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FBC e o Baile: Cultura periférica brasileira

Vinnicius Frasca

FBC e o Baile: Cultura periférica brasileira

Vinnicius Frasca

Hã, é cultura de baile
Som de favelado
Que quando toca na moral
Ninguém fica parado
Olha o gingado dos cria
Combina o traje todo
A lupa, a berma’, o pisa’
A marra de quem nasceu assim
Se a semana foi mal, se o dia foi ruim
Esquece tudo e vem assim na pista do baile
[Quando o DJ toca - FBC, VHOOR, UANA]

O Baile e a sua história brasileira

O artista mineiro FBC lançou, em 2021, sem muita pretensão, um dos álbuns mais interessantes da música brasileira recente, o álbum Baile. Este álbum renova o cenário do rap trazendo antigas revoluções da cultura popular da favela, e muito disso vem da parceria com o produtor VHOOR. O álbum, como dito em seu nome, é sobre os bailes de periferia e seus elementos, e isso inclui: o uso recreativo de drogas, os passinhos de dança, ver os amigos, ver uma pessoa especial ou encontrar um par ali mesmo, ter cuidado com a polícia, saber respeitar as minas, se afastar dos vacilões entre outras coisas que se vive numa comunidade periférica e marginalizada pelo capitalismo. Esse é o baile que o FBC revive em um álbum que tem menos de meia hora de forma muito inovadora para alguns e muito nostálgica para outros.

É interessante fazermos logo neste momento uma análise sobre a sonoridade do álbum e também um resgate histórico da nossa cultura popular, a MPB excluída pela elite e pelos interesses do capital. Nos anos 80, quando o hip hop se mostrou ao mundo como um estilo rebelde, simples, dançante e político, ele se espalhou também pelo Brasil. Os centros urbanos nos quais o hip hop mais ganhou atenção foram São Paulo e Rio de Janeiro. Em São Paulo popularizou-se seu lado poético e da mensagem com expoentes como Racionais, Sabotage, e RZO, enquanto no Rio de Janeiro, o lado mais dançante e mais rápido foi o que ganhou atenção. Dentro desse lado mais dançante, era nos bailes funks clássicos, frequentados em maioria pela comunidade negra e pobre, — em que o funk estadunidense tinha destaque e era representado por figuras como James Brown, Marvin Gaye, Funkadelic, entre outros — que surgiu o miami bass, um estilo de hip hop mais eletrônico feito na Flórida por imigrantes latinos e fez mais sucesso no Brasil do que de onde veio.

A partir deste momento e com o nome herdado destes bailes, tivemos o desenvolvimento do nosso funk, que era no início a abrasileiração do miami bass, mas que em pouco tempo desenvolveu letras e batidas mais requisitadas pela expressão da cultura periférica. Cidinho & Doca, DJ Marlboro, Mr. Catra, entre outros, são todos grandes e influentes artistas que usaram e abusaram de formas diferentes do miami bass para a criação e popularização do funk brasileiro que, por sua vez, aconteceu de forma orgânica como acontece com qualquer cultura popular e de massa. No início, tinham mídia apenas o funk paulista — mais devagar e com influências do rap paulista — e o funk carioca — mais rápido e dançante com influências do miami bass, que explodiu nos morros e favelas. Essas características continuam em certo nível até hoje. Recentemente, o funk e o rap de São Paulo com Kyan e MC Hariel, por exemplo, praticamente se tornaram um só na sonoridade, por sua métrica e elementos, enquanto o funk carioca tem Kevin, O Chris com funks de 170 batidas por minuto.

É com essa herança cultural que dois artistas da periferia de Belo Horizonte, em Minas Gerais, se juntaram para inovar a música com elementos antigos. Na música “De Kenner”, estão presentes as camisas do Messi, as roupas da Cyclone, os bigodes “finins”, as correntes e os óculos Juliet, e, ao passo que o miami bass clássico dos anos 80 e 90 é trabalhado no fundo, flows (métricas), graves de rap e efeitos modernos são adicionados nas vozes enquanto falam na letra sobre o cuidado com a polícia, algo sempre necessário. Essa mistura do atual com arcaico é um clássico da nossa cultura musical brasileira desde a tropicália. Esse é um dos jeitos brasileiros de renovar a contracultura: colocamos em choque nossos estilos e sentimentos antagônicos enquanto combinamos aspectos modernos, felizes, antigos e tristes para criar um produto só, que é o que quer que seja, é o que a nossa cultura popular precisar expressar. Isso fica claro pelo próprio FBC na música “Vem pro Baile”:

Lá na VIP tem o Elias, tem o Cuein, o Romário

O Marcelo, o Lorran que também são aliados

A cara dos cria’ hoje é ter um carro

E dar rolê à noite toda pelo bairro

Nova Sintra, Gameleira, Patrocínio, Sideral

Lá embaixo é a Cabana, que saudade do Librau

E olha a sopa

Dona Maria, olha a sopa

Ensina suas cria’ que a polícia tá na rua pra matar ou pra prender

Ontem foi o nosso mano, amanhã pode ser você

E a real da vida é fazer a vida ser melhor pra geral

Hoje eu dançaria a noite toda, embrazando com você

O Baile: Uma história Brasileira

FBC em diversos podcasts explicou uma história por trás do álbum e relacionou algumas músicas com momentos de uma história. Apesar de apenas algumas delas terem sido correlacionadas, o acontecimento das músicas fica mais visualizável após entender a história. A narrativa é construída em torno de alguns personagens: o Pagode, a Jessica, Paulinho Comédia ou Paulinho Falador e dois homens que controlam a comunidade. O Pagode e a Jéssica adoram dançar e, nesse ambiente de disputa de passinhos e etc. que é o Baile, o Pagode é participante de um grupo de passinhos, Os Novinhos da VIP e a Jéssica de outro, As Perdidas. Em um certo momento, Paulinho se envolve no crime e leva um cara pro morro, que esconde uma arma perto da casa do Pagode que, por sua vez, acaba sendo preso por isso. Quando Paulinho vê a Jéssica no Baile depois de Pagode ser preso, ele lança seu charme — e essa é a música “Se tá solteira”. Quando Pagode volta da prisão ele se imagina com Jéssica no final da competição de passinhos — e essa é a música “Delírios” —, porém, ele vê Jessica fazendo os mesmos passinhos que ele ensinou pra ela com outro — com Paulinho —, e essa é a música “Não dá pra Explicar”.

Dentro dessa comunidade onde se passa a história, dois homens comandam o morro. Um é o chefe do morro e o outro é policial civil, ambos criados juntos por uma mãe de santo em um terreiro de matriz africana. A união entre esses dois homens faz com que a milícia não consiga entrar nessa comunidade da forma que ocorre em outras, impedindo assim que essa milícia destrua os templos de matriz africana, como é comum no Brasil. A aliança desses dois homens defende esse local religioso da mesma maneira que defende a comunidade que cresceu em volta dele. Em um determinado momento, Paulinho mata o policial civil e a polícia usa isso como pretexto para fazer uma operação policial na favela — vemos isso em “Polícia Covarde” — e mata o Chefe do Morro. Nesta mesma operação, Jéssica, que era filha da mãe de santo do terreiro, morreu. Sem a ordem e a unidade que os dois assassinados mantinham, a comunidade é tomada pela milícia. Após tudo isso, essas pessoas da comunidade que foram violentadas e que tiveram os parentes mortos e presos se unem e criam a União da Fé e da Força, a UFFÉ . Assim, a UFFÉ — através do movimento social organizado, dos bailes, da dança e da expressão cultural — tenta retomar a comunidade. Este é o momento da música “Rap da UFFÉ”.

Dois artistas que vivenciaram periferia, FBC e VHOOR, retomam nesse álbum diversos elementos de uma cultura extremamente marginalizada, reprimida e criminalizada, mas que não pôde e nem nunca poderá ser silenciada. Estão muito presentes nesse álbum a cultura do hip hop, as danças, os DJ’s, a mixagens, o grafite (presente na capa), assim como também estão representados os imortais Cidinho & Doca juntos ao miami bass e todos os outros artistas que também ajudaram a expressar e desenvolver a cultura e história do funk e dos bailes; duas culturas que estão totalmente conectadas, pois ambas têm o mesmo berço: a luta de classes, a resposta expressiva dos reprimidos frente às violências e desumanização impostas pelos repressores. É trago à tona a realidade brasileira das periferias. A milícia, o perigo da polícia, a necessidade humana pelo amor e felicidade e o histórico de fragilização reproduzido por diversos personagens. É colocado, em alto e bom som e em ótima produção, um retrato da favela e do baile. Não é só uma imagem sonora da realidade, mas também um protesto e uma exclamação por vida. Juntos, esses dois artistas fazem um movimento político de retomada da história que tem acontecido dentro do rap, com mais autoestima e homenagens aos artistas, ritmos e gêneros que iniciaram o movimento. É organicamente uma organização dos oprimidos em busca do resgate e autoconhecimento de sua história.


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