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CORONAVÍRUS | Estratégia literária da quarentena

Publicamos aqui o artigo de Afonso Machado.

segunda-feira 13 de abril de 2020 | Edição do dia

Estar dentro e fora de casa, estar dentro de si acordado e fora de si dormindo. Ou: estar fora dentro de casa, estar sonhando quando se está acordado. Se a casa de vidro online permite a interação entre pessoas que não estão fisicamente presentes no mesmo espaço, o interior de uma residência abriga nestas circunstâncias virtuais reuniões que o apartamento ou a casa não poderiam pelas suas delimitações espaciais comportar. Se o fluxo de imagens, sons e palavras subvertem o isolamento, nossa percepção não deixa de ser impactada: os produtos e relações digitais encontram passagens no crânio e adentram pelo território do sonho.

Nestes dias que atravessamos as realidades do mundo interior e exterior dialogam intensamente entre si. Acordados ou dormindo, existem militantes de esquerda que agem politicamente do fundo de suas casas, tornando público através de vídeos, canções e escritos seus desejos, protestos, sonhos, críticas e denúncias. No contexto da quarentena entra em pauta também a estratégia literária de combate.

Em tempos de isolamento social a imaginação não hesita em pregar peças: o beijo de uma mulher que morreu há séculos, portas do elevador que se abrem para o mar, janelas do fundo da casa que oferecem florestas secretas, uma luva feminina abandonada no jardim subterrâneo, uma onça pintada caçando antas dentro do espelho, mensagens de voz no celular que só podem ser ouvidas em sonhos... Este estado mental fornece obviamente material poético: poemas e relatos desta natureza enriquecem nossa vida interior enquanto a classe dominante se desespera com os prejuízos econômicos da crise. É como se a poesia fosse revelada, liberada, enquanto a rotina da alienação capitalista é abalada.

Além de manifestações literárias que exprimem a imaginação livre e solta, se fazem necessários também escritos de agitação política que respondam criticamente a este dramático quadro histórico que vivemos: as mortes causadas pelo coronavírus, as dificuldades/o sofrimento daqueles que estão ao nosso lado, o agravamento da miséria, as patéticas disputas políticas dentro da Direita, a possibilidade histórica da recessão configurar-se em depressão econômica etc. Vejamos agora a relação complementar entre as sondagens poéticas do mundo interior e a literatura de crítica social em meio ao atual treme treme da infraestrutura capitalista.

Do ponto de vista do Capital menos pessoas circulando significa prejuízo. Apesar das peixarias ficarem lotadas no feriado da páscoa, um grande vazio reina em avenidas, becos e calçadas. Dentre os pouquíssimos sinais de vida e os muitos sinais de morte, os corpos dos famintos e as espinhas de peixe ocupam tristemente a paisagem urbana. É possível imaginarmos nos corredores de um shopping center fechado um macabro desfile de sombras: ouçam o eco causado pelo barulho do corpo de um milionário que se atirou do terceiro piso em queda livre. Uma escuridão misteriosa interrompeu o curso do tempo das mercadorias. A manequim da loja está vestida para ninguém. Frascos de perfume não sentem o erotismo dos dedos que os acariciam em dias de venda.

Colares, gravatas, relógios, vestidos encontram-se no escuro: se eles não existem para compradores que estão isolados, será que estes objetos ainda existem? Se fecharmos os olhos poderemos talvez ouvir o choro de um secador de cabelo. Enxergaremos talvez a melancolia de um automóvel que nunca irá sair de dentro da loja. Sim, a mercadoria, esta misteriosa extensão da personalidade humana, povoa em segredo um mundo alienado e que agora tornou-se inútil. Mas estes seres inorgânicos, estas múltiplas formas da estética do dinheiro, não sentem fome ou frio. Quem sofre pra valer é o proletariado.

Pratos vazios num restaurante luxuoso fechado, enquanto uma multidão de famintos cresce pelas ruas das cidades. Desempregados torcendo para que nunca mais amanheça. Um motociclista transportando muita comida, enquanto sua família o aguarda diante de uma mesa vazia de alimentos. O vírus existe assim como a luta de classes. Nestes tempos de crise e isolamento, a palavra “ esperança “ só conseguirá sair dos nossos lábios se fortalecermos psicologicamente, e logo politicamente, os trabalhadores.

A solidariedade, a ajuda com doações de alimentos e suprimentos em geral, o calor humano, a educação política e a imaginação artística constituem atitudes vitais(verdadeiramente humanas) neste contexto de abalo material e emocional. Enquanto as imagens da mercadoria agonizam no escuro(por quanto tempo? Não se sabe ainda) outras imagens podem ser projetadas no contexto online: são as imagens históricas, imagens revolucionárias que estão aprisionadas no tempo e podem ser liberadas agora em forma de poesia, em forma de arte. Cantar os episódios históricos da luta de classes, dar passagem ao sonho reprimido numa poesia sem recalque, aproveitar que o trem da economia capitalista está lento para acelerarmos estratégias literárias.

Através destas estratégias literárias, os trabalhadores podem sonhar hoje em suas casas com a liberdade para lutar amanhã nas ruas. Arrancar do esquecimento as lutas do passado para arar o terreno político do presente. A luta contra o vírus e a luta contra a exploração capitalista dizem respeito á luta pela vida liberta. Que as mercadorias chorem no escuro!




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