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TEATRO | Eu fui ao velório de Maria Alice Vergueiro

segunda-feira 16 de outubro de 2017 | Edição do dia

Foto: Vivian Maia/ Divulgação

Eu certamente não seria a melhor pessoa para escrever um epitáfio para a gigantesca atriz que foi (é) Maria Alice Vergueiro. Faço parte de uma geração que conheceu Maria Alice na adolescência, no despretensioso vídeo que viralizou na internet, “Tapa na pantera”, lamentavelmente. Foi só depois disso que descobri que por trás daquele rosto que conheci em um vídeo meio bobo estava um dos maiores nomes vivos do teatro brasileiro. A maioria dos que viram “Tapa na pantera”, no entanto, sequer jamais tiveram a oportunidade de descobrir quem era a atriz por trás daquele vídeo. Um absurdo que faz parte do modo de produção e reprodução das ideias, da arte e da cultura no capitalismo.

Ironicamente, a primeira vez que vi Maria Alice no palco foi hoje, no seu velório colocado em forma de peça. Talvez a última vez em que esteve em cena. Sua força arrebatadora como atriz, como pessoa, me tiraram do eixo, como acredito que à maior parte dos espectadores que dividiam comigo a plateia do Teatro Oficina nesse domingo, na última apresentação dessa temporada de "Why the horse?". Aos 82 anos, Maria Alice fez da sua despedida arte, e se preparou para receber a inevitável visita que se aproxima junto ao público, no palco, onde passou a vida e onde escolheu se despedir dela. E eu tive o privilégio de estar presente e ver, pela primeira e provavelmente última vez, Maria Alice Vergueiro em cena.

Nunca, provavelmente, hei de ver uma peça com a força dessa despedida de uma atriz que por décadas fez do palco seu ofício, sua vida, sua entrega. E que decidiu, planejou, articulou meticulosamente realizar, em vida, nos palcos, sua cerimônia fúnebre, numa peça dirigida por ela mesma, dividindo conosco um pouco dos sentidos de sua vida e sua morte, dos seus amores e das doenças e fragilidades que, uma após outra, tomaram seu corpo sem serem convidadas, lembrando da inevitabilidade da morte, da fragilidade e fugacidade da vida. Ela escorre por nossos dedos, e Maria Alice viu a sua chegando ao fim. Mas quis se preparar, e, com isso, preparar a nós todos. Para sua, para a nossa, para as inevitáveis mortes que encontramos a cada esquina da vida. O Parkinson, o enrijecimento dos músculos das cordas vocais, as pernas pouco capazes de sustentar o peso de seu corpo, os problemas de memória: nada disso impediu Maria Alice Vergueiro de continuar encenando, desde 2015, sua própria morte.

Ela poderia se ter se retirado e, como todos a quem é dada a oportunidade de ver chegar na horizonte a hora da partida, realizar um luto de si mesma de forma privada, com amigos e familiares, procurando dar seu próprio significado a essa partida que, enfim, só pode ter o significado que nós mesmos lhe atribuímos. Mas ela nos convidou a esse luto, a compartilhar e pensar seus significados, a dividir sua dor, e, porque não, sua alegria.

Foi há dez anos atrás, quando uma cirurgia no joelho lhe trouxe uma inesperada infecção com sequelas permanentes, que Maria Alice concebeu a ideia de sua despedida. Quis se despedir da “vaidade de nos pensarmos eternos”. Quis se mostrar no palco desprovida de atributos que lhe acompanharam toda a vida, como a memória para decorar seus textos e a voz treinada para declamá-los, ou as pernas firmes para sustentar o corpo. Aos companheiros de palco, e de vida, confiou a ajuda para executar a contento o texto e as cenas. As palavras do poema sobre a morte de Hilda Hilst, amiga e companheira que já partiu, foram sopradas delicadamente ao ouvido para sua declamação ao público por Carolina Splendore, sua companheira do Grupo Pândega. A sustentação para o andar também foi fornecida pelos seus colegas de ofício. A companhia firme e resoluta de Luciano Chirolli, que além de estar com Maria Alice há pelo menos “metade da vida”, como ela coloca, está em cena não apenas como o testemunho de um companheiro de vida para essa despedida, mas também para cortar na justa medida a melodramaticidade inevitável da cena, trazendo a necessária sobriedade a quem encara a morte de frente, lúcida e sem auto-comiseração.

O velório de Maria Alice não teve nada de mistificador, de piegas, dos lugares-comuns com que preenchemos nosso medo da perda e do vazio. A cada um de nós, que pôde estar presente na sua despedida em vida, colocada em cena em “Why the horse?”, resta uma herança e um privilégio de compartilhar esse momento delicado e de tanta força, de um medo confesso e por isso mesmo de tanta coragem ao colocar em frente de si e de todos a inevitável hora de dizer que não há mais nada. E, no entanto, há. Porque a primavera surge ali quando a escuridão toma conta. E saber nossa insignificância diante do mundo é saber que fazemos diferença em mundo que vai além de nós mesmos. Obrigado, Maria Alice Vergueiro. Sua despedida foi e será um momento de encontro, e te carregamos além dela.


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