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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO-UERJ | Em defesa das cotas e do direito a autodeclaração: um debate sobre as comissões de heteroidentificação.

quinta-feira 31 de dezembro de 2020 | Edição do dia

Foto:Google.

No Brasil de Bolsonaro, as pesquisas, as cotas e os negros têm sido um alvo frequente de ataques. O projeto de país desses setores é aumentar a precarização e a superexploração do trabalho, se apoiando no racismo e na violência policial, para a frente à crise econômica internacional, garantir o lucro dos capitalistas. Por isso, também atacam os direitos sociais e as políticas públicas afirmativas, como as cotas. Não querem os negros e a classe trabalhadora nas universidades, querem universidades privadas, para levar à frente o que sempre defenderam, que as universidades não são para todos e que precisam ser pagas e privadas.

Em 2019, lotamos a UERJ numa audiência pública em defesa das cotas quando o deputado do PSL/RJ Rodrigo Amorim, apresentou seu projeto para a anulação das cotas raciais nas universidades estaduais do Rio de Janeiro. Esse reacionário ficou conhecido por rasgar a placa de rua com o nome de Marielle Franco durante as eleições de 2018. Em 2020, o deputado estadual Fernando Holiday, fez um PL em 2020, pra acabar com as cotas em São Paulo e foi rechaçado. São esses mesmo setores que se utilizam de forma oportunista das denúncias de fraudes para questionar as cotas de conjunto. Por isso, a defesa hoje dessa conquista histórica não pode estar separada da luta contra a extrema direita que nega o racismo e quer retroceder nos direitos conquistados da classe trabalhadora.

É necessário acabar com o vestibular para garantir o amplo acesso da juventude negra e pobre às universidades públicas
Frente ao aumento das denúncias de fraudes nas universidades e concursos públicos, essas instituições, apoiadas por setores do movimento negro e estudantil, elegeram as comissões de heteroidentificação, como política central para assegurar a eficácia das cotas diante das denúncias fraudes.

Qualquer vaga destinada aos negros e pobres que seja ocupada por qualquer pessoa que não possui esse direito, é inadmissível e precisa ser combatido, mas a forma de fazer isso não pode significar a criação de mais um filtro aos negros, num mecanismo que fere o direito histórico da autodeclaração, como são as comissões de heteroidentificação. As cotas, existem porque o sistema universitário brasileiro é extremamente elitista e historicamente destinado, à burguesia e mantém até hoje o filtro social racista e elitista, o vestibular, o principal obstáculo pra juventude negra entrar nas universidades públicas.

As fraudes não podem ser pensados só dentro das universidades, ou como ações individuais que precisam ser combativas, são expressão de um problema maior, que é o elitismo no acesso ao ensino superior no país. As fraudes tiram vagas de negros, mas não são elas que impedem que não tenhamos mais médicos negros ou advogados no país. Esses são cursos elitistas no seu acesso e na sua permanência, são muitos os estudantes que precisam trabalhar e não podem fazer cursos de horário integral ou mesmo não possuem renda para financiar livros e materiais. Se separamos as fraudes desse problema estrutural que é o vestibular, deixamos de combater o principal inimigo da juventude negra e pobre no nosso país.

Por isso, nós do Quilombo Vermelho e da Juventude Faísca, lutamos em defesa das cotas, sem separar da necessidade de democratizar radicalmente as universidades públicas, para que seja possível que toda a juventude negra tenha acesso ao ensino superior sem precisar passar por esse filtro social elitista e racista. E lutamos também para acabar para estatizar todas as vagas das universidades privadas, que viraram um grande monopólio financeiro nos governos do PT. Que todas as dívidas dos inadimplentes sejam perdoadas, para que estudar não signifique assumir uma enorme dívida, que vai para bolso de milionários da educação. Para que estudar seja um direito gratuito. E para os que acham isso utópico, em países como a Argentina, não existe vestibular desde 1918, e muitas universidades da América Latina são assim.

As cotas cumprem um papel fundamental, para inserção dos negros e pobres nas universidades, mas ainda longe de garantir que os negros na universidade estejam representados em uma porcentagem igualitária ao seu peso que possuem em cada estado. Assim, como qualquer política pública, as cotas possuem limites, porque visam incidir na expressão de uma profunda desigualdade social, podem minimizar as disparidades, mas não eliminá-las.

De acordo com relatório da UERJ, dos quase 16 mil alunos cotistas, os negros representam um total de 7 mil ingressantes, no Estado do Rio o conjunto de negros corresponde a mais de 57% da população. Por isso para nós a defesa das cotas hoje, significa também exigir do Estado que as cotas sejam no mínimo proporcionais ao número de negros em cada estado. Passa também por tomar medidas concretas para que os jovens negros não sejam 71,7% daqueles que precisam abandonar a escola no ensino básico para poder trabalhar, como mostrou uma pesquisa recente lançada pelo IBGE.

O Estado e as universidades precisam se responsabilizar pela construção de campanhas informativas sobre as cotas nas escolas e cursinhos populares. Pois sabemos que muitas vezes os alunos de escolas públicas, nem sabem da existência dessa política ou não veem a universidade como algo possível para sua vida. E, contraditoriamente há, infelizmente, ainda ociosidade de vagas de cotas em diversos cursos. As cotas e as medidas para acessá-las deveriam ser parte do dia a dia das discussões nas escolas, e junto a isso uma ampla campanha de conscientização contra as fraudes que tem que ser feita permanentemente. Para isso é importante também que a universidade torne o processo de inscrição das cotas algo acessível e compreensível, com editais mais didáticos e menos burocráticos, porque tal como é feito atualmente é bastante excludente, no processo de reunir os documentos necessários as pessoas não conseguem e desistem.

A efetividade da política de cotas passa também por ter políticas de permanência plena, que garanta bolsas de estudos para que os estudantes possam ter acesso a livros, materiais, transporte, acesso digital, políticas de alimentação, creches, moradias, todas essas demandas históricas dos estudantes que são constantemente atacadas pelas universidades e governos.
Cada luta que travamos na universidade, é parte da defesa de um projeto de universidade, à serviço da classe trabalhadora e do povo pobre, colocando seu conhecimento a serviço da classe trabalhadora e do povo pobre.

A hipocrisia da Reitoria da UERJ na luta antirracista
Na UERJ, essa comissão está sendo implementada em plena pandemia sem um amplo debate do conjunto da universidade, apenas com audiências (nas quais a opinião minoritária pode falar apenas em uma audiência) e sem ser votada em nenhuma fórum democrático das categorias, o DCE não convocou nenhum espaço e muitos cursos que não possuem coletivos negros não fizeram esse debate.
É no mínimo contraditório que a Reitoria e o DCE (dirigidos pelo PT, PcdoB e Levante Popular da Juventude) estejam tão preocupados em criar essa comissão, enquanto impuseram o Ensino Remoto de cima pra baixo, um sistema de precarização e exclusão, que atinge mais o negros e pobres, que são a maioria entre os que trancaram as matrículas e que não conseguem acompanhar o semestre. Essa mesma Reitoria, ligada ao PT, manteve centenas de terceirizadas, mulheres negras e pobres, limpando os corredores do campus Maracanã e sendo ameaçadas de demissões, quando poderiam ter sido ser liberadas na COVID. Qualquer debate sobre a luta antirracista na universidade, tem que partir da denúncia das posturas que os mesmo setores que implementam a comissão, tomam frente aos problemas de conjunto na universidade.

Brasil: o pais da miscigenação forçada
O Brasil tem mais anos de escravidão do que liberdade do povo negro. O fim da escravidão não garantiu nenhuma reparação aos negros, ao contrário, reservou os postos precários de trabalhos e condições de vidas desumanas. A burguesia nacional buscou perpetuar o racismo nas estruturas sociais do país, enquanto buscava apagar nossa trajetória de luta e nossa identidade e assim mantém vivo o racismo de hoje.

O capitalismo não existe sem o racismo.
A miscigenação foi feita na base do estupro de mulheres negras que não eram tratadas como mulheres, mas sim como objetos para procriar e trabalhar. E aos longo dos anos a burguesia racista construiu o mito da democracia racial para dizer que o racismo não existe no país e que somos o país da mistura das raças. Adotou a tática de branqueamento da população na tentativa de eliminar a maioria negra. O mito da democracia racial juntamente com o processo de branqueamento populacional no pós-abolição, incentivado por uma elite branca com uma política de dominação de classe, criou uma massa extensa de jovens, homens e mulheres negras de tons claros que, segundo essa mentira absurda, não sofriam mais com o racismo e eram miscigenados, não eram negros. Essa foi uma política levada à frente pela burguesia durante anos no Brasil e que reverbera ainda hoje com muita força. Ela incentivou a população negra a não se declarar preta ou negra e sim parda ou branca, e criar a ilusão de que não existe racismo e que os negros de tom claro não sofrem com preconceito de cor, fazendo milhões de negros não se enxerguem como tais.

No Brasil, o país mais negro fora do continente africano, dos 54% da população considerada negra pelo Estado, somente cerca de 9% se autodeclaram pretos e 45% como pardos. Vivemos numa sociedade de classes, onde a burguesia explora e reprime a classe trabalhadora e se baseia também na opressão racial, no racismo para explorar e oprimir mais. A burguesia ganha muito ao fazer com que uma parte importante dos negros não se enxerguem assim, pois os trata como inferiores cotidianamente sem que seja explicitamente questionada pelo seu profundo racismo.
Portanto, foi uma conquista histórica o direito a autodeclaração, bem como a definição atual do IBGE que considera negros o conjunto de pretos e pardos. Ainda que não concordemos com a denominação de pardos, porque eles são negros de pele clara, consideramos que a autodeclaração é a forma mais correta de encarar um país miscigenado como o Brasil.

As comissões de heteroidentificação ferem o direito histórico da autodeclaração
As comissões de heteroidentificação criam mais uma barreira para os negros que passam no vestibular, ferindo o direito a autodeclaração, e aprofundam a divisão artificial entre negros de pele escura e pele clara. Essa divisão só fortalece Bolsonaro e todos os racistas que atacam todas as expressões da nossa identidade, enfraquece nossa organização e força.

O aumento das pessoas que se autodeclaram pretas e pardas são uma expressão da luta antirracista e do orgulho de que milhares de pessoas passam a ter da sua própria cor. A tomada de consciência racial é um processo, e a seleção das comissões é para muitos negros de pele clara, um questionamento doloroso.
A UERJ, por exemplo, tem mais de dez anos a política de cotas e em quase todos esses anos as cotas raciais ficam atrás das cotas de escola pública, esses dados apontam um elemento concreto da realidade dos negros no Brasil que é a dificuldade de se declarar como negros.

A ascensão da extrema direita pós golpe institucional, com a eleição de Bolsonaro, significa a direita negar inclusive a farsa da democracia racial, por uma lógica ainda mais racista, pra dizer que não existe racismo, que o Brasil não tem uma maioria negra e sim um "povo", e que pardos não são negros. Que os pretos são uma minoria. Por isso a defesa da autodeclaração é ainda mais importante no momento político que vivemos, não podemos devolver o direito de definir nossa própria identidade ao Estado.

As portarias que regulam as comissões foram feitas por intuições como o Judiciário e o Ministério Público, os mesmos que encarceram em massa a juventude negra e pobre, sem julgamento, que votam leis contra os trabalhadores e julgam as greves ilegais. São uma casta privilegiada, com altos salários que não foi eleita por ninguém, portanto, não podemos ter nenhuma ilusão que o MP ou o Judiciário, instituições cruciais no regime do golpe, estejam preocupados em ter mais negros na universidade, ou de que essas vagas não sejam usurpadas.

Pardo é privilégio?
Outro elemento chave nesse debate é a forma como são tratados os “pardos” nesse processo, vários setores definem que os pardos, ou seja, os negros de pele clara possuem privilégios em relação aos negros retintos. Bom não é isso que diz nenhuma estatística do país e nos faz questionar onde estão os privilégios de ser pardos no Brasil? Segundo, o artigo de Gabriela Bacelar:
“Segundo o IBGE (2010) a taxa de desempregados no Brasil é de 8,85% para pardos, 8,93% para pretos e 6% para brancos. No mesmo período o Instituto registra que 45,47% dos pardos formam a população de baixa renda – definida como àquela que possui uma renda menor que a metade de um salário mínimo, os pretos são 41,10% dessa população e os brancos 23,53%. A taxa de analfabetismo de pretos é 14%, 12,6% para pardos e 5,7% para brancos. Entre 2007 e 2017 o Sistema de Informações sobre Mortalidade registrou que dos homicídios que vitimaram homens, 64,6% eram de homens pardos. Passando pela renda, escolarização e as marcas do genocídio, eu paro essa apresentação de números oficiais para voltar ao assunto do privilégio.

As comissões formadas partem de percepções sobre o fenótipo do negro, e essas percepções não são somente subjetivas, como também não são neutras. É notório os debates hoje, feito por setores do movimento negro que querem lhe inferir a autoridade de definir quem é negro no Brasil e quem não é. Então, não é por acaso que vemos pessoas negras de pele clara, não passarem pelas bancas avaliadoras.
Essas posições coloristas dentro do movimento negro, são uma resposta à direita ao mito da democracia racial e ao branqueamento/miscigenação, enquanto política de dominação de classe. A identidade negra passa a ser presumida não apenas pela tonalidade da pele, se é mais ou menos retinto, mas também pelos traços fenótipos que essa política tentou apagar. Só que os negros de tons claros não deixaram de sentir a dor do racismo e muito menos os efeitos econômicos deste estando nos piores postos de trabalho, recebendo os menores salários e sendo o alvos da polícia. Separar os negros entre claros e retintos está na contramão da luta necessária para enfrentar o sistema racista que é o capitalismo.

Por isso, acreditamos que é um erro que o combate às fraudes venha se transformando na criação de mecanismos institucionais que ferem o direito histórico da autodeclaração. Se a autodeclaração é verificada, regulada, aferida, na prática ela está sendo anulada e isso pode significar se essa pessoa entra ou não na universidade. Com intuito de coibir fraudes, as comissões já estão tirando dos negros de pele clara o direito a entrar na universidade, além de significar um enorme constrangimento. E colocam as comissões submetidas as gestões antidemocráticas e autoritárias das universidades, nas quais as reitorias e conjunto de professores tem poder de decisão maior, do que trabalhadores e estudantes que são maioria.

Para derrubar Bolsonaro, Mourão e essa extrema direita racista, e também todas as instituições desse regime podre do pós golpe, como STF, a câmara e o senado e todos seus representantes, a nossa luta antirracista, não pode limitar nossas demandas e nos dividir, mais do que nunca num ano marcado pela luta negra que grita por justiça, precisamos unir o conjunto dos negros e a classe trabalhadora, pra defender cada direito nosso garantido com muita luta, no país que mata um George Floyd a cada 23 minutos.




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