao aborto tem girado em torno de uma nova corrente das redes sociais, que se diz “pró-vida” e que implica em publicar “Tenho XX anos mas já tive 3 meses”, referindo-se às 12 primeiras semanas de gestação, que é o tempo limite recomendável para a realização da prática abortiva. Aqui já entramos em um importante debate: a necessidade de separar a Igreja do Estado, de separar o julgamento moral a partir da crença individual, dos direitos sociais a serem garantidos. Segundo a comunidade científica, é mundialmente aceito que, assim como a vida acaba ao fim da atividade cerebral (por exemplo, uma pessoa que sofre um acidente e ocorre a morte cerebral é declarada morta pela medicina, ainda que o coração ainda bata), a vida também se inicia com o começo da atividade cerebral, como pode ser conferido e muito melhor explicado biologicamente nesse texto aqui. Ou seja, defender que antes dos 3 meses já havia uma vida e por isso o aborto é um assassinato de uma criança é algo que depende única e exclusivamente da crença individual de cada um, o que reforço aqui, é individual e não corresponde ao cientificamente aceito.

E aqui é onde é importante lembrarmos algo essencial: no Brasil, o Estado é laico! Claro que muito mais no papel do que na realidade, mas isso precisa ser sempre frisado e sim, a luta deve ser pela imediata separação entre Igreja e Estado. Possuímos uma forte bancada religiosa, com diversos “Felicianos”, que se fortaleceu muito nos 13 anos de PT, que vendeu a reivindicação das mulheres em troca dos votos e alianças desse setor. Essa bancada influencia e interfere com religião nos debates de cunho social, como a discussão a respeito da legalização do aborto. Partindo de que é um estado laico, a justificativa sobre ser ou não uma vida nos 3 primeiros meses deveria passar longe da argumentação dos parlamentares, pois crenças individuais não devem ser utilizadas para defender projetos de leis que dizem respeito a quase 50% da população (mulheres), que não necessariamente compactuam dessas crenças. Ou seja, se a crença é individual, que as decisões individuais sejam tomadas a partir delas, mas não se pode exigir que tal crença seja imposta por lei para todo o conjuntos de mulheres de uma sociedade. Portanto, é completamente absurdo que exista uma lei – como a criminalização da prática de aborto – que interfira nas decisões pessoais de uma indivíduo a partir da religião e crença daqueles que aprovaram tal lei.

O outro elemento que vem sendo dito junto com a ideia dos “3 meses” é que os setores contrários à legalização do aborto são “pró-vida”. Aqui me parece que a crença individual cega as pessoas a ponto de não enxergarem que não há nada mais “pró-vida” do que defender a legalização do aborto. Sim, pois defender os direitos do embrião em detrimento dos direitos da mulher que o carrega é ser pró-nascimento, mas não necessariamente pró-vida. A histórica reivindicação desse direito não diz respeito apenas ao direito das mulheres de decidirem sobre seus corpos e suas vidas, mas sim é pela sobrevivência dessas mulheres. É uma realidade, as mulheres abortam, independente do procedimento ser legal ou não, a prática é feita, está dado, pesquisado, apontado, estatísticas mostram: são realizados cerca de 46 milhões de abortos anualmente em todo o mundo, aproximadamente 160 mil por dia. Entre esses, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que 19 milhões são feitos de maneira clandestina e insegura, resultando na morte de 70 mil mulheres por ano e mais 5 milhões que enfrentam sequelas do procedimento mal realizado. E é por isso que a legalização do aborto é pela vida das mulheres, pois a causa dessas milhares de mortes é justamente a ilegalidade, que leva a que o procediemnto seja feito de forma precária e insegura. As mulheres abortam, as mulheres morrem, isso já acontece. Ser pró-vida de verdade é lutar para acabar com as mortes por abortos clandestinos e inseguros, que já acontecem aos milhares.

Mais que isso, existe uma questão de classe muito profunda nisso tudo. Estatísticas também apontam que a maioria das mulheres que abortam são casadas, já possuem filhos e são religiosas. Esse é o perfil da mulher que aborta. Mas quem são as mulheres que morrem? A ilegalidade dessa prática leva a que se construa uma grande máfia do aborto, onde médicos – ou que se dizem médicos – constroem clínicas clandestinas, grandes esquemas de enriquecimento ilícito, e um aborto seguro feito em consultório – procedimento bastante simples, diga-se de passagem – custa milhares de reais. Logo, as mulheres que morrem são as que não possuem condições financeiras que arcar com os custos de um aborto seguro, e precisa apelar para os carniceiros, os cabides, as agulhas de crochê, o cytotec, etc. Ou seja, quem morre são as mulheres pobres, trabalhadoras, em sua maioria negras.

Direito ao aborto, direito à maternidade

Assim como a legalização do aborto é uma questão de saúde pública, como já foi dito acima a respeito das mortes de mulheres, a prática legalizada também deve ser garantida de forma gratuita, com qualidade, oferecida pelo serviço público de saúde. Por isso é urgente a construção de uma forte campanha pela legalização do aborto, e junto com a legalização, é fundamental que se garanta também educação sexual de qualidade nas escolas, para que as jovens possam decidir se desejam engravidar ou não, contraceptivos gratuitos, de qualidade e de fácil acesso à todos, assim como acompanhamento médico e psicológico das mulheres que decidirem abortar. Essas práticas são capazes de reduzir o número de abortos realizados, como mostram estatísticas em todos os países que legalizaram: além do número de mortes quase zerar, o número de abortos também diminui quando a prática é legalizada.

Agora, outro debate que deve fortemente rondar a questão da legalização do aborto é sobre o direito à maternidade. Primeiramente, na sociedade machista e patriarcal que vivemos, a maternidade é imposta às mulheres como se todas fossem obrigadas a ter filhos, e pouco se questiona isso. Mas mais que isso, não se questiona os motivos que podem levar uma mulher a não querer ser mãe e, consequentemente, abortar em alguns casos. Pode ser pela não vontade de ter filhos, um desejo individual pra sempre ou naquele momento, mas em muitos casos a interrupção da gravidez é feita pois a mulher não possui condições financeiras para arcar com uma vida dependente. Aqui, mais uma vez, ser pró-vida não pode ser querer impor uma gravidez sem condições, e sim lutar pelo direito pleno à maternidade, com acesso a um serviço público de saúde de qualidade, direito ao pré-natal e partos de qualidade, que prezem pela vida e vontade da mulher e do feto, contra a violência obstétrica que tanto se vê, assim como seguir na luta por acesso à creches e escolas gratuitas, de qualidade, próximas à residência. Ou seja, todas as condições que possam levar as mulheres a decidir se serão ou não mães a partir apenas de suas vontades, e não da falta de condições materiais para isso.

A importância desse debate frente a atual conjuntura nacional

Esse debate vem a tona justamente na mesma semana que se aprova em primeira votação no Senado a PEC 55, conhecida como "PEC do fim do mundo" ou "PEC da morte", assim como na calada da noite também se aprovou texto modificado sobre as 10 medidas de combate à corrupção, que descaradamente mantem a impunidade dos corruptos, o que abriu uma crise entre legislativo e judiciário - esse último que viu seu poder e arbitrariedade questionados.

E o que isso tem com a luta pela legalização do aborto? Tudo. Quando se reivindica o direito ao procedimento legalizado, como já foi explicitado acima, se reivindica também um serviço público de saúde de qualidade. E isso toda a população pobre e trabalhadora sabe que o SUS não é. A PEC 55, assim que aprovada, congela investimentos em serviços básicos por 20 anos, que na sociedade são principalmente saúde e educação. Lutar pela legalização do aborto deve necessariamente, hoje, passar pela luta contra a aprovação da PEC do teto, e assim por um SUS de qualidade para todos. Para legalizar o aborto, devemos passar por exigir o fim dos salários milionários dos políticos e juízes, que não sofrerão congelamento enquanto saúde e educação sim, pois a proposta do governo golpista de Temer é descarregar a crise nas costas dos trabalhadores, da juventude, das mulheres, mas mantendo seus próprios privilégios – assim como era também do governo Dilma, mas agora é feito com mais rapidez e intensidade.

Pelos direitos das mulheres, pelas suas vidas, pelo direito ao aborto legal, livre, seguro e gratuito, pelo direito à maternidade plena e de qualidade, é urgente que se organize uma forte luta não só contra PEC e o governo golpista, mas contra toda a podridão desse regime. Por isso, para questionar esse regime, é necessário uma Assembleia Constituinte Livre e Soberana, construída a partir das mobilizações, que supere a Constituição de 88 (tutelada pelos militares) e retire os privilégios dos políticos e juízes, que usam de seus interesses próprios para decidir sobre nossos corpos, nossos direitos e nossas vidas.




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