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OPINIÃO | Fim do ciclo “lulista” nas universidades e as tarefas históricas de um novo movimento estudantil

Leandro LanfrediRio de Janeiro | @leandrolanfrdi

sábado 23 de maio de 2015 | 19:00

(Foto: Fernando Frazão/ Agência Brasil)

O noticiário de várias cidades do país tem sido atravessado por frequentes denúncias da precarização das maiores universidades públicas. Junto a este fato que se expressa de forma mais aguda nas faltas de pagamento dos terceirizados tem surgido um novo movimento estudantil que se solidariza com os terceirizados e entre outras reivindicações traz à tona a precarização em suas condições de permanência nas universidades, de moradia, a alimentação, bolsas.

Outra crise universitária também se desenvolve paralelamente, o drama dos milhões cortados, ou endividados, nas universidades privadas devido ao corte no orçamento e novas regras do financiamento estatal do FIES. A calmaria em meio a grande expansão de vagas, via Prouni e FIES nas privadas, REUNI e cotas nas federais, parece virar o anúncio de uma tormenta.

Estas expressões de crise também tocam as universidades estaduais. Nas prestigiosas estaduais paulistas há anos se desenvolve um embate em torno do orçamento e as tentativas de reitores e governos tucanos de tornar mais precárias as condições de trabalho e estudo, seja via PDVs como na USP ou até perseguição e expulsão política de estudantes, como na UNESP. No Paraná as universidades estaduais são parte da luta contra os ajustes do também tucano Richa. No Rio de Janeiro a UERJ sofre um agressivo corte de verbas que está, literalmente, acabando com sua manutenção, e afetando não só a possibilidade do funcionamento das aulas e pesquisas mas até do atendimento médico à população em seu hospital e clínicas.

O corte de orçamento anunciado ontem pelo governo Dilma retira uma imensa parcela do já arrochado orçamento da educação. Dos quase 70 bilhões de reais “tesourados”, 9,4 bilhões sairão da educação, representando um corte de 15,3% no orçamento da pasta. Um corte um tanto “grego” em um país onde a crise nunca deveria afetar os direitos dos trabalhadores e da população, de acordo com o discurso eleitoral petista, e que teria como lema de governo justamente “pátria educadora”.

Todas estas expressões são acompanhadas de profundo mal-estar e algumas expressões mais ativas como este nascente movimento estudantil e na greve que está programada para iniciar-se nesta semana em todas as universidades federais. Em outro ritmo, surge um ativo movimento negro na USP que luta por cotas, escancarando o elitismo desta universidade que sequer adota as limitadas regras federais (que não alcançam sequer a proporcionalidade em relação a população negra dos estados).

Esta grande quantidade de problemas, e respostas parciais, não são mais que sintomas locais e parciais de uma crise mais geral do sistema universitário brasileiro e se insere em um quadro maior de fim de clico político bem como a questionamentos ao sistema universitário em muitos países em todo o mundo.

Fim de ciclo político na América Latina, no Brasil e nas universidades brasileiras

Estamos, tal como em junho de 2013, de um ponto de vista mais geral da luta de classes no país mundos à parte da calmaria nas universidades que o ‘lulismo” tinha conseguido instituir. Não só do ponto de vista do fim desta calmaria há imensas novidades, senão que também na composição, subjetividade e pautas do movimento estudantil. Como protagonista de uma inédita campanha de solidariedade aos terceirizados demitidos na USP nos hoje longínquos 2006, vejo com um otimismo e espanto quão “aliens” eramos com esta pauta naquele ano, e hoje a solidariedade chega a paralisações estudantis, como na UERJ , ocupações de reitoria, como na UFRJ, e mobilizações país à fora, de norte ao sul do país, de São Paulo a Campina Grande na Paraíba.

Para entendermos profundamente o que está em curso é preciso elevar a visão dos sintomas de crise das diversas universidades para um entendimento de que estamos começando a viver não uma crise do pagamento dos terceirizados, ou uma crise de tal ou qual instituição, mas a expressão brasileira de uma crise na “ordem universitária mundial”.

Este elemento se combina à crise do próprio “lulismo”. Esse governo e sua continuação com Dilma tinha protagonizado uma mudança, sem transformação, do sistema universitário e isto era um dos seus pilares de sustentação, um dos seus lados mais “progressistas” em meio a um governo onde o que sempre prevaleceu foi a manutenção da “ordem”, ao sabor dos banqueiros, grandes empresários e latifundiários que sempre lucraram e emplacaram ministros não só com Levy (Bradesco) e Kátia Abreu (Confederação Nacional da Agricultura) com Dilma, mas ainda no governo Lula com Furlan (Sadia) e Meirelles (Bank Boston).

Entendemos o “lulismo” como parte de um processo continental, como muito bem descrito em artigo de Eduardo Molina. Neste artigo ele argumenta como as elites e o imperialismo tiveram que se resignar a ter governos pós-neoliberais quando a crise da ofensiva neoliberal colocou vários governos e regimes em cheque. Estes governos, com diferentes características combinaram “progressismo” e manutenção ou recriação da “ordem”. Hoje todos eles estão enfrentando crises, ainda que de diferentes proporções.

Não é o objetivo deste artigo debater o “lulismo” e suas bases, do ciclo de crescimento econômico dependente de matérias primas, da expansão do consumo, do apoiar-se em uma “classe média” como consumidora e não em classes sociais e sujeitos políticos, mas entender este fenômeno nas universidades e como a crise do “ciclo lulista no sistema universitário” se entrelaça com a crise internacional dos sistemas universitários, pois, nas novas necessidades do capitalismo o sistema construído já não pode funcionar do mesmo modo.

A mudança sem transformação radical no sistema universitário brasileiro, ou como realizar uma mudança “social-democrata” e neoliberal ao mesmo tempo

Emmanuel Barot argumenta em artigo que o sistema universitário nos países imperialistas passou por uma profunda transformação no pós-guerra que criou um sistema que acabou com a velha universidade de elite e, baseado em um “compromisso histórico”, massificou as universidades criando ao mesmo tempo milhões de operários que se instruíam e podiam tornar-se críticos, mas ao tempo, conseguia criar uma imensa quantidade de “quadros” que atendiam tanto a determinações econômicas de ter uma classe trabalhadora mais qualificada como serviam também de sustentáculo ideológico ao próprio sistema.

As novas configurações da classe trabalhadora mundial, expandida, mais mundializada que antes, já não exige tamanho contingente de “quadros” e exige-se das universidades uma submissão muito mais direta ao capital, exige-se mais “tecnólogos” e menos “quadros”. Em tempos de “ajustes” esta determinação ganha contornos mais agudos com cortes de verbas, mudanças no financiamento, acesso, e tem motivado um massivo movimento estudantil em países como França, Reino Unido. O outro pólo do sistema mundial, o avesso de países que tenham aspectos “social-democratas” a gabar-se, o “arqui-neoliberal” Chile também vê nas ruas um massivo movimento estudanti que defende a gratuidade da educação. Na Tunísia, no Egito, um dos fatores para a primavera arábe foi a geração de jovens operários com diploma universitário na mão e sem perspectiva de futuro. Este é o cenário mundial dos últimos anos que serve de pano de fundo para pensarmos o Brasil.

O lulismo, como experimento político que unia “ordem” e “progresso” acelerou as duas transformações no sistema universitário brasileiro ao mesmo tempo, e agora vivemos uma “sincronização” com este fenômeno mundial.

Por um lado, experimentou-se uma grande expansão das universidades federais de 2003 a 2013, o país passou de 114 campi a 237. O número de professores nestas universidades expandiu-se de cerca de 50mil para 71mil, os estudantes passaram de 596mil para 1milhão. Esta expansão, realizada em chave precarizada já motivou uma greve nacional em 2012. Uma análise rápida mostra a desproporção entre o número de novos campi e novos estudantes e o aumento de professores, e agora sem verbas estes novos professores, este meio milhão de alunos a mais, uma parcela relevante deles negros ingressantes por cotas, se vêem as voltas da fome, tentando se sustentar, por exemplo, em uma cidade caríssima como o Rio de Janeiro com uma bolsa para cotas sociais na UFRJ no valor de 400 reais, e esta frequentemente atrasa ou até mesmo periga deixar de existir com os cortes no orçamento.

Esta expansão já se deu combinando o aspecto do acesso que guardava formas “aguadas” do compromisso europeu citado acima, com o atual e mais neoliberal vínculo direto e explícito com o capital. Vimos uma imensa vinculação com monopólios capitalistas, submetendo o que determinada região oferecia de cursos e pesquisa em expansão aos interesses empresariais. É assim que no Rio multiplicaram-se engenharias de petróleo, em áreas com plantações da Aracruz engenharias florestais, de mineração em outros lugares, e um longo etc.

Em resumo nas federais, mudou-se muito, entraram milhares de novos estudantes, gerou-se alguns milhares de emprego, mas isto não mudou o fato que o sistema segue limitado e elitista, e, ao mesmo tempo, deu-se um salto em sua vinculação ao capital.

Esta mudança sem transformação radical nas universidades federais esteve acompanhada de um imenso incentivo às universidades privadas, particularmente aos barões da educação que criaram imensos conglomerados monopolistas. Este incentivo com o FIES e o PROUNI desloca mais verbas proporcionalmente a financiar o sistema privado que o público, e aumentou e muito o número de ingressantes no sistema universitário. De 2003 a 2013 passamos de 1,5 milhão a 2,7 milhões de ingressantes, a maior parte desta expansão foi em privadas, já que as federais somaram menos de 500 mil vagas, e as vagas em estaduais expandiram-se muito menos que estes dois pólos principais.

A terceira parte, mais ao tom da ofensiva de mais “tecnólogos” menos “quadros” foi a agressiva expansão dos cursos técnicos (também com incentivos a empresas privadas), fazendo aumentar de 2003 a 2013 o número de ingressantes nestes cursos de 114mil para 944mil.

Nos anos de calmaria política e calmaria econômica este universo de novos estudantes, novos professores, novos técnicos administrativos e um sem-fim de terceirizados invisibilizados serviam de base de sustentação política ao governo. Milhares de famílias viam seus filhos terem uma promessa de uma vida mais cômoda do que seus pais e avós haviam vivido. No segundo turno da eleição de 2014 vimos um forte, porém efêmero, engajamento destes setores na campanha de Dilma, “contra o retrocesso”. Rapidamente todos estes setores puderam sentir na pele que o “progressismo” encobria muita “ordem”, e uma ordem particularmente neoliberal de ajustes.

Agora sob pressão da recessão, dos ajustes capitalistas de Dilma e Levy e dos governos estaduais dirigidos pelos distintos partidos do regime, estamos, às vésperas de uma crise mais generalizada deste sistema universitário como um todo. Cedo ou tarde a burguesia brasileiro e o imperialismo se questionarão para que ter tantos engenheiros, e outros profissionais de diploma superior, em um país como o Brasil. Os sintomas atuais são de uma doença mais geral, da crise do sistema universitário mudado, mas não transformado radicalmente sob o lulismo. É o fim deste ciclo. Qual novo se abrirá?

Falta verbas, precisará ser escolhido se elas privilegiarão o sistema privado, o aumento dos “tecnólogos” ou como sustentarão este aumentado sistema das federais. E, para piorar a situação para as classes dominantes e governos, como responderão aos anseios destes milhares que eles ajudaram não só a erguer de posição social mas que junto disso ergueram suas expectativas e exigências de direitos sociais. Como este “agente” reagiará, aceitará este fim de ciclo, ou imporá sua marca?

Como responderá uma geração de jovens a qual foi prometido um mundo melhor do que de seus pais, que criou coragem de tomar as ruas, como em junho de 2013? Ela aceitará estes cortes e uma perspectiva de menos empregos ou empregos com piores remunerações, terceirizados, com maiores dificuldades de conseguir seguro desemprego?

Pensando o Brasil à luz da mundialização da crise da “ordem universitária mundial” e mundialização da luta da juventude

Esta mudança sem transformação radical que aconteceu no sistema universitário brasileiro e sua presente crise pode colocar, com todas as nuances nacionais, o país sob o signo de três movimentos internacionais desta crise. Os cortes nas universidades públicas abririam um cenário de um movimento estudantil mais massivo contra estes “ajustes”, um cenário mais “europeu”? Cortes muito profundos no lado mais massivo do sistema brasileiro, o privado, abrirá um movimento “chileno” de luta pela educação gratuita? A expectativa de piora das condições econômicas e sociais poderia dar um “motor” de “primavera árabe” à luta de uma juventude diplomada mas sem futuro?

Está muito cedo para tecer hipóteses de qualquer destes cenários ou como poderiam se combinar, mas as interrogações estão postas. A crise não é da UERJ, da UFRJ, das estaduais paulistas, dos estudantes das privadas sem financiamento, mas do lugar do sistema universitário, e mais, destes jovens em um capitalismo decadente.

Frente à crise: Defesa do sistema universitário lulista ou a luta por sua transformação radical?

À luz destas reflexões cabe mais uma interrogação que também está muito bem posta no artigo de Barot já citado. A submissão da universidade aos mandos neoliberais e os cortes orçamentários exercem uma grande pressão sobre toda a esquerda mundial que pensa a forma atual de submissão ao capital como se fosse a única possível. Declaradamente ou não, não encara a “velha” universidade como ligada ao capital. A forma privatizada não é a única de submissão do conhecimento aos interesses capitalistas. E, em meio a uma crise estrutural deste sistema universitário deveríamos simplesmente defender a “velha” estrutura ou lutar por sua transformação radical?

À juventude cabe, sem sombra de dúvidas, defender o seu lugar na UERJ, UFRJ, etc, deve defender as condições de trabalho dos terceirizados, dos técnicos administrativos, dos professores. Esta batalha será duríssima, exige derrotar o conjunto dos governos que estão privilegiando em seus cortes justamente a educação. Será necessário um movimento estudantil muitíssimo superior ao que está em movimento nos dias de hoje.

Mas a esta mesma geração está colocado um outro desafio também: fará tudo isto para manter o atual, quando justamente a “ordem universitária mundial” está em crise? Erguerá imensas forças para derrotar os ajustes e ao mesmo tempo irá deixar que se mantenha o conhecimento, as possibilidades de desenvolvimento humano enjaulados no que o capital lhe vê utilidade? Tudo isto para conseguir um lugar em uma sociedade que nos reserva empregos precários e impossibilidade de plena realização pessoal?

Ou, ao contrário será tempo de ao mesmo tempo que trava-se esta luta defensiva contra os ajustes e precarização que retomemos ideias perigosas. Um movimento estudantil que não deixe pedra sob pedra da atual universidade, que avance a questionar os currículos, a estrutura de poder das universidades, a questionar como milhões de trabalhadores e negros seguem fora delas, e dentro deste questionamento que avance para o que uma parcela do movimento estudantil do maio francês de 1968 dizia: “do questionamento da universidade de classes ao questionamento da sociedade de classes”. A crise atual é também uma oportunidade de retomarmos e atualizarmos velhos sonhos.




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