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Entrevista com Kevin Anderson: "Marx sempre apoiou movimentos negros por autoemancipação"

André Barbieri

Entrevista com Kevin Anderson: "Marx sempre apoiou movimentos negros por autoemancipação"

André Barbieri

Nesta entrevista que fizemos com Kevin B. Anderson, professor da Universidade da Califórnia, revimos a trajetória do pensamento de Karl Marx e sua defesa da questão negra e da luta dos povos coloniais contra o militarismo europeu. A partir de seu estudo “Marx nas Margens”, publicado em 2010 pela editora Boitempo, podemos ver em detalhe a intersecção de classe, raça e nacionalidade no pensamento do fundador do socialismo científico.

Isto é muito importante, levando em conta todos os esforços feitos durante décadas por correntes de pensamento neoliberais, ou mais recentemente decoloniais e pós-modernas, de desprestigiar Marx como um pensador supostamente “eurocêntrico”, como acontece na obra de Edward Said. Nada mais longe da realidade. Neste livro, Anderson resgata a própria obra política e econômica de um Marx preocupado com problemas que vão muito além dos acontecimentos políticos no Velho Continente, com um conhecimento sofisticado das sociedades não-ocidentais e coloniais, como China, Índia, Polônia, Rússia, Irlanda, compartilhando essas reflexões com seu grande amigo revolucionário, Friedrich Engels.

Combinado com as batalhas emancipatórias da classe operária internacional, Marx dedicou grande parte de sua atenção, da década de 1850 até seu falecimento em 1883, às lutas pela emancipação nacional e à guerra frontal contra a escravização do povo negro.

Publicamos essa entrevista no Ideias de Esquerda e, compartilhando a visão de Anderson sobre a postura revolucionária de Marx neste temário, é indispensável evidenciar que Marx sempre considerou a classe operária como o sujeito hegemônico da emancipação humana nessa sociedade capitalista, centralidade que a classe trabalhadora exibe por deter em suas mãos as posições estratégicas dos centros nevrálgicos da economia. É desse ponto de vista que Marx considera a potência da revolução proletária mundial para a emancipação dos povos oprimidos, como na América Latina subordinada ao imperialismo; articulação estratégica que será desenvolvida no século XX por grandes revolucionários como Lênin e Trótski, cuja continuidade com Marx é frisada por Anderson, em contraposição à contrarrevolução stalinista e sua “teoria” antimarxista do socialismo em um só país.

Todos esses debates estão presentes nas elaborações desse Ideias de Esquerda, e na obra Estratégia socialista e arte militar, de Emilio Albamonte e Matias Maiello, que publicamos pelas edições Iskra. Confira a entrevista abaixo:

Na nova edição do Podcast Internacional Ideias de Esquerda, André Barbieri entrevistou o Prof Kevin Anderson da Universidade da Califórnia em Santa Bárbara, nos Estados Unidos professor de sociologia e de ciência política, de estudos tema da entrevista é sobre o próprio livro que o professor publicou aqui no Brasil pela Boitempo, intitulado Marx nas Margens, nacionalismo, etnia e sociedades não ocidentais, um central sobre a trajetória do pensamento do Marx, do Engels também mas especialmente enfatizando a trajetória do pensamento do Marx na discussão das sociedades não ocidentais, da periferia do capitalismo, discutindo a necessidade da defesa do povo negro nos Estados Unidos durante a guerra civil americana, entre 1861-1865, também falou muito sobre a luta anticolonial da China, da Índia e diversos outros países.

André Barbieri: Começando essa pauta quente aqui, porque Marx é um pensador muito importante aqui no Brasil e essa parte do trabalho dele não é realmente muito conhecida em nosso país, então é muito importante discutir um pouco sobre as ideias de Marx sobre as civilizações não-ocidentais ou os países na periferia do capitalismo e como ele apresenta suas ideias sobre esses tópicos. Então, a primeira questão que eu gostaria de fazer é essa: uma das questões mais importantes do seu livro é trazer à superfície a verdade sobre a evolução do pensamento de Marx sobre os países na periferia do capitalismo, em particular as opiniões dele sobre as civilizações não-ocidentais. Tem alguns pensadores como Edward Said, que sem apreender a evolução do pensamento de Marx, indevidamente o criticam por ter um tipo de pensamento eurocêntrico. Você poderia explicar para nós qual o ponto central do seu argumento contra essa visão de que Marx era um pensador “eurocêntrico”?

Kevin Anderson: Certo, obrigado André, é uma questão muito importante, eu acho que ainda é muito atual dez anos depois que este livro foi publicado em inglês primeiramente, existe um aspecto quantitativo que é o seguinte, os trabalhos mais conhecidos de Marx são os Manuscritos de 1844, os Grundrisse, O Capital e poderíamos nomear alguns outros.

Esses são quase inteiramente dedicados à Europa ocidental e a América do Norte e o tipo de capitalismo que se desenvolveu lá, mas existem muitos outros escritos que Marx escreveu durante sua vida, por exemplo nos anos 1850, nas Obras Completas de Marx, eu tenho eles, em inglês nós temos esses 50 volumes das Obras Completas [Collected Works] sim, esses volumes são preciosos, sete ou oito desses volumes inteiros são dedicados aos seus escritos para o The New York Tribune nos anos 1850. Boa parte desses escritos são sobre sociedades fora da Europa, ele basicamente escreveu sobre todas as partes do mundo, América Latina, Europa, é claro, Europa oriental como a Rússia, África e certamente norte da África, Índia e China. Ele escreveu sobre todos esses tópicos e alguns dos escritos do período inicial como 1853 são muito problemáticos porque talvez ele esteja olhando muito amplamente e então ele vê o capitalismo trazendo indústria e modernização para lugares como a Índia por meio do colonialismo britânico, ou até mesmo no Manifesto Comunista que é um escrito central de Marx e Engels, você tem aquela frase sobre quebrar as muralhas chinesas e forçar as nações bárbaras a entrarem no comércio mundial e meio que celebrando isso como uma conquista da burguesia. Então, nesse período anterior existe uma espécie de progressismo em Marx, você poderia chamar assim, em que eu acho que ele só não está completamente consciente da brutalidade do capitalismo em termos de como ele opera fora da Europa. Na verdade, poderíamos ir além e dizer que ele não tem total consciência até mesmo do modo como o capitalismo atua sobre a própria classe trabalhadora britânica, também porque no Manifesto Comunista e em alguns dos escritos anteriores, há muitos ataques ao feudalismo e muita discussão de que mesmo sendo doloroso muito progresso está acontecendo.

Se você vai um pouco depois aos livros Grundrisse e O Capital, o que você encontra é muito mais concentração na brutal exploração das classes trabalhadoras, tem só uma frase que eu achei no O Capital volume 1 onde Marx celebra o progresso que o capitalismo está trazendo, a maioria do livro é muito, muito negativo sobre o modo com que o capitalismo trata os trabalhadores em lugares como a Inglaterra, então uma evolução similar acontece no ponto de vista dele e na perspectiva sobre lugares como Índia e China, tão cedo quanto em 1856, isso é só três anos depois desses escritos sobre a Índia que o Edward Said tanto ataca, que você mencionou antes. Existe uma mudança na posição de Marx porque China e Índia ambas entram em levantes nacionalistas ou ao menos insurreições anticoloniais, contra os britânicos na China é chamada de a Segunda Guerra do Ópio, começando em 1856, na Índia é chamado de a Grande Rebelião ou a Rebelião dos Portos, então essas duas envolvem anos e anos de lutas antes que os ingleses e, em alguns casos na China, outras potências ocidentais sejam capazes de reprimir essas revoltas, e Marx e Engels estão meio que olhando aí e eles começam a dar um forte apoio a essas rebeliões contra o imperialismo, então já aí você tem isso começando a acontecer. Agora, eles não apoiam o projeto político dessas rebeliões porque o projeto político é central, existe um projeto político, essas são rebeliões espontâneas, o projeto político é uma nostalgia do passado, pela política pré-colonial então é claro que Marx e Engels, como socialistas, não podem apoiar isso, mas ainda assim eles apoiam os levantes e os consideram justificados e… se em 1848 no Manifesto Comunista eles chamam os chineses de bárbaros, agora eles estão chamando os britânicos de bárbaros, a linguagem do barbarismo é direcionada contra os britânicos, então isso é uma mudança que começa a ocorrer nos seus escritos.

Em termos de crítica da economia política, você pode ver em um sentido mais amplo nos Grundrisse, porque os Grundrisse de 1857-58 incluem pela primeira vez um capítulo sobre modos de produção pré-capitalistas, um capítulo muito longo e o que ele faz ali é que ele basicamente diz que sociedades como a Roma e a Grécia antigas tem uma estrutura social diferente de sociedades como a Índia. Então ele dá dois exemplos, da Índia e de Roma e fala sobre isso por um tempo, ele conclui que toda a estrutura das relações de propriedade nos vilarejos na Índia versus os vilarejos em Roma - essas são duas civilizações agrárias - conclui que elas são muito diferentes entre si e então ele não elabora realmente o que isso significa para o futuro, porque ele está falando mais em termos do passado, mas uma coisa que ele faz é se livrar do que algumas vezes é chamado de paradigma teleológico em Marx, isso não é algo pelo qual Said ataca Marx, mas outras pessoas de uma intenção similar algumas vezes falam que existe. Isso é mencionado pela primeira vez na Ideologia Alemã, existem vários modos de produção: primitivo, antigo, de escravismo ou feudalismo baseado em plebeus ou servos e então o burguês ou a sociedade capitalista com trabalho assalariado livre, trabalho assalariado formalmente livre e aí o socialismo. Existem alguns marxistas que até hoje em dia tentam encaixar a China ou a Índia pré-coloniais nesses esquemas, mas elas não eram feudais, tinham estados muito centralizados, tanto quanto a tecnologia da época permitia, não eram nem um pouco feudais no sentido ocidental europeu. Esse tipo de coisa de que você tem que passar pelo feudalismo, aí então pelo capitalismo e finalmente pelo socialismo, ele começa a quebrar isso, ele cria as ferramentas que permitem com que ele escape disso enquanto modelo político depois nos Grundrisse, porque a história passada se torna mais multilinear, nós podemos usar essa expressão de que as sociedades asiáticas são… é só que tem um conjunto diferente de desenvolvimentos naquela parte do mundo, e talvez em outras partes do mundo também, porque ele meio que fala sobre os Incas também etc. Então, essas sociedades não podem ser medidas pelos estágios que a civilização europeia ou a civilização ocidental europeia estava passando do Império Romano até o capitalismo.

André Barbieri: Sim, eu lembro que é uma parte muito interessante essa evolução do pensamento de Marx porque no seu livro, e eu também vi algumas cartas de Marx para Engels, em que ele diz “a Índia é nossa melhor aliada para a revolução na Europa”, então isso e outras cartas em que ele diz, criticando a brutalidade do colonialismo britânico na China enfatizando, muito entusiástico sobre a possível rebelião ou revolução até mesmo na China, que ela poderia ser o ponto de partida para a revolução na Europa. Então todos esses escritos dos anos 1850, essa evolução do pensamento de Marx é muito importante porque aqui e em muitos outros lugares nós temos alguns autores como Carlos Moore, que dizem que Marx é um supremacista branco, isso não é sério, simplesmente não é sério porque é uma total forma de ignorância dos escritos posteriores de Marx nos anos 1850, que absolutamente não considera esses escritos importantes e tudo o que Marx escreveu no final e depois das décadas de 1850 e 1860, ele realmente deu peso nesse apoio aos povos coloniais então eu acho muito interessante isso que você disse e você colocou isso no seu livro, nos ajuda a eliminar esse tipo de pensamento

Kevin Anderson: Sim e, quero dizer, esse autor particular aí ele tem esse panfleto em inglês, Eram Marx e Engels Racistas Brancos? com um ponto de interrogação, mas não é nem uma questionamento mais. O que ele faz são citações muito seletivas, ele até mesmo cita essa passagem que é racista que diz “a escravidão traz progresso”, ele cita isso, e Marx escreveu isso em A Miséria da Filosofia, mas o problema em citar isso é que Marx estava resumindo a posição do Pierre-Joseph Proudhon e aí algumas frases depois ele começa a atacar essa posição porque ele não concorda com essa posição, mas ela está lá então as pessoas até mesmo se sentem livres para só citar e algumas vezes provavelmente até criam citações de Marx. Mas o problema é que, veja, veio também do campo marxista isso, um tipo de reducionismo de classe que pensava que raça não era importante e novamente esse progressivismo, se fosse verdade, de que a sociedade passa por aquelas etapas e então a escravidão poderia ser considerada progressista em uma certa etapa, mas você nunca vê Marx dizendo isso, na verdade.

André Barbieri: Sim, e isso nos leva para nossa próxima pergunta porque, como você pontuou o jovem Marx já tinha teorizado que o capitalismo industrial foi fundado não só sobre a exploração da classe trabalhadora assalariada mas também sobre a existência do trabalho escravo do povo negro nos anos 1860. A Guerra Civil norteamericana na verdade representou um período importante do pensamento dele, em que Marx conecta classe, raça e nacionalidade e ele faz isso não só nos seus trabalhos político-históricos, mas também nos Grundrisse e no livro um d’O Capital, como você mencionou no seu livro, poderíamos dizer que Marx não separou os problemas de classe e de raça em uma teoria da emancipação. Em tempos de Black Lives Matter isso é muito importante para nós, certo?

Kevin Anderson: É, bem… Marx não fez tudo o que nós precisamos fazer mas ele certamente apoiou movimentos negros por autoemancipação durante a vida dele, ele se opôs à escravidão durante toda sua vida, ele… A primeira internacional, a Associação Internacional de Trabalhadores que ele ajudou a fundar em 1864, quero dizer, a base real para [fundar], a base mais importante pra isso foram os trabalhadores europeus e os socialistas se juntando para apoiar o Norte [abolicionistas] durante a guerra civil contra o Sul [escravista], porque diversos governos, principalmente a Inglaterra, mas também a França de Luís Bonaparte, estavam pensando em intervir na América do Norte para tirar vantagem da Guerra Civil, ambas tendiam mais para o Sul do que para apoiar o Norte por diversos motivos e as classes trabalhadoras da Inglaterra e da Europa fortemente se opuseram a isso e às redes que se formaram ao redor. Em 1858 Marx estava bem isolado da classe trabalhadora britânica, ou seja, ele conhecia algumas pessoas, mas os conheceu no Movimento Cartista e esse movimento tinha sido amplamente reprimido, então por volta de 1861 se tem todas essas espécies de reuniões acontecendo na Inglaterra, porque os trabalhadores estão saindo e se opondo às sugestões do governo de que talvez eles devessem intervir ao lado do Sul na guerra. Isso se torna um movimento muito grande e Marx acaba conhecendo essas pessoas, e quando eles fundam a Primeira Internacional são os representantes dos trabalhadores britânicos, são as pessoas que eram parte daquele movimento apoiando o Norte, e eles tiveram sucesso, a pressão deles impediu - ou Marx certamente pensou que - a pressão deles impediu o império britânico de intervir ao lado do Sul na guerra.

André Barbieri: Marx e Engels tinham uma posição muito bem delimitada contra a escravidão, contra os Confederados e eles até mesmo criticaram Abraham Lincoln por ele ter sido tão leve contra os Confederados, certo?

Kevin Anderson: Sim, bastante, especialmente no início porque demorou dois anos para que Lincoln realmente se posicionasse totalmente contra a escravidão e a escravidão não foi legalmente abolida, na verdade, até 1865, com a emenda constitucional, porque a proclamação de emancipação de 1863 era só uma medida de guerra, então ela podia ser revogada assim que a guerra acabasse. Mas eu quero dizer que isso é realmente um exemplo de internacionalismo proletário em outras palavras, nós não temos tantos exemplos assim nem mesmo hoje ou nem mesmo no início do século XX, mas aqui você tem trabalhadores britânicos que estão perdendo seus empregos e o governo britânico está dizendo “vocês estão perdendo seus empregos porque o Norte está bloqueando os portos de Charleston e Nova Orleans e o algodão não está chegando em Manchester, por isso vocês estão sem empregos”, mas os trabalhadores não caem nessa, eles não compram isso. Eles dizem “nós não queremos nos preservar ao preço do trabalho escravo do outro lado do Atlântico” e é claro, é idealismo e solidariedade de classe, mas também existe um interesse material real ali, que as pessoas não percebem porque pensam na Inglaterra como o país da liberdade de expressão etc, mas em 1864 a classe trabalhadora não tinha direito ao voto, eles não puderam ter isso até 20 ou 30 anos depois então, nos Estados Unidos, ainda que fosse um país racista, e ainda é, homens brancos da classe trabalhadora tinham o direito ao voto e não haviam pré-requisitos de propriedade para votar na maioria dos estados. Naquela época os Estados Unidos eram a maior sociedade que possuía direitos democráticos burgueses básicos ou o começo disso em termos de que dezenas de milhões de pessoas podiam votar e ter esse sufrágio, ainda que não fosse um direito das mulheres, que não fosse um direito dos negros. Não estou tentando exagerar os fatos, quando os trabalhadores britânicos estão vendo a guerra, a imprensa britânica, a mídia e o establishment estão cheios de coisas como “tem lá uma forma de governo republicano nos Estados Unidos e olhe pra esses idiotas, como o Lincoln, que eles acabam elegendo, todo o sistema está se despedaçando, é óbvio que esse experimento republicano tem menos de 100 anos, não vai funcionar e o Sul realmente parece melhor em termos de como você faz as coisas funcionarem com pessoas mais educadas tendo poder”, porque eles negavam o voto a muitas pessoas brancas lá no sul também.

André Barbieri: Então, essa tradição importante do marxismo nos Estados Unidos é central agora para, na minha opinião, combater o racismo e tudo isso que estamos vendo, a polícia, o Estado, não só Trump, mas também o partido Democrata que são os verdadeiros responsáveis pelas mortes de pessoas negras lá, até mesmo na época de Obama.

Kevin Anderson: Certo e Minneapolis, onde tudo começou, é uma das cidades mais liberais dos Estados Unidos e eles realmente tentaram reformar a polícia bastante, mas não funcionou. Eles não conseguiram e então estamos ainda com revoltas acontecendo por toda parte até nas cidades “mais liberais” como Seattle ou São Francisco e Nova York, quer dizer, Nova York é um caso diferente, porque é uma cidade muito liberal, mas também é o lar do grande capital, então sempre teve uma força policial violenta lá então sim, quando você começa a falar sobre desafiar a polícia ou talvez abolir a polícia, quero dizer, nem sempre se expressa abertamente em termos anticapitalistas, mas é um sustentáculo do sistema capitalista, quero dizer: como você acaba com a polícia sem abolir o capitalismo e os antagonismos de classe, se a polícia existe exatamente para esmagar e prevenir que as classes subordinadas se levantem? Então essa é uma questão muito difícil e, é claro, se a polícia for abolida, se amanhã de manhã eu balançar a varinha mágica e nós acabarmos com a força policial de Los Angeles, o que aconteceria é que todos os ricos e os interesses privados iriam simplesmente começar a contratar policiais particulares, é isso que eles fariam.

André Barbieri: Acho que você está muito correto nisso de que se você quer abolir a polícia você precisa lutar contra o capitalismo, porque é o sistema, a polícia é a guarda armada da propriedade privada então sim, se você quer abolir ela, você precisa abolir o que essa instituição racista protege. Então, se nós pegarmos agora, dos Estados Unidos, essas questões que nós vemos aqui e formos para a Inglaterra e a Irlanda, são temas muito importantes para Marx também. Especialmente nos anos 1860, como você mencionou no seu livro, porque logo a partir de 1869, logo antes da Comuna de Paris, você realça que Marx dá um importante giro em sua visão sobre como a emancipação da Irlanda iria se desenrolar. Marx afirma que a Irlanda era a chave para começar a revolução em uma sociedade capitalista avançada como a Inglaterra. Isso é uma afirmação muito, muito importante. Podemos dizer que é uma ideia falsa que Marx pensou a dinâmica da revolução começando apenas nos países desenvolvidos, o que você acha?

Kevin Anderson: Sim, quer dizer, Marx, o que acontece após a morte de Marx com pessoas como Karl Kautsky e afins é que você tem expressões mecânicas, que acabaram se tornando marxismo ortodoxo. E é claro que os melhores pensadores daquela era como Lênin ou Trótski ou Rosa Luxemburgo, ainda que estivessem operando dentro dessas categorias em algum grau, são capazes de ver além disso. Você tem esse tipo de coisa como o “campesinato é atrasado”, “a classe trabalhadora industrial é progressista”, “os trabalhadores que vivem há mais tempos nas cidades são mais inteligentes que os recém-chegados do interior”. Então eu acho que isso excluiria alguém como Lula, um cara como Lula nunca poderia ter sido um dirigente quando jovem, por que ele não nasceu em São Paulo, enfim, todo esse tipo de coisa.

Então, Marx em si é sempre muito flexível e criativo na maneira como ele olha para a revolução. Tem uma frase dos anos 1850 que eu acho que você citou antes, onde ele diz que a revolução talvez vá começar na China e se espalhar. Em 1863, quando a insurreição estoura na Polônia, ele diz “talvez vá sair da Polônia para a Europa Ocidental” e nós vamos ter uma verdadeira… ele está esperando que uma outra era como 1848 pudesse ocorrer de novo, talvez vá começar lá. E claro a Irlanda, que é muito importante. Porque a Irlanda não é apenas uma colônia, mas tem também os trabalhadores irlandeses na Grã-Bretanha, que ocupavam posições similares à dos negros nos Estados Unidos, que é o que Marx fala. Ele diz que as posições deles são similares à dos negros nos EUA e que os trabalhadores brancos, “britânicos”, não tem simpatia e compreensão suficiente com eles. Tem uma frase, nos trabalhos não publicados do Marx, do mesmo período, um pouco depois, onde ele está falando sobre a escravidão romana e os plebeus romanos e os escravos romanos e teriam estes levantes nos séculos I e II aC. Mas ali, eles nem sempre estariam separados um do outro. Então Marx, em suas notas, diz “estes trabalhadores brancos” os plebeus romanos, são similares aos trabalhadores brancos, ou aos brancos pobres do Sul, ele escreve em inglês. Ele está sempre muito preocupado com eles e com porque às vezes eles se unem aos negros, e incluindo os negros escravizados, mas tem muitos outros momentos onde eles estão orgulhosos de serem brancos, ou como você queira chamar, e então eles se aliam com as classes dominantes. E os trabalhadores britânicos, os trabalhadores ingleses dentro da Grã-Bretanha, ele diz que eles fazem isso demais. Eles desprezam os irlandeses, eles também estão orgulhosos do fato de que a Grã-Bretanha é o centro de um império mundial. E então eles perdem, ele diz basicamente que eles estão perdendo, que sua consciência de classe está sendo minada por esses apelos à raça e à nacionalidade.

Então, a revolução irlandesa é muito importante porque, veja, os trabalhadores britânicos têm esse estereótipo dos irlandeses, as coisas típicas que qualquer um fala sobre imigrantes. “Eles trabalham por baixos salários”, “eles são submissos”, “eles não querem entrar em nossos sindicatos”, e coisa e tal. Então eles os desprezam, até os sindicatos ingleses dizem “por que nós iríamos querer eles como membros? Eles não serão membros confiáveis de qualquer forma.” Então a Irlanda poderia se levantar e expulsar os britânicos, e serão os proprietários rurais britânicos que eles estariam expulsando. Isso realmente mudaria a atitude dos trabalhadores britânicos em relação a eles, “então esses irlandeses são capazes de lutar, interessante. Nós achávamos que eles eram submissos com os patrões, agora eles estão sendo assustadores, talvez nós devêssemos estudar mais isso”. E se a Irlanda se tornasse independente, e o que ele diz em 1869 e 1870, é que até que a Irlanda se torne independente não pode haver uma consciência de classe plenamente desenvolvida na Grã-Bretanha.

André Barbieri: E ele diz em uma carta de 1870, se eu me lembro bem, que a chave para a emancipação de classe na Inglaterra é a emancipação nacional na Irlanda. É uma afirmação muito importante para apoiar a luta contra essa divisão da classe trabalhadora britânica, certo?

Kevin Anderson: Sim, e é o caso irlandês onde ele, digo, ele nunca escreveu um texto inteiro sobre isso, mas é onde seu pensamento está mais desenvolvido em termos desta inter-relação de periferia e centro, de minorias étnicas dentro de um país capitalista e os trabalhadores dos grupos étnicos dominantes, porque as duas coisas operam entre Grã-Bretanha e Irlanda. Então é similar aos negros nos Estados Unidos, mas também é similar a relação da Índia com a Grã-Bretanha.

André Barbieri: Então nesta conexão, deixa eu te perguntar. No seu livro, você cita a teoria do desenvolvimento desigual e combinado, de Trótski. Quais são as relações que você vê entre o desenvolvimento multilinear em Marx e a teoria de Trótski?

Kevin Anderson: Sim, claro que tem similaridades e diferenças. As similaridades e continuidades são que Trótski percebe que, como ele chama, um elo frágil na corrente capitalista pode ser o lugar onde a revolução mundial começa. E claro, Marx e Trótski também são similares em que nenhum deles acreditava no socialismo em um só país, isso é uma ficção criada por Stálin. Nunca, você não acha isso em nenhum dos grandes dirigentes socialistas. Digo, veja o que aconteceu com a Grécia alguns anos atrás. Não que fosse socialismo, mas mesmo uma tentativa de socialismo e você é esmagado pelo capitalismo global. Então essas são continuidades.

A descontinuidade é que, enquanto Trótski foi capaz de se afastar bastante da ortodoxia reformista da Segunda Internacional, ele não o fez totalmente em questões como o campesinato. Porque enquanto seus escritos sobre a China são muito bons no sentido de criticar as políticas de Stálin na década de 1920 e a aliança acrítica e oportunista que os stalinistas formaram com os nacionalistas burgueses, ele está interessado unicamente no proletariado industrial, ele não desenvolve uma posição que permite a ele ver uma revolução agrário-camponesa. Enquanto Marx é capaz de fazer isso, na maneira que Marx conceitua, tem muitos lugares, incluindo a Irlanda, onde Marx acha que uma revolução agrária é possível e progressista, você não tem de esperar por uma industrialização substancial.

E tem um outro ponto onde Trótski é similar a Marx e onde, se você olhar, eu não sei se vocês tem isso em português, mas nos Estados Unidos é sempre algo muito importante. Por volta de 1939, Trótski conversou com CLR James e vários outros intelectuais sobre os negros nos EUA. E Trótski toma uma posição muito forte no sentido da necessidade dos socialistas apoiarem a luta negra, mesmo quando ela assume tons nacionalistas, você ainda tem que apoiar, ele diz. Então é uma posição muito, muito forte, não tem nenhum reducionismo de classe, não é o tipo de coisa “temos que esperar que os negros desenvolvam uma consciência socialista antes de apoiá-los”. Mesmo essas organizações burguesas negras, ele diz, nós temos que apoiar sua luta por direitos democráticos básicos. E fazendo isso é um passo muito importante na consciência de classe do proletariado como um todo nos Estados Unidos, porque assim como com a Grã-Bretanha na Irlanda, ele não diz desta maneira, mas como estávamos falando disso, os trabalhadores brancos nos EUA, por causa de seu racismo e seu preconceito, isso bloqueia em grande parte o desenvolvimento de uma consciência de classe completa, e é tão verdade hoje quanto era na época em que Trótski escreveu ou fez estas declarações.

Então Trótski tem vários pontos positivos, mas eu diria que nessa questão das sociedades agrárias é um pouco fraco.

André Barbieri: Eu acho muito interessante porque você disse que Trótski e Marx tem uma continuidade nessa visão de que a revolução deve ser mundial, não é restrita a um país. E eu acho que tem alguns preconceitos stalinistas sobre isso, sobre essa coisa de que o Trótski não se importava ou nunca desenvolveu nenhuma teoria sobre o campesinato, porque eu acho que na verdade o Trótski enfatiza a importância da revolução agrária na Rússia e em todos os países orientais e diz que ela deve ser combinada com a revolução industrial para que o proletariado, a classe trabalhadora industrial, tenha um papel dirigente nessa aliança, de liderar essa imensa luta dos camponeses e dos trabalhadores rurais. Então eu acho que temos que ver isso de uma maneira um pouco mais aprofundada, porque a Teoria da Revolução Permanente verdadeiramente leva em conta a importância do campesinato lutando junto a classe trabalhadora industrial, você não acha?

Kevin Anderson: Bom, não é só o Trótski quem diz isso, tem pessoas como Amílcar Cabral também, veja, o problema é por que a classe trabalhadora, em uma sociedade agrária, tem de ser quem lidera a revolução, necessariamente? E aqui vale a pena ver os escritos de pessoas como Frantz Fanon. Em Os Condenados da Terra ele fala de um movimento revolucionário baseado no campesinato e ele fala sobre os trabalhadores; a Argélia nos tempos em que ele escreve é tão subdesenvolvida industrialmente que a classe trabalhadora é um estrato privilegiado nas cidades.

Agora, cada situação colonial é diferente. Por exemplo, a África do Sul é uma sociedade que tem uma classe trabalhadora grande na mineração e também na produção e eu considero o Apartheid uma continuação do colonialismo. Então, lá você tem um grande movimento operário e os setores agrários são menos importantes. Mas se você olhar para várias das lutas africanas, várias das lutas na Índia, China, Vietnã e outros lugares, eu acho que você achará os camponeses mais significativos do que a teoria do Trótski permite que eles sejam.

Francamente, o que eu acho é, a verdadeira posição caricatural é a de Kautsky, que vê os camponeses simplesmente como atrasados, mas Trótski ainda é, e eu acho que de todas as pessoas, Luxemburgo também, e Lênin supera isso em maior grau que Trótski e Luxemburgo. Mas todos eles têm essa coisa sobre a centralidade do proletariado, do proletariado industrial nos grandes centros urbanos, que não é sutil como a teoria de Marx, não é tão sutil, não é tão dialético. E eles mesmo teriam admitido isso, assim talvez, eles próprios teriam dito “nós não somos tão bons quanto Marx”. E eu diria isso também, claro.

André Barbieri: Claro. Eu me lembro de alguns escritos, dos anos 1930, do Trótski sobre a Índia, sobre a Indonésia, que ele realmente leva em conta a importância da questão agrária para revolucionar a sociedade. E então ele faz essa importante afirmação de que a classe trabalhadora urbana tem de levar em conta, tem que ajudar a revolução agrária a se desenvolver. É um debate muito interessante este, mas para voltar aos escritos de Marx, eu gostaria de te fazer uma pergunta muito importante para nós aqui do Brasil.

Vamos falar sobre os últimos trabalhos de Marx, os chamados Cadernos Antropológicos de 1879-1882. Essa série de artigos são quase desconhecidos do grande público, principalmente porque a maioria não foi publicada e agora estão sendo resgatados no projeto do MEGA. Marx escreve sobre Índia, Indonésia, Rússia, Argélia e até a América Latina. Que tipo de novidade podemos extrair desses estudos?

Kevin Anderson: Primeiro, é preciso entender que não existem livros, são ensaios, alguns são rascunhos, notas de outros autores etc, então tem muito sobre Irlanda, ele também olha para a estrutura social interna da Rússia, da Índia, norte da África e um pouco de América Latina, como você estava falando, Irlanda e também muito sobre grupos indígenas como sociedades nativas das Américas, particularmente norteamericanas, mas também os Astecas no norte do México.

Então ele observa essas diversas sociedades indígenas e suas estruturas sociais, ele estava muito interessado em como nossa hierarquia social começa, o começo das classes, não exatamente estruturas de classe, mas como as classes sociais estão surgindo, as indicações que elas estão começando a se formar.

Claro que ele está interessado nas relações de gênero. Agora, parte do que nós como marxistas conhecemos é o livro de Engels A Origem da família, da propriedade privada e do Estado. Isso é assim porque Engels leu alguns dos cadernos de Marx e então ele escreve um livro sobre a história das relações familiares e de gênero desde os tempos antigos até o tempo em que viveu e ele conclui através disso que houve um período ancestral quando a vida era mais coletivista, mais igualitária entre homens e mulheres e que isso seria uma espécie de base a partir da qual poderíamos pensar sobre o comunismo.

Sabemos no futuro que o modelo de Engels é um pouco simplista comparado com o de Marx, então é interessante olharmos para os cadernos de Marx que são mais dialéticos. O que Engels não percebeu ou não se concentrou detidamente é que eles falam sobre colonialismo tanto quanto falam de gênero. Ambos são os focos de Engels nos assuntos de relações familiares e de gênero. Então tem uma ampla gama de material que não sabemos o que Marx iria fazer com eles. Mas é realmente interessante porque Marx terminou o volume 1 do Capital, foi trabalhando nele de 1867 a 1875. Ele continuou trabalhando no volume 1 sete ou oito anos antes de sua morte, porque havia uma edição francesa (1872-75) que ele ficava retrabalhando e revisando. Os volumes 2 e 3 d’O Capital, como sabemos, foram escritos entre 1864 e 1865 e ele nunca voltou neles, apenas um pouco no volume 2 na década de 1870.

Então Engels e muitas outras pessoas pensaram “bom ele deve estar terminando o resto d’O Capital”. Mas ao invés disso, no final da vida ele estava fazendo uma série de outras coisas e uma das coisas, digo, não apenas sobre essas sociedades, há cadernos sobre química, ciências naturais, história europeia etc. Então ele estava fazendo um monte de coisas diferentes. Mas essas em particular são interessantes porque Engels ficou chocado e assustado quando Marx morre e ele vê os escritos de Marx e fica triste pensando “Por que ele não terminou O Capital? Por que ele ficou trabalhando nisso?” Então por aí pode se ver o eurocentrismo de Engels de “por que ele está trabalhando com coisas secundárias como a Índia ao invés de terminar O Capital?”

E então quando os russos, na década de 1920... bom, você sabe que a Segunda Internacional nunca publicou os escritos completos de Marx. Apenas na Rússia vemos a primeira tentativa por esse rapaz, David Riazanov. Ele é que estabelece o que podemos chamar de Obras Completas de Marx, a estrutura e tudo mais. Ele nota bem que existem esses cadernos que Marx fez no fim da vida e até acha que alguns são interessantes, mas crê que isso mostra basicamente a deterioração mental de Marx nos seus últimos anos quando não estava mais capaz de fazer trabalhos sérios como a crítica da economia política. Apenas conseguia ler sobre Índia e Rússia. “Então não vamos incluir isso nas Obras de Marx, obviamente.” Então é por isso que por quase 100 anos esse material tem sido conhecido pelos estudiosos de Marx em Moscou e em Berlim e outros lugares, como Amsterdam, mas nunca houve muito interesse em publicá-lo.

Então é onde estamos hoje. Tem dois períodos em sua vida, em 1850 e no período final, esses são os períodos onde seu pensamento sai um pouco da Europa em termos de pesquisa e isso é algo realmente interessante para analisarmos. E claro, conhecemos uma coisa que saiu disso que é a carta à Vera Zasulitch e o prefácio à edição russa do Manifesto Comunista de 1881 e 1882, as duas últimas coisas que escreve, onde fala... Bom, posso te contar, mas talvez esteja me alongando muito...

André Barbieri: Pode continuar, sem problemas.

Kevin Anderson: Porque tem um tipo de conclusão política a isso e a forma mais sucinta e a melhor para analisarmos que é aquele tipo de pessoa que diz “bom, talvez Marx estivesse pensando apenas nessas coisas”. Mas é apenas através dos cadernos que podemos saber o que ele realmente estava pensando. Essas são apenas suas notas, mas olhemos o prefácio de 1882 ao Manifesto Comunista, essa é a última publicação de Marx e claro que é assinado por Engels também. Então é o último escrito publicado por Marx em alemão, rapidamente traduzido para russo, pois era a edição russa do Manifesto, e rapidamente publicada em alemão também. Então, o que ele diz?

Ele fala “bom, no Manifesto Comunista tem 2 países que deixamos de fora, um era a Rússia”. Então ele começa a falar sobre o movimento revolucionário na Rússia e como os populistas estavam atacando o governo com táticas terroristas e que obrigavam o governo a ter imensas guardas policiais para todos os ministros. Então ele fala que temos que olhar também para os Estados Unidos, fala sobre o que agora nós chamamos de capitalismo monopolista, que estava começando a surgir nos Estados Unidos. Então ele volta para Rússia e diz que tem algo diferente ocorrendo na Rússia, que é o fato de que as aldeias russas estavam começando a serem impactadas pelas relações sociais capitalistas e que a aldeia russa tinha uma estrutura social muito diferente do que a aldeia da Europa ocidental sob o feudalismo. Naquela aldeia russa havia relações coletivas e a propriedade comunal então ele chama de comunismo, na verdade ele usa a palavra comunismo para essas relações comunais.

E ele fala que se a Rússia consegue defender as suas relações comunais na aldeia contra as invasões capitalistas, se isso se torna generalizado, isso pode se tornar o início para uma revolução europeia mais ampla que poderia se ligar com o proletariado da Europa ocidental. Então, de novo, como na Irlanda, a revolução começa não em Paris ou em Londres, ela começa na aldeia russa e aquilo poderia virar a faísca. Claro que Marx não era adepto do socialismo em um só país então ele não acredita que a Rússia sozinha iria se desenvolver em uma sociedade socialista viável, mas poderia se tornar a faísca e uma importante parte de um movimento amplo contra o sistema capitalista se conseguisse se ligar ao movimento operário no Ocidente. Então nós temos três exemplos: temos a Guerra Civil, onde o movimento de escravos, a rebelião dos escravos foi uma grande parte da Guerra Civil. Esses escravos, pessoas negras, se ligam com as aspirações dos trabalhadores britânicos dentro da Inglaterra, que os apoiam. Segundo, temos a Irlanda onde há o potencial dos trabalhadores britânicos apoiarem ou aprenderem com o movimento nacional internamente na Irlanda, e os dois se ligariam, esse movimento rural e o movimento operário na Inglaterra e todas as minorias irlandesas dentro da classe trabalhadora inglesa. Agora temos o terceiro que é a revolução mundial – ou pelo menos na Europa e América do Norte – poderia começar nas aldeias russas com pessoas tentando defender alguns remanescentes de um comunismo primitivo que poderia engolfar a Rússia, e então se liga com o movimento socialista no Ocidente e que poderia inclusive triunfar. Mas a faísca poderia acontecer na Rússia.

André Barbieri: Isso foi bastante interessante, a conexão que Marx faz das sociedades que são “subdesenvolvidas” do ponto de vista capitalistas podem ser o pontapé inicial da revolução em toda a Europa. Dessa forma é bem interessante isso como você disse da Irlanda e às vezes ele menciona sobre a China também, e agora falando sobre a Rússia. A modo de conclusão, no fim de Marx nas margens você mostra como a teoria da mudança social em Marx é na verdade a combinação da luta de classes, raças e nacionalidades. De que modo podemos conectar isso com a perspectiva desse enorme movimento do Black Lives Matter contra a polícia e o racismo nos Estados Unidos e no mundo, da pandemia de Covid-19 e da crise econômica?

Kevin Anderson: A Covid-19 é um bom exemplo para começarmos porque, por um lado, o vírus é completamente neutro e global, ele atinge todo mundo, não se importa com raças ou nacionalidades, vai em todos os lugares, é totalmente impessoal. E o capital é da mesma forma; não é a mesma coisa, mas é uma relação social que penetra e tenta se desenvolver. Inclusive, tem muita gente que compara o capitalismo a um vírus ou um parasita. Um dos meus alunos escreveu uma dissertação sobre isso recentemente, Sean van Dalken o nome dele. Mas por outro lado, isso é um nível imenso de abstração, mas quando olhamos mais fundo vemos o que Marx escrevia no Manifesto Comunista, ele e Engels podem escrever que tudo está polarizado entre duas classes, burguesia e proletariado e todas as outras classes vão desaparecendo, aristocracia, pequena burguesia, camponeses, todas desaparecendo.

Mas isso é como um modelo muito abstrato. Isso é como a tendência da queda da taxa de lucro, é uma tendência de longuíssimo prazo, mas quando se descreve uma sociedade particular, um país particular tem de ser concreto, tem de ter a dialética do concreto. Então quando olhamos de certo modo o volume 1 d’O Capital, a Inglaterra era o país capitalista mais puro, certo? E todos os exemplos eram de lá. Mas a Inglaterra não é um país capitalista puro, porque sua estrutura de classe... antes de tudo eles têm uma aristocracia, eles não têm apenas uma classe manufatureira. E a aristocracia possuía terras na Irlanda e também tinham uma classe trabalhadora segmentada e dividida por causa do subproletariado irlandês. Então, começamos a olhar concretamente para a classe trabalhadora britânica e não podemos falar apenas de capital e trabalho, temos que falar sobre raças e etnias, e nacionalismo, e capital e trabalho. E temos que fazer uma análise histórico-sociológica concreta do lugar da Inglaterra em determinada época. E temos de ser muito dialéticos, e bom, você sabe, eu sou um sociólogo e há sociólogos muito bons como Pierre Bourdieu, fantástico às vezes, em analisar as estruturas de dominação. Max Weber também. Mas a sociologia é muito fraca como um campo de observação do subjetivo, em observar quais as forças em oposição e da revolução e Marx está sempre preocupada com ambas.

Marx nunca escreveu que os trabalhadores britânicos são todos um bando de etnocêntricos anti-irlandeses, que nunca vão fazer uma revolução por causa disso. Nem mesmo quando os brancos pobres do sul dos EUA, depois deles apoiarem os Confederados e os donos de escravos na Guerra Civil. Mesmo assim Marx nunca desistiu deles porque todas as classes sociais passam por períodos de retrocessos e de saltos da consciência, e por isso sempre temos de olhar na possibilidade que grandes mudanças sociais possam quebrar esses preconceitos e essas estruturas que mantém o capital no lugar, mantendo a alienação e as falsas formas de consciência, tem sempre a possibilidade delas se quebrarem.

Aqui nos Estados Unidos falamos muito de como a classe trabalhadora branca é parte da base de Trump, mas essas pessoas não são monolíticas, não é como se elas fossem ser pra sempre assim, como se sempre fossem assim e vão ser pra sempre dessa forma. Então temos agora com o Black Lives Matter como você mencionou, esse movimento imenso, que envolve jovens negros mas também envolve vários jovens brancos e vários jovens latinos, pessoas de origem latinoamericana, majoritariamente mexicanos, que são o maior grupo desses, mexicanos-americanos por sua origem, ainda que tenham nascido aqui em muitos casos. Agora, isso tem acontecido após a campanha de Sanders, onde muitas pessoas foram mobilizadas em torno de questões de classes e agora nós temos essa imensa raiva contra o racismo do sistema social norteamericano. Isso está na vanguarda e é muito interessante ver como tudo isso está interagindo no presente momento e falam que mais pessoas tem participado nesse movimento, do ponto de vista numérico, do que em qualquer outro movimento na história desse país. Recentemente uma antiga liderança negra, John Lewis, veio a falecer, um líder muito importante do movimento pelos direitos civis. Além disso, muitos antigos líderes negros têm sua base na igreja negra, muitos deles são pastores e reverendos. Black Lives Matter tem pouco a ver com esses grupos, as duas fundadoras do movimento são mulheres negras lésbicas.

Então, nesse movimento, desde quando foi fundado, quatro ou cinco anos atrás, nunca teve muito a ver com o movimento baseado nas igrejas, parte do movimento negro. Então é um pouco diferente, é uma nova sensibilidade, uma nova consciência e está realmente balançando as coisas de um jeito que realmente não víamos desde os anos 1960 nesse país. E eu acho que podemos agradecer Donald Trump, e ele é muito perigoso, pode fazer muito dano, digo, mesmo que ele não seja re-eleito ele estará no poder até janeiro e ele já está mandando a Polícia Federal em Portland, estado do Oregon, sem [identificação]... Digo, parece que estamos no Brasil, aí tem esses policiais que não tem nomes identificando, eles simplesmente põem uma coisa em cima da cabeça das pessoas e prendem elas e falam “não vamos responder nenhuma pergunta sobre porque estamos te prendendo”. Isso mostra como o mundo é realmente global e os EUA não tem como apoiar por décadas esses tipos de regimes e não ter isso de volta no seu próprio país e Trump... bom, você sabe, ele é o que ele é, demagógico, líder ditatorial com aspirações para ter um golpe militar ou algo do tipo.

André Barbieri: Como você disse, temos nos Estados Unidos um regime bipartidário agressivo e ultrarracista, com o Partido Republicano e o Partido Democrata, eles mostram como ambos são responsáveis por isso. Trump é coisa mais vil que podemos pensar como um ser humano e, se vamos levar em conta essas ideias que discutimos aqui, eu realmente gostei dessa conversa, porque se apropriar das ideias marxistas, das ideias de Marx e de todos esses escritos, podemos imaginar que tudo isso mostra que nos Estados Unidos nós precisamos ter um movimento marxista. Esse movimento socialista que seja necessariamente independente tanto do Partido Democrata, Biden, Obama e até de Sanders. Precisamos ter um novo movimento da classe trabalhadora que permita que pensemos a revolução nos EUA. Então eu realmente gostei dessa conversa com o professor Kevin, muito obrigado pelo tempo que ficamos aqui e se quiser, no fim da nossa entrevista, dar umas últimas palavras para a nossa audiência.

Kevin Anderson: Claro, eu realmente gostei dessa conversa, tenho que dizer que o Brasil é um lugar que tem muito mais conhecimento de marxismo que os EUA. Muito mais pessoas são versadas em marxismo e é por isso que estou tão feliz que meu livro esteja publicado em português no Brasil. Eu acho que encontrará uma série de leitores que realmente entendem sobre os assuntos que estou falando lá. Eu também gostaria de mencionar que eu escrevo para um site chamado Image Journal, é uma publicação online e vários dos meus escritos curtos estão lá, inclusive eu tenho um artigo sobre o Black Lives Matter que está nesse site. Então eu recomendo para as pessoas se elas quiserem ler e por último eu agradeço muito de novo, eu apreciei muito esse diálogo.


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André Barbieri

São Paulo | @AcierAndy
Cientista político, doutorando pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), é editor do Esquerda Diário e do Ideias de Esquerda, autor de estudos sobre China e política internacional.
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