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SEMANÁRIO

[Edições IPS-CEIP] Prefácio do livro “Bolívia, 1952. Crise, guerra e revolução no coração da América do Sul”

Javo Ferreira, La Paz

[Edições IPS-CEIP] Prefácio do livro “Bolívia, 1952. Crise, guerra e revolução no coração da América do Sul”

Javo Ferreira, La Paz

Há 70 anos da revolução boliviana de 1952, apresentamos a tradução do inédito prefácio escrito por Javo Ferreira para o livro que será lançado pelas Edições IPS-CEIP (Argentina) Bolívia, 1952 Crise, guerra e revolução no coração da América do Sul, de Eduardo Molina. Refletir esse fenômeno e tirar as conclusões revolucionárias sobre tal processo é essencial para construir a luta pelo socialismo na América Latina de conjunto.

Artigo original: [Adelanto editorial] Bolivia 1952: lecciones de Abril

Javo Ferreira é editor do La Izquierda Diario boliviano e dirigente da Liga Obrera Revolucionária - Cuarta Internacional (Liga Operária Revolucionária - Quarta Internacional). Aqui, além de apresentar a obra de Molina, Javo estabelece uma polêmica com as interpretações da história da Bolívia e da revolução, em particular com as que centram-se em René Zavaleta Mercado e uma reflexão sobre a atualidade dos debates em relação à ideia do “nacional-popular”.

Prefácio

Eduardo Molina, falecido em setembro de 2019, dedicou seus últimos anos de vida ao estudo e à elaboração teórica centrada no grande acontecimento histórico e político que foi a Revolução de 9 de abril de 1952. Decidiu fazê-lo não somente pela merecida compreensão de tal acontecimento como fonte de lições revolucionárias que precisavam ser deixadas para as novas gerações de trabalhadores e trabalhadoras, mas também porque depois da insurreição altenha de outubro de 2003, seguida do governo de Evo Morales do MAS, e das enormes transformações levadas a cabo, primeiro durante o ciclo neoliberal e depois durante o neodesenvolvimentismo de Evo, parecia que a Bolívia não poderia superar as enormes contradições do passado: racismo, pobreza, e mais em geral, a dependência das oscilações da economia internacional imperialista.

Durante os quase trinta anos em que morou na Bolívia, onde militou sob as bandeiras do trotskismo a serviço da revolução socialista, Molina adquiriu um profundo conhecimento não só da realidade do país, mas também da história e da política latinoamericanas mais em geral, contribuindo com inúmeras publicações sobre o tema. Este volume contém grande parte de seu trabalho e é uma importante contribuição para as novas gerações de revolucionários e revolucionárias socialistas.

O livro, composto por seis partes, tem uma reflexão destacada a respeito dos acontecimentos prévios a abril de 1952, que terminaram dando forma ao desenvolvimento da revolução. Entre seus artigos há que se destacar as reflexões sobre as características da formação social boliviana anterior, o caráter racista do estado oligárquico e republicano e como esse caráter se manteve, em que pese a modernização capitalista que significou o período posterior à revolução. Ademais, a Guerra do Chaco ocupa um papel de destaque, não só como expressão de uma profunda crise estatal, mas principalmente como ponto de contato entre todos os elementos que dariam lugar ao surgimento do nacionalismo burguês como ideologia dominante do período pré-revolucionário e das décadas seguintes à revolução, até o início do ciclo neoliberal de 1985. Vinculado a isso, a reflexão sobre os governos do chamado “socialismo militar”, que se prolongaram até o governo de Gualberto Villarroel, e finalmente, o estudo crítico do Sexênio, mostram uma dinâmica muito mais contraditória do que a visão coroada pela historiografia “oficial” nacionalista. A importância daquele momento histórico está no fato de ser um período em que as greves e os enfrentamentos de classe podem ser compreendidos como verdadeiras “escolas de guerra” segundo a definição de Lenin, ganhando um papel chave na construção da subjetividade operária que conduziria à insurreição de 9 de abril.

A experiência militante de Molina e o conhecimento que possuía da realidade nacional se converteu em um ponto de apoio fundamental para a LOR-CI [1] na hora de abordar os diversos problemas teóricos e políticos que se apresentaram em consequência da Guerra da água em Cochabamba, em abril de 2000, e no início do ciclo político altamente convulsivo que se prolongou pelo menos até 2008, com a aprovação da Constituição Política do Estado (CPE). Grande parte das suas contribuições à luta política socialista e revolucionária podem ser encontradas nas páginas de Lucha Obrera e Palavra Obrera assim como nas publicações Revista de los Andes y Luchas de clases, editadas durante esses anos convulsivos, além das diversas publicações de nossa corrente internacional como o Estratégia Internacional e posteriormente a rede internacional La Izquierda Diario.

Sua partida o impediu de assistir o golpe de estado contra Evo Morales e o MAS, ocorrido entre outubro e novembro de 2019, que enclausurou o ciclo político de quatorze anos do “evismo” e abriu um novo momento político no país marcado por uma profunda crise política e estatal. O encerramento do primeiro ciclo “progressista” pôs em destaque os profundos limites do projeto nacional e popular, que embora tenha trazidos importantes mudanças constitucionais e legais de inspiração democrática, não pôde resolver os grandes problemas nacionais como a questão agrária, que ameaça voltar a ser um centro de disputas políticas e regionais; o racismo, que aflorou com uma violência chocante nas jornadas do golpe de estado e durante o governo de fato de Jeanine Áñez; e também o caráter dependente e subordinado da economia nacional às oscilações externas. Parece que o papel dos "progressistas" nacionais e populares se limitou a manter os mesmos problemas e as mesmas contradições que os permitiram chegar ao governo, agora em um plano distinto, mas sem resolução de nenhuma forma. Algo parecido aconteceu com o ciclo “nacional e popular” que vai de abril de 1952 a novembro de 1964, que é objeto de estudo do presente texto.

Lembro que por volta do ano de 2007 ou 2008, em uma das viagens regulares que realizava ao centro mineiro de Huanuni, tínhamos coordenado uma reunião com vários trabalhadores do subsolo, oportunidade em que estivemos com o amigo e camarada Eduardo Molina. A viagem, que durava umas cinco ou seis horas saindo da cidade de La Paz naquela época, impunha a necessidade de coordenar detalhadamente o horário e a duração dos encontros para evitar esforços em vão frente aos imprevistos que poderiam surgir. Nesta ocasião, entretanto, mesmo com todos os preparativos da reunião organizados, ao chegar ao povoado de Huanuni, encontramos uma surpreendente calma no local. Algo havia provocado um movimento muito baixo de veículos e pessoas no local, quase como um feriado. As tentativas de nos comunicarmos com nossos companheiros com quem tínhamos combinado a reunião foram todos frustrados, até que depois um tempo recebemos uma chamada de um dos companheiros se desculpando e informando que por alguma razão - que hoje não me recordo, mas tinha um caráter sindical ou social - todos os trabalhadores tinham ido até a cidade de Oruro, e, portanto, a reunião seria cancelada. Lembro que frente a tal notícia, tão comum na experiência militante, nos sentamos no meio fio da praça de Huanuni, quase que esperando alguém passar e dizer “Vamos, estamos aqui”, salvando o dia e a viagem de seis horas. Isso não aconteceu, ficamos conversando tentando entender a causa do fracasso da reunião e por que os trabalhadores tinham tanta disciplina frente aos eventos sociais e sindicais mas sem a mesma paixão na hora de participar de reuniões que giravam em torno da construção de um partido ou uma organização revolucionária. Em meio a conversa durante a viagem de volta para La Paz, Molina lembrava uma afirmação de Zavaleta Mercado em que destacava o caráter débil das organizações políticas da esquerda boliviana, que para poder existir se viam obrigadas a atuar de maneira associada a algum organismo sindical, que definitivamente tinham capacidade de organizar, mobilizar e inclusive conter a vida e as atividades sociais dos mineiros e mais em geral de todo o povo de Huanuni, tal qual ocorreu no nosso caso. A característica ressaltada por Zavaleta dava conta de um fenômeno que diferenciava o movimento operário boliviano dos movimentos chileno ou argentino por exemplo, no qual a quase inexistente tradição de militância política era acobertada por uma disciplinada e estendida tradição de "militância sindical e social”, resultado da maneira como se realizou a revolução de 1952 e o peso dos sindicatos a partir dessa experiência revolucionária.

Naquela época, Huanuni era o último reduto operário que ainda conservava certas características do antigo movimento mineiro, herdeiro da cultura e das tradições forjadas após o processo de abril e durante a segunda metade do século XX. A ofensiva neoliberal, promovida pelo Decreto Supremo 21.060 em 1985, conseguiu esvaziar os centros mineradores com a chamada “relocação”; inaugurou um processo de profunda reconfiguração na composição da classe trabalhadora boliviana, abrindo novas áreas de emprego assalariado em serviços, agronegócio, manufatura e outros, além de estimular a migração de famílias mineiras para regiões de colonização, como é o caso da Cochabamba em Chapare.

A classe trabalhadora não seria mais a mesma que havia conhecido o século XX e que protagonizou não só a revolução de 1952, mas também feitos importantes como a instalação da Assembleia Popular em 1971, a resistência operária aos golpes militares, ou as chamadas "Jornadas de Março" de 1985, a última tentativa proletária de abrir um curso revolucionário diante da ofensiva neoliberal que se avizinhava. Mas no início do século XXI não havia mais nada desse movimento operário, exceto Huanuni [2]. Através de uma solitária, mas corajosa e quase heroica resistência, seus trabalhadores se recusaram a abandonar o centro de mineração, assim como os principais bairros de Llallagua, Siglo XX, Catavi e Pulacayo, e dezenas de outros acampamentos subterrâneos. Mas depois de anos de dificuldades -e quando o preço do mineral começou a subir- o governo de Hugo Banzer e Tuto Quiroga decidiu "reavivar" o depósito para entregá-lo em um contrato de compartilhamento de risco com a transnacional Allied Deals, em março de 2000. Então um novo capítulo de resistência e luta começou em Huanuni, primeiro para impor o controle coletivo dos trabalhadores e expulsar a transnacional; depois, em outubro de 2003, tornando-se a "guarda operária" da insurreição Altenha; mais tarde, em 2006, pela defesa do depósito contra a tentativa de privatização promovida pelo MAS e seu ministro cooperativista, Walter Villarroel. Anos depois, em 2013, para formar o Partido dos Trabalhadores, experiência que seria derrotada com a repressão do partido no poder. Toda aquela experiência de luta operária que ficou como uma faísca no reduto mineiro de Huanuni, hoje já desaparecida pela ação do MAS [3], merece recuperar essa história, aprender com ela e deixar essas reflexões e lições para as novas gerações de trabalhadores e trabalhadoras para se prepararem para as batalhas que virão. Essa experiência fracassada de uma reunião em Huanuni foi uma das várias fontes que permitiu começar a alimentar o entusiasmo e a preparação de Eduardo Molina para o texto que apresentamos.

A revolução de 1952, além de ter significado uma modernização do capitalismo local, marcou profundamente a cultura política boliviana, que iria da disputa permanente nas ruas ao extremismo verbal de difícil compreensão para o observador externo. A cultura política herdada do século XX se manifesta nos setores populares em fortes tendências de organização social e sindical e, embora tenha sido minada ao longo do ciclo neoliberal, continua sendo a tendência mais forte entre trabalhadores e setores populares. Mas, infelizmente, esse fato acabou levando as organizações de esquerda a buscarem atalhos que lhes permitissem superar esse estado de raquitismo político, ao preço de acabar sacrificando uma estratégia e uma política independentes em busca de uma prática estreitamente corporativa e sindicalista. Então, inevitavelmente, surge a seguinte pergunta: se a revolução de 1952 acabou de sancionar uma cultura política que poderíamos definir junto com Zavaleta como “resistência”, como poderíamos recuperar desse mesmo evento histórico as lições que nos permitiriam semear outra cultura política focada em como passar à “ofensiva”? Que lições podem ser tiradas da revolução para recuperar uma estratégia e uma política independentes que nos permitam vencer? A obra de Eduardo trata dessas questões fundamentais, ou seja, é um texto que baseando-se no passado, na história, busca contribuir para a preparação do futuro. Seu entusiasmo na preparação deste livro estava profundamente ligado à necessidade de tirar lições revolucionárias do ato de abril. Fê-lo com o propósito de contribuir para a preparação dos trabalhadores, bem como da sua vanguarda política, para um rearmamento teórico, programático e político que contribua para forjar as ferramentas necessárias para a construção de uma organização socialista revolucionária que, como parte de sua estratégia, avançara na conquista de uma disposição e vontade de derrotar as classes dominantes.

O “paradigma” do nacionalismo pós-1952 e a necessidade de uma interpretação socialista revolucionária

A elaboração de Eduardo Molina que apresentamos nestas páginas tem um duplo caráter polêmico, pois, por um lado, pretende avançar na recuperação histórica da maior experiência de luta social implantada no país diante da construção histórica imposta pelo MNR de “revolução nacional”. Por outro lado, porque argumenta com uma tendência surgida nos últimos anos de inspiração indigenista ou autonomista que tem buscado relativizar a importância da revolução, tomando como referência a extensão dos direitos dos povos originários estabelecidos com o governo de Evo Morales e a Constituição Política do Estado de 2009 em contraste com 1952, época em que o “nacional e popular” buscou homogeneizar esses povos na bolivianidade. A visão do MNR construída a serviço de um capitalismo nacional tornou necessário relativizar ao longo da história a importância da ação operária que deu origem à revolução. Essa visão é compartilhada pela intelectualidade acadêmica e política do país, que de um ângulo de esquerda coincide com a historiografia nacionalista em diminuir a potencialidade da classe trabalhadora, contribuindo assim para uma naturalização do resultado histórico, dificultando a possibilidade de se pensar um desenvolvimento alternativo dos acontecimentos, ou seja, bloqueando a possibilidade de explorar as condições que teriam permitido a transformação da revolução de 1952 em uma revolução anticapitalista a partir de um possível governo dos trabalhadores em aliança com o campesinato e o setores populares.

Desde o início, essa possibilidade teórico-política implicou uma luta contra o MNR, questão que Zavaleta e, de forma mais geral, os intelectuais rejeitaram. Deixando de lado algumas interessantes obras historiográficas que abordam o ciclo político 1952-1964 com o qual esta obra também dialoga, os intelectuais contemporâneos geralmente tendem a tomar as obras de René Zavaleta Mercado como ponto de partida em todas as suas elaborações. Os postulados de Zavaleta são aceitos acriticamente por um amplo espectro intelectual, que vai desde o oficialismo do MAS, com Álvaro García Linera à frente, até aqueles que apoiaram o golpe de outubro-novembro de 2019, como o autonomista e ex-vice ministro do MAS, Raúl Prada; passando por proeminentes acadêmicos e estudiosos da obra do referido autor como Luis Tapia, a setores do indianismo pós-moderno como Silvia Rivera Cusicanqui.

Poderíamos afirmar que a ideologia do chamado nacionalismo revolucionário, consolidada após o triunfo de abril de 1952, emergiu como um verdadeiro “paradigma”, como denominou Luis H. Antezana [4]. Luis Claros em seus estudos sobre a obra deste autor afirma:

...quando surge um paradigma, as disputas radicais são eliminadas, e a gama de problemas e formas de abordá-los é reduzida. Isso ocorre porque o surgimento de um paradigma […] implica sua aceitação universal, portanto, a configuração de um mundo no qual os sujeitos se movem como o único mundo possível [5].

De certa forma, depois de abril, todos os atores políticos acabaram se movimentando “naquele mundo possível”, ou seja, se adaptaram aos pressupostos teóricos e políticos estabelecidos pelo MNR, incluindo aqueles que por sua ideologia –como o POR – estavam chamados para combatê-lo.

É por isso que Eduardo Molina, embora discuta com uma gama de intelectuais, concentra-se na reflexão sobre autores como Zavaleta, Lora, Céspedes e outros que continuam ocupando lugar de destaque na academia, inclusive estão sendo revalorizados desde o ciclo “progressista” vivido na América Latina. A convergência dos mais diversos pensadores nos postulados teóricos de Zavaleta obedece essencialmente a três razões intimamente interligadas. Por um lado, a partir das preocupações e interesses da academia universitária, as obras de Zavaleta ocupam um lugar de destaque por ser considerado um dos pioneiros na "produção do conhecimento local", como sublinhou Luis Tapia. Essa produção de conhecimento interno teria permitido a Zavaleta superar as tentativas de explicar as complexidades sociais, recorrendo a conceitos e categorias formuladas para outras latitudes que teriam sido estreitas ou insuficientes para dar conta dos fenômenos sociais do espaço andino. Uma segunda explicação para esse revigoramento tem a ver com os objetivos políticos específicos que Zavaleta incorporou durante sua vida, que se basearam fundamentalmente em pensar as formas de construir um Estado-nação moderno e, portanto, a luta contra tudo o que buscava superar essa " etapa" necessária do desenvolvimento nacional, razão pela qual um dos interlocutores permanentes de sua obra foi Guillermo Lora. Zavaleta, nesse sentido, será um dos pensadores mais proeminentes a negar a possibilidade de uma revolução socialista nessas terras, apesar do que seus seguidores afirmam retoricamente. Por fim, esse perfil acadêmico e "político realista" foi quase automaticamente reavaliado após a queda da ex-URSS e do chamado "socialismo real", que pôs à ordem do dia a crença no fim de qualquer universalismo e à preeminência do particular, como partes do desenvolvimento do pensamento pós-moderno.

Nesse sentido, nas páginas que se seguem veremos que Eduardo Molina procurou reconstruir os acontecimentos marcantes dos processos pré e pós-revolucionários a partir de uma interpretação deles que combatesse aquele “mundo” construído sobre o papel paradigmático que cumpriu o nacionalismo burguês do MNR. Sua elaboração lança as bases para uma reconstrução da história em uma chave socialista revolucionária, ou seja, negando justamente esse caráter paradigmático, explicando-o como resultado da adaptação política das organizações marxistas revolucionárias aos objetivos mesquinhos de reduzir toda a ação de massa presente naqueles dias a um capitalismo nacional. Para citar apenas um exemplo do que estamos dizendo, podemos nos referir ao papel da Guerra do Chaco na década de 1930, que para a historiografia oficial foi o elemento constitutivo da "consciência nacional", esquecendo que nos centros mineiros outra consciência hostil à guerra havia sido forjada, cada vez mais independente, que se exprimia nos grandes feitos operários e que atingiu o seu ápice durante as Jornadas de Abril, pelas quais necessariamente seu estudo solapa os fundamentos do paradigma nacionalista que foram as areias do Chaco, como o livro irá desenvolver.

Zavaleta Mercado, o teórico “nacional-popular” mais influente da atualidade

A intelectualidade que hoje é a força ideológica do MAS, conhecida como "nacional-popular" -cujo maior expoente se encontra na figura do ex-vice-presidente de Evo Morales, Álvaro García Linera-, manteve e aprofundou as elaborações teóricas e políticas do maior representante teórico do nacionalismo burguês de esquerda, René Zavaleta Mercado. A sua filiação militante ao MNR – partido do qual viria a ser deputado, e às vésperas do golpe de Barrientos, em 1964, como ministro das Minas de um governo que já estava completamente desfigurado pelo seu caráter abertamente pró-imperialista e contrarrevolucionário em relação aos trabalhadores – marcará a fogo seu pensamento, no qual apesar de sua posterior evolução para o stalinismo do PCB, a busca pela construção de um capitalismo nacional e democrático nunca foi abandonada.

Isso tem uma importância fundamental, pois várias categorias cunhadas em sua obra, como o termo "variegação" para dar conta das particularidades da formação econômico-social boliviana, são explicitamente formuladas para dar sustentação teórica e dar legitimidade à "revolução nacional", negando de antemão a possibilidade de transformação dessa revolução em um revolução socialista a partir da ruptura da classe trabalhadora com o MNR. O conceito de "sociedade variegada" entendido como uma amálgama inorgânica de diversas formas de organização econômica e social de origem pré-capitalista, que se articulam com a estrutura capitalista, surge assim em oposição radical ao conceito de "desenvolvimento desigual e combinado" formulado por Trotsky para compreender a articulação orgânica e totalizante de várias formas socioeconômicas herdadas do passado com a dominante economia e sociedade capitalista, fundamento último da teoria-programa da revolução permanente, ou seja, socialista, nos países atrasados. De uma forma mais atual, Silvia Rivera retomou o conceito de sociedade variegada cunhado por Zavaleta na formulação de Ch’ixi, palavra aymara que pode dar conta não apenas de uma multiplicidade de cores amalgamadas, mas também de uma textura composta de “pixels”, por assim dizer, que apesar de sua aglomeração, eles mantêm sua própria identidade. Essa persistência teórica e acadêmica de negar a combinação e articulação orgânica dos diversos componentes que compõem a formação econômica e social boliviana se deve, como já apontamos, à vontade política de negar qualquer possibilidade de superação dos pressupostos de uma democracia liberal e de um capitalismo nacional por parte da classe trabalhadora no sentido socialista.

A revolução e suas lições para o presente: rumo à eMNRização do MAS?

Ao longo das páginas do livro, estudando a evolução da situação política após a revolução de 9 de abril, podemos ver como as tensões começam a crescer dentro das fileiras do MNR e o crescente distanciamento entre a classe trabalhadora e a direção do partido liderado por Victor Paz. Esse distanciamento em 1954 tornou-se uma ruptura aberta com o primeiro Congresso da COB e quando as milícias operárias já haviam sido desarmadas, devido à crescente subordinação do governo à política da embaixada norte-americana e à aplicação de planos econômicos antioperários. Se no início o MNR teve o apoio de vastos setores populares, isso mudou rapidamente a ponto de o regime geral adquirir um comportamento cada vez mais repressivo e autoritário, apoiado pelo movimento camponês, graças à gradativa entrega de terras às comunidades e cooptação estatal das organizações agrárias. A embaixada norte-americana também o apoiaria, temendo que a crise e as fragilidades do governo fossem aproveitadas pelas forças de esquerda, que, ao se distanciarem do MNR, adotariam uma postura cada vez mais beligerante. Assim, o nacionalismo revolucionário, ao chegar o ano de 1964, se viu atravessado por profundas divisões internas, tanto à direita com Bedregal à frente, quanto à esquerda com Lechín à frente da COB e da FSTMB; enquanto Víctor Paz tentava conter as forças centrífugas do governo, recorrendo ao recém-criado exército nacional, à polícia e aos serviços secretos do temível ministro do Interior, San Román. A crise econômica havia retirado toda margem de manobra, primeiro ao governo de Siles Zuazo em 1955, e depois ao próprio Paz a partir de 1961, obrigando-o a aplicar duras medidas de ajuste fiscal, particularmente sobre a COMIBOL e nas principais mineradoras do país. A equipe política do MNR foi forçada a se desfazer de toda demagogia nacionalista e atuar cada vez mais como uma força de choque antioperária e antipopular para apoiar um governo visto pelo imperialismo e pelas classes dominantes como a última trincheira contra a resistência operária e a ascendência das organizações marxistas.

Essa evolução do MNR – de um nacionalismo supostamente revolucionário até terminar se convertendo na única garantia da estabilidade do Estado nacional, do capitalismo boliviano e da política estadunidense no país – foi acelerada pelo enorme acúmulo de contradições econômicas e sociais que a revolução não havia podido resolver e isso alimentou a decepção e a mobilização dos setores populares. A evolução foi tão rápida que a contrarrevolução com o golpe de Barrientos em novembro de 1964 surgiu das próprias fileiras do MNR. O general na época do levante de direita era o vice-presidente de Paz e o exército, que havia sido embelezado como um exército "nacional", acabou sendo a nova expressão da violência das classes dominantes e do imperialismo na Bolívia. A virada à direita do MNR foi tão pronunciada que, após o governo de Barrientos e o esboço de uma virada à esquerda com o governo de Ovando e depois de Torrez, aliar-se-ia ao seu inimigo de outrora, a Falange Socialista Boliviana, e sob as ordens do general Banzer, levariam juntos ao sangrento golpe de Estado contra a Assembleia Popular em 1971. Esta, porém, escapa ao objeto da elaboração de Eduardo centrado em abril de 1952.

O rápido relato da evolução do MNR hoje é de enorme importância para entender a crescente guinada à direita do MAS, que embora não tenha sido fruto de uma revolução como a de 9 de abril e não tenha passado por períodos de crise econômica como o MNR na década de 1950 – o que faz com que sua assimilação ao Estado e às classes dominantes branco-mestiças demore mais tempo – não conseguiu escapar desse destino de se tornar a principal instituição política nacional que garante a estabilidade burguesa. As recentes declarações de Álvaro García Linera sobre os perigos de fragmentação do MAS e das forças populares, com a perda da liderança de Evo Morales, que começa a ser questionado por importantes setores populares e camponeses; o surgimento de várias alas e correntes dentro do MAS, que lutam com unhas e dentes pela distribuição do aparelho estatal; tudo isso parece indicar que o partido de Evo Morales e García Linera está percorrendo o mesmo caminho de aburguesamento que o MNR antes, e de forma mais geral todas as expressões “nacionais e populares” percorreram no passado. [6].

Esse rumo do "nacional-popular" pode ser entendido pelo fato de que já no século XX a economia mundial e a divisão do trabalho para ela se transformaram em uma unidade poderosa dirigida a partir dos principais centros imperialistas que limitam e condicionam as possibilidades de empreender um caminho de construção de capitalismos nacionais verdadeiramente autônomos, como sonhavam os militantes do nacionalismo revolucionário nos anos 1950, ou atualmente os dirigentes do MAS. A necessidade de romper com o imperialismo para avançar em um suposto desenvolvimento independente implicou e atualmente implica resolver a questão agrária, pondo fim ao domínio do capital financeiro e agroindustrial; tarefas que não podem ser realizadas sem a mobilização de trabalhadores, camponeses, indígenas e do povo pobre. No entanto, é essa mobilização das classes subalternas que as diversas expressões do "nacional-popular" temem, optando por conciliar e pactuar com as classes dominantes e o imperialismo ao invés de permitir que essa mobilização transborde, avançando sobre os direitos de propriedade das classes dominantes.

Este fenômeno, que na Bolívia tem expressões recorrentes, nos obriga a tirar lições desses processos de luta de classes, para, com base nessas experiências, avançar na construção de um partido dos trabalhadores, que sob as bandeiras do socialismo e com confiança na mobilização revolucionária dos de baixo quebre o círculo vicioso de lutas heroicas que acabam exaltando aqueles que não querem ir mais longe, e estabeleça um governo dos trabalhadores e do povo abrindo caminho para a construção socialista . Para este trabalho, o texto de Eduardo Molina que hoje apresentamos é leitura obrigatória.

Este artigo foi traduzido do original em espanhol por Angelo Delazeri.


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FOOTNOTES

[1Liga Operária Revolucionária pela Quarta Internacional na sigla em espanhol, fundada em agosto de 1999 e membro da Fração Trotskista - Quarta Internacional.

[2Huanuni foi o primeiro centro operário que nos primeiros anos de 1920 conquistou as 8 horas de trabalho na Bolívia

[3Para um balanço do golpe de estado e um balanço específico do que aconteceu em Huanuni com o MAS, veja: https://www.esquerdadiario.com.br/Garcia-Linera-Confissoes-e-disparates-de-um-NEPman

[4Cfr. Luis Antezana, “Sistemas y procesos ideológicos en Bolivia (1935-1979)", en René Zavaleta Mercado (compilador), Bolivia, hoy, La Paz, Siglo XXI Editores, 1983.

[5Luis Claros (compilador), Dispositivos ideológicos del Nacionalismo Revolucionario, La Paz, CIDES-UMSA, 2019, p. 14. Tradução nossa.

[6Da mesma forma, entre 1982 e 1985, o governo "nacional e popular" da União Democrática Popular (UDP) encabeçada por Hernán Siles Zuazo e formado por várias organizações como PCB, ELN, MIR, MNRI e outras, depois de desgastar e desmoralizar as forças trabalhadoras e populares com uma hiperinflação sem precedentes na história contemporânea, acabou abrindo caminho para a ofensiva neoliberal liderada pelo MNR, que levaria à liquidação da classe trabalhadora que havia protagonizado a Revolução de Abril.
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