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Editorial Carcará: a arte sob o signo da luta de classes

Lina Hamdan

Editorial Carcará: a arte sob o signo da luta de classes

Lina Hamdan

Colocar a temática da produção artística a partir da luta de classes nos obriga a pensar o local e o tempo que estamos hoje. No Brasil do golpe, de Bolsonaro, de Mourão, dos militares no governo. No Brasil latino, ventos vindos do leste, multidões nas ruas em plena pandemia. Desemprego, fome, colapso sanitário. Um contexto imerso em um equilíbrio instável, cuja instabilidade vem determinantemente pela luta de classes.

A sociedade capitalista, que tem suas raízes fincadas em cada canto do planeta, criou uma separação entre o trabalho intelectual (que inclui a arte) e o trabalho físico, manual, que produz tudo e faz a sociedade acontecer. E o capitalismo promove não somente uma separação classista, mas também uma individualização da experiência da arte. Na perspectiva da luta de classes, há a possibilidade do encontro, mesmo que momentâneo, desses tipos de atividade em seu senso coletivo. E ter uma perspectiva revolucionária é ter o objetivo de superar por completo essa separação.

Nesse contexto internacional, vimos produções e expressividades artísticas serem desenvolvidas em formidável acompanhamento dos fenômenos sociais, pois como dizia Trótski “a arte não permanece indiferente às convulsões de sua época”, seja sendo reflexo da sociedade, seja propondo uma ruptura com a “normalidade”. É nesse cenário internacional que vimos as drags dançando em frente aos policiais e os teatros de fantoches de rua em protesto na Colômbia,manifestantes pisando com gosto na cabeça do presidente negacionista no Brasil, artistas se somando à luta de petroleiros em defesa de seus empregos na França e, no mesmo país, bailarinas, bailarinos e demais trabalhadores da cultura em greve abrindo as portas dos teatros, apresentando nas ruas para toda a população espetáculos como o clássico “O lago dos Cisnes”, com o objetivo de fortalecer a greve geral contra a reforma da Previdência, mostrando que somente a classe trabalhadora pode realmente democratizar o acesso à arte.

Em greve contra a reforma da Previdência do governo francês, bailarinas interpretaram trechos do espetáculo “O Lago dos Cisnes”, diante da Ópera Garnier, em Paris. Fonte: ludovic MARIN / AFP.

A arte e a cultura, como tudo aquilo que é humano, alimentam-se da economia. Para que se desenvolva, é preciso ter mais do que o estritamente necessário para permanecer vivo. Em momentos de crise econômica, devido à potencialidade mobilizadora, estimulante e questionadora da arte, vista, por exemplo, nos momentos citados acima, a arte se vê como um dos domínios mais afetados, sendo cada vez mais amplamente restringida a possibilidade material das pessoas se aprimorarem nesse âmbito do sensível. Vimos os artistas, na pandemia, sendo um dos setores que mais encontrou dificuldades para manter e reinventar a sua sustentação, difusão e produção, ainda mais de maneira independente. Mesmo assim, frente à escalada da barbárie, cada um de nós reafirmou diariamente a importância da música, dos filmes, das imagens para atravessarmos nosso penoso cotidiano.

O corte econômico é a primeira forma de censura, alimentada pelo reacionarismo que vem do esgoto bolsonarista. E as dificuldades econômicas não afetam somente os trabalhadores da arte e da cultura, mas sobretudo a população em seu acesso ao que é realizado nesse terreno. Hoje vemos um governo e um regime que intensifica seus aspectos autoritários e conservadores, buscando forçar ao limite da correlação de forças sociais para reduzir ao máximo a liberdade expressiva. Ao mesmo tempo, também vemos a resistência feroz dos artistas que buscam erguer suas imagens e palavras nas ruas, nas redes, no cinema, na literatura, nas poesias de combate palestinas, nas incendiárias intervenções artísticas na Colômbia, nos grafites que escancaram o servilismo de Bolsonaro a Trump, mas também nos aspectos de crítica ao imperialismo de Bacurau e de convicção dos jovens e trabalhadores contra a ditadura expressa no filme Marighella, no livro Torto Arado que aborda a vida e a resistência negra em luta contra o latifúndio e o racismo no campo, herdeiro do Brasil Colônia, entre inúmeros exemplos que buscaremos trazer para nosso semanário com um viés crítico.

Detalhe de capa do livro Torto Arado, de Itamar Vieira Junior

Porém, uma razoável liberdade à arte não significa uma apropriação dessa pelos trabalhadores, pela juventude precarizada, pela população mais vulnerável. As baixas expectativas, as mazelas cotidianas impostas, a preocupação com a fome, com o lar, com o dia seguinte, a metralhagem de imagens e sons ininterrupta, fazem com que o tempo livre da população tenda inevitavelmente para gratificações fáceis de uma produção de baixa complexidade interpretativa, às vezes tranquilizadora e desproblematizadora, outras vezes ilusória, projetando saídas utopicamente individuais para problemas coletivos, ou conformistas que provocam um efeito paralizante de ceticismo. É impossível não vir à cabeça as produções distópicas da Netflix, ou as novelas “progressistas” da Globo que buscam retirar toda potencialidade disruptiva da produção cultural para que as denúncias das contradições que nos assolam não se expressem com uma perspectiva de enfrentá-las e superá-las. Por trás do aumento de espectadores e assinantes das plataformas como a da Amazon, vemos a ideologia burguesa, a publicidade, a indústria cultural adentrando com mais facilidade, rapidez e constância do que nunca o dia a dia da população. O que vivemos hoje é um bombardeio por parte das multimídias hegemônicas, difundindo constantemente a ideologia que busca transformar o interesse da classe dominante no interesse comum e geral. E todas essas diferentes estratégias, incluindo as diretamente conservadoras, são provedoras do imediato prazer de um (falso) reconhecimento.

Este exacerbado efeito de reconhecimento, termo utilizado por Adorno e Horkheimer, é promovido tanto pelas produções da indústria cultural capitalista, cada vez mais “inovadora” em sua habilidade de cooptação e de bloqueio de produções questionadoras; pelas produções das indústrias de fake news terraplanistas e pelo uso da cultura pela extrema direita para difundir suas paixões autoritárias; como também historicamente pelo stalinismo e suas ramificações atuais, com uma ideia da arte como um simples relato da realidade (muitas vezes uma falsa realidade, como no realismo socialista ligado às perseguições aos artistas que eram contrários ao regime burocratizado de Stálin, especialmente combatido no Manifesto por uma Arte Revolucionária Independente escrito por Trótski e Breton, em uma inaudita manifestação da relação entre estética e política revolucionária), uma visão distorcida sobre o papel social da arte e seus processos de produção e assimilação histórica, que buscava criar uma “arte proletária” em laboratório, de maneira burocrática que também servia para restringir o que tinha de mais questionador da arte e que o capitalismo por séculos sufoca: sua liberdade, o que se expressava em sua política com a censura e imposição de formas estéticas. Todas essas “frentes” produzem um efeito maior ou menor de neutralizar a imaginação criativa da fruição artístico cultural e de bloquear o questionamento à ordem existente.

O Semanário Carcará busca um olhar crítico à indústria cultural assim como a uma visão populista da arte, que se adapta ao senso-comum ou ao gosto-médio das massas, que não tem nada a ver com a cultura popular, mas que é produzido por um bombardeio da ideologia dominante das mais variadas formas. Por isso, queremos explorar a dimensão crítica da arte, tanto em seu âmbito criativo quanto no âmbito da interpretação, tentando contribuir para desvendar os mecanismos ideológicos que a classe dominante inculca nas diferentes produções culturais, sempre em defesa destas contra qualquer tipo de censura, sendo contrários a qualquer predeterminação do que seria uma “arte verdadeira” e sim nos apropriando de toda a arte como ferramenta, com suas próprias leis, para que possamos entender a própria realidade, visto que setores importantes da burguesia usam da cultura com objetivo de alienar as pessoas e de construir uma subjetividade mais conservadora.

Através dessa apropriação crítica da arte, queremos despertar uma visão inconformada com o existente, por isso acreditamos na potência da arte enquanto arma social dos trabalhadores e da juventude que se levantam em meio à crise econômica e social, ocupam as ruas convulsionadas pela luta de classes, e anseiam por um novo mundo sem opressão e exploração. Também vemos o papel social da arte como produtora da imaginação de outras realidades, através da exploração complexa do sensível. Essa imaginação de outras realidades, de forma alguma se dá pela simples produção artística de um indivíduo, mas pela relação intercambiável e coletiva que é inerente à arte na medida em que esta se concretiza apenas na relação produtiva e interpretativa de diferentes indivíduos. E sabemos o quanto essas formas artísticas hoje chegam muito mais dificilmente nas massas, assim como as ideias revolucionárias, ainda mais no nosso país.

Sabemos que dentro dos limites do âmbito meramente artístico e do sistema econômico e social dominante que vivemos (atualmente com regimes políticos cada vez mais autoritários, em meio à crise econômica), não há remédio para o paradoxo de que o capitalismo restringe a complexidade interpretativa a uma pequena camada social, enquanto a indústria cultural segue sendo o que chega aos amplos setores. Mas queremos ser uma partícula que conscientemente busca amplificar o alcance dessa complexidade em mais setores, para entender por diferentes vias mais profundamente a realidade a partir de ligar a arte aos fenômenos históricos, em particular aqueles momentos de luta de classes em que somos nós trabalhadores e juventude os sujeitos cujas mãos impõem a mudança social.

Nosso objetivo não se descola das ideias revolucionárias capazes de mover esses mesmos setores para a construção das ferramentas de luta necessárias para romper com os limites deste sistema. Queremos nadar contra a corrente e trazer gente para fortalecer essa perspectiva revolucionária da arte e da sociedade, indo ao máximo possível na resistência ao condicionamento material e ideológico imposto pelo capitalismo à toda produção artística e cultural.

Frente a esse paradoxo, insuperável enquanto não for imposta pelos sujeitos que movem o mundo uma transformação revolucionária das estruturas sociais, acreditamos que nossa principal bandeira deve ser a luta pela mais completa e indeterminada autonomia e liberdade criativa, tanto em termos de “conteúdo” quanto de “forma”.

A transformação radical da sociedade não é uma tarefa formal ou estética. Não se dará pela mera mudança na nossa linguagem, como somos bombardeados cotidianamente nas universidades, nos cursos de artes, sob influência do pós-modernismo, que retira o caráter obrigatoriamente material da transformação social. O revolucionário na arte encontra-se justamente em sua capacidade de crítica implícita ou explícita à própria sociedade que a produz, interrogando toda e qualquer naturalização social e/ou estética. Mas será essa própria sociedade a única capaz de consertar os problemas dela mesma.

A seção semanal de arte e cultura, Carcará, faz seu lançamento tendo como tema principal a relação da arte e da cultura com a luta de classes, profícuo espaço criativo e simbólico, como podemos ver com a insurgência de símbolos que marcam os processos, como os elefantes de Neuquén ou a música I shall not be moved internacionalmente. E trazemos não qualquer símbolo, mas a ave do sertão, retomando nossas línguas originárias, a resistência histórica de nosso país, em referência à música de João do Vale, música que Mário Pedrosa capta seu mais importante caráter ao dizer de sua “formidável criação revolucionária e simbólica”.

Nos dedicamos a esse eixo editorial como forma de exprimir nossa intenção de contribuir para que a arte e a cultura sirva ao acirramento das lutas sociais, para ligar nossa política nos locais de trabalho e estudo, expressa no Esquerda Diário cotidianamente, à atividade cultural, buscando servir para ampliar pelas mais diferentes vias a consciência política, a assimilação (antropofágica, poderíamos dizer, retomando a figura do Carcará, ave marcada pelo ato de pegar, matar e comer) e a apropriação crítica da produção histórica da humanidade, para combinar o despertar da luta de classes com o despertar das potencialidades criativas e interpretativas dos trabalhadores e da juventude.

Hoje se inicia nossa humilde contribuição, que buscamos potencializar ao longo do tempo, para a construção de uma ferramenta capaz de agitar aqueles que estão de cabeças baixas imersos em ceticismo, para sermos parte de desvendar as mazelas do sistema, parte de instigar a organização coletiva para romper com o atual “nublado céu da história”. Fortaleçamos esses ventos latinos. Arranquemos a carne que nos explora. Hoje arrancamos em um voo denso do qual pretendemos forjar um bando de carcarás com sangue nos olhos e apreço pela sensibilidade de nossas garras.


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Lina Hamdan

Mestranda em Artes Visuais na UFMG
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