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EUA: Debates sobre a abolição da polícia, auto-defesa e auto-organização

Jimena Vergara

James Dennis Hoff

EUA: Debates sobre a abolição da polícia, auto-defesa e auto-organização

Jimena Vergara

James Dennis Hoff

[Desde Nova York] Agora que o movimento Black Lives Matter colocou em xeque a existência mesma da polícia, os socialistas de todo o mundo devem começar a pensar nas formas de auto-organização necessárias para seguir desenvolvendo e fortalecendo a luta, com o objetivo de construir a confrontação mais ampla contra o capital e o Estado. Este artigo foi publicado originalmente na Left Voice, neste último 28 de Junho.

Em nenhum momento desde a criação formal dos departamentos de polícia nos Estados Unidos a ideia de sua extinção foi tão pronunciada e popular como nos dias de hoje. Ainda que a polícia sempre tenha sido profundamente odiada pelas comunidades mais oprimidas (em particular as mais pobres e negras), sempre pôde contar também com altos índices de aprovação bipartidaria em todo o país. Agora este apoio parece estar desaparecendo. De fato, o assassinato de George Floyd e a dura repressão das mobilizações que se seguiram obrigaram grande parte da população a questionar a integridade e inclusive a própria existência da polícia.

Segundo uma pesquisa do Wall Street Journal/NBC News* realizada entre 29 de Maio e 2 de Junho, durante o auge dos protestos, 59% dos estadunidenses consultados disseram estar mais preocupados pelo assassinato de George Floyd e as ações da polícia do que pelas ações dos manifestantes. Junto a isto, outra pesquisa, esta da Universidade de Monmouth* realizada durante o mesmo período, mostrou que 78% dos entrevistados apoiam os protestos.

Esta mudança de atitude -do apoio à polícia até o questionamento ativo de sua própria existência- é em grande parte o produto de uma vanguarda militante de jovens multirraciais e trabalhadores que saíram as ruas imediatamente após o assassinato de George Floyd, e desde então seguem nas marchas e protestos. Os numerosos intentos dos governos locais de sufocar o início das mobilizações -primeiro pela força e logo depois com a promessa de reformas menores a curto prazo- fracassaram em grande medida. Em todo o mundo, milhões de pessoas tomaram as ruas em solidariedade aos manifestantes e contra as forças policiais em seus próprios países. Enquanto isso, nos Estados Unidos, estão levando a cabo protestos diários em vários estados, derrubando dezenas de estátuas racistas, e os manifestantes vem estabelecendo assembleias gerais e ocupações de ruas em ao menos duas cidades. Com potencial para mais.

Estes manifestantes ganharam legitimidade e apoio de amplos setores da clase trabalhadora estadunidense, não apenas porque as pessoas estão saturadas pela violência policial, mas também porque já estão fartos de todo o sistema em geral. A resposta incompetente e cruel do governo em relação a pandemia do coronavírus, que já provocou mais de 100.000 mortes evitáveis, e a crise econômica resultante, revelou o quão profundamente defeituoso e insustentável é o capitalismo. É natural que a ira e a frustração acumuladas com o Estado, e a crise que se gerou, acabem por provocar um conflito direto com uma das instituições que defendem e aplicam cotidiamente este sistema de opressão.

Como assinalou* Trotsky em 1939, inclusive antes da militarização massiva dos departamentos de polícia locais:

"Todo estado é uma organização coercitiva da classe dominante. O regime social permanece estável no tanto que a classe dominante é capaz, por meio do Estado, de impor sua vontade sobre as classes exploradas. A polícia e o exército são os instrumentos mais importantes do estado. Os capitalistas renunciam ( mesmo que não na totalidade, mas em grande medida) a manter seus próprios exércitos privados a favor do estado para evitar que a classe operária acredite em suas próprias forças armadas."

Em outras palavras, a crença amplamente aceita, mas totalmente falsa, de que a polícia é um servidor público e um árbitro neutro da paz e ordem, distorce a realidade da luta de classes, e também distorce o fato de que a classe trabalhadora necessita de suas próprias forças de auto-defesa se queremos nos livrar da opressão policial.

Agora que o movimento colocou em xeque a existência mesma da polícia, é necessário começar a pensar em que tipo de estratégia e que tipos de organizações se necessitam para lograr realmente este objetivo, e qual a melhor maneira de evitar que o regime atual coopte as demandas do movimento.

O peso do reformismo

Desde que começaram os protestos, no fim de maio, as cidades e estados de todo o país adotaram dois enfoques contraditórios para sufocar os distúrbios. Por um lado, os estados e municípios trataram de esmagar os protestos mediante o uso da violência e da repressão desenhadas para assustar os manifestantes até a submissão. Gás lacrimogêneo, balas de borracha, surras brutais e dezenas de policiais anti-distúrbios foram lançados em cima dos manifestantes em centenas de cidades. Somente na primeira semana, mais de 10.000 manifestantes foram detidos, e muitos deles seguem presos com acusações falsas. Ao mesmo tempo, os prefeitos e alguns governadores trataram de por fim aos protestos com promessas reformistas. Pouco depois das manifestações iniciais em Minneapolis, por exemplo, o Conselho da Cidade de Minneapolis votou sobre a possibilidade de eventualmente dissolver a polícia, enquanto outras cidades, como Los Angeles, se apressaram em aprovar uma legislação para reduzir o salário dos policiais.

Mas nesse ponto, as reformas não passam de promessas e não conduzem a mudanças substanciais na forma em que a polícia se comporta. A classe dominante não tem nenhum interesse real em acabar com a repressão policial, especialmente contra os negros norteamericanos, precisamente porque tal repressão é um dos pilares sobre o qual mantém o seu próprio poder. Claro que a burguesia preferiria uma força policial menos cruel, violenta e controversa se isto fosse possível, e pode estar disposta a algumas mudanças nesta direção, mas independente do que diga um ou outro representante burguês, a natureza fundamental da polícia não irá mudar até que esta seja abolida, e a abolição da polícia não é algo que possa ser feita pela legislação.

Se a idéia inicial de reprimir os protestos deram lugar a uma multidão maior e mais raivosa nas ruas, o esforço de cooptar o movimento com reformas, dirigido em grande parte pelo Partido Democrata, conseguiu um êxito mais abrangente, pelo menos em sufocar as mobilizações em seu início. De fato, ainda que os protestos sigam crescendo e se adaptando a todo tipo de novas formas, a cooptação liberal e reformista segue sendo uma ameaça muito real para a futura militância do movimento. As reduções do salário da polícia, o aumento em gasto social e a maior supervisão da comunidade sobre a repressão policial, são respostas insuficientes para um sistema profundamente arraigado em séculos de repressão estatal racista. Por isto, os socialistas tem que recordar que, mesmo apoiando qualquer mudança que beneficie a classe trabalhadora e aumente seu poder, nossa estratégia não é de reforma, mas de derrubada. Assim posto, a pergunta é: Como podem os socialistas e ativistas evitar essa cooptação enquanto seguem impulsionando o movimento até conclusões e formas de organização mais radicais, capazes de desafiar realmente o Estado capitalista?

Da maneira que se encontra, o movimento corre o risco de ser cooptado por duas expressões claramente diferentes do reformismo.

Para a corrente principal dos democratas, o movimento tem sido acolhido como uma nova oportunidade para ganhar votos, envergonhar Trump e encobrir sua própria história racista. Talvez não haja exemplo melhor disto que as embaraçosas fotografias dos lideres legislativos brancos do Partido Democrata -incluindo a Nancy Pelosi e Charles Schumer -ajoelhados em tecido quente nos corredores do Congresso- aonde, junto dos republicanos, supervisionou a opressão da América negra durante séculos. Ainda que os lideres democratas nacionais e locais tenham proposto algumas reformas legislativas suaves para que a polícia siga reinando fora de controle, estes paliativos apenas distraem do fato de que o assassinato de George Floyd aconteceu sobre a vigilância de um prefeito e governador democratas. Assim como a cidade e o estado aonde Breonna Taylor foi assassinada pela polícia em sua própria casa, também são governados por membros deste partido. De fato, os democratas tem uma longa e terrível história de apoio à violência policial.

Também podemos lembrar que foi o projeto de lei contra o crime de 1994 do presidente democrata Bill Clinton que elevou em muito a população carcerária dos EUA, aumentou o número de agentes de patrulhamento nas ruas e deu lugar aos exorbitantes salários policiais que vemos hoje em dia em todo o país. Enquanto isso, o próprio candidato presidencial dos democratas argumentou estranhamente que a polícia deveria disparar contra as pessoas "na perna invés do coração".

Por sua parte, a direção dos Socialistas Democráticos dos Estados Unidos (DSA, na sigla em inglês), que utilizou o Partido Democrata como plataforma para seus próprios candidatos durante décadas, lamentavelmente deu as costas em grande medida para a idéia de converter o movimento em uma luta aberta contra o sistema bipartidário explorador e racista. Se é certo que muitos membros de base do DSA estiveram nas ruas organizando protestos, o setor da organização agrupado em torno da publicação Jacobin segue aplicando a estratégia segundo o qual o socialismo se conquistaria mediante eleições. Como tal, o DSA gastou grande parte de seus recursos em promover os candidatos da lista do Partido Democrata em todo o país, ao invés de utilizar a energia de seus 70.000 membros para desenvolver a luta e promover candidatos socialistas independentes para romper com os democratas.

Mesmo que as primárias democratas de 23 de junho demonstraram que uma parte importante do eleitorado está disposta a votar por candidatos negros, morenos, latinos, progressistas e inclusive socialistas como Jibari Brisport, o problema é que a política eleitoral dos membros do DSA se baseia no apoio aos candidatos democratas, e toda a energia que poderia ter sido posta nas ruas foi colocada de fato à serviço da reconstrução de um dos pilares do regime. Por exemplo, faz apenas duas semanas, em meio às mobilizações, o Comitê Diretivo do DSA da cidade de Nova York dizia aos membros que a melhor forma de manter o movimento era ir votar nas primárias democratas. Esse eleitoralismo simplista não ajudará a manter o movimento em marcha. Ao contrário, pois se alimenta da mesma lógica que os democratas estão usando para cooptar o movimento, sendo assim uma receita para a desmobilização.

O papel dos socialistas deveria ser o de promover a radicalização do movimento para fomentar e desenvolver toda tendência à auto-organização, aos métodos da classe trabalhadora e a independência de classe que forem surgindo. De qualquer forma, seria um erro intervir no movimento sem propor que de seu interior brote uma nova organização. Não podemos lutar nas ruas enquanto os democratas fazem toda a política. Nós, os trabalhadores e jovens estudantes, que somos o coração do movimento, temos que construir nossa própria organização política, rompendo com os partidos capitalistas, para intervir com uma perspectiva revolucionária e promover candidatos verdadeiramente socialistas e independentes que denunciem a ambos partidos e ponham suas candidaturas à serviço da luta de classes.

Apesar da pressão política para centrar nas reformas de curto prazo e no eleitorismo, há sinais de que o movimento pode e quer mais, para além destas táticas estreitas. Em Detroit, por exemplo, os manifestantes vem participando de assembléias públicas regulares para discutir estratégia, e a princípios deste mês realizaram um "julgamento" simbólico do prefeito e do chefe de polícia. Em Seattle, os manifestantes ocuparam brevemente a Prefeitura e tomaram permanentemente uma seção de seis quadras da cidade conhecida como Capitol Hill Occupied Protest*(CHOP). Enquanto isso, somente nesta semana, milhares de manifestantes converteram o parque adjacente da Prefeitura de Nova York em uma ocupação, e começaram a discutir e debater aberta e coletivamente suas demandas, que incluem, entre outras coisas, uma redução de 1 Bilhão de dólares de salário do departamento de polícia da cidade. Tais ações demonstram que muitos no movimento estão dispostos a fazer algo mais que atender espontâneamente o chamado à marcha de um ou outro grupo de ativistas, e estão dispostos a criar formas de organização mais militantes.

Democracia operária e auto-defesa

Por mais promissores que sejam, estes desenvolvimentos devem se estender e se aprofundar se queremos evitar qualquer tipo de cooptação, fadiga ou desmoralização que tantos movimentos já experimentaram. E é precisamente este o papel dos socialistas, imaginar os passos necessários para que o movimento se radicalize, se estenda e adote uma perspectiva revolucionária. Se vamos tomar com seriedade a exigência de abolir a polícia, devemos ser capazes de criar o tipo de organização para retirar os policiais de nossas comunidades para sempre. Uma forma de começar a construir tais organizações é criar assembleias locais em todo o país, no centro das cidades, praças, escolas e locais de trabalho. As formas embrionárias de tais organizações já estão tomando forma em Seattle e Nova York, mas se queremos realmente conquistar "territórios autônomos" por qualquer período de tempo, é necessário forjar uma aliança que atravesse toda a classe trabalhadora para obter o controle sobre o transporte, a distribuição de bens e alimentos, a produção e, obviamente, a auto-defesa.

Para forjar uma poderosa aliança entre os trabalhadores e os oprimidos, é imperativo que o movimento adote, além da luta pela extinção da polícia, um enfrentamento sustentado contra o capitalismo. A primeira tarefa do movimento operário é expulsar os sindicatos da polícia de suas organizações. Para forjar uma aliança poderosa entre os trabalhadores e os oprimidos, o movimento deve adotar uma plataforma que inclua a confrontação com o racismo e a eliminação da polícia, assim como a luta por demandas mais imediatas da classe trabalhadora que surgiram com a pandemia: a luta contra o desemprego e pela saúde, educação e moradia. A luta da classe trabalhadora, que se desatou com o início da pandemia, está intrinsecamente ligada a luta contra o racismo. Dado que o capitalismo se baseia no racismo e que são as negras e negros os mais afetados pela crise sanitária e a consequente crise do desemprego, não existe forma de derrubar o primeiro sem derrubar o segundo. A combinação de crise sanitária, econômica e social que estamos presenciando, e os protestos de massa em resposta ao terror policial, colocaram outra vez sobre a mesa a questão da auto-organização da classe trabalhadora e mostram a necessidade real de organizações de poder e auto-defesa.

Um exemplo de organização operária exitosa são os conselhos de trabalhadores do Alabama nos anos 1930 e 1940, que são uma parte importante da história da luta dos negros nos Estados Unidos. Apesar da orientação cada vez mais direitista do Partido Comunista dos Estados Unidos (CPUSA) - impulsionada por sua fração stalinista que terminou na política desastrosa de frente popular com Roosevelt- foram os comunistas que desafiaram o repressivo e racista estado policial do Alabama para lutar por justiça econômica, igualdade racial e direitos civis e políticos dos negros e brancos. E o fizeram organizando os trabalhadores e parceiros rurais negros junto a um punhado de brancos, incluindo trabalhadores industriais desempregados, donas de casa, jovens e liberais renegados, em conselhos que funcionavam democraticamente.

Em 1930, a cidade de Birmingham, Alabama, foi um dos epicentros da crise economica e do desemprego. Os mais afetados foram os trabalhadores negros que tiveram que voltar em massa para uma economia agrária de auto-consumo para sobreviver. As massas negras sofreram a falta de moradias, educação, trabalho e bem estar social. Como Robin D.G. Kelley, autor de Hammer and Hoe: Alabama Communists During the Great Depression, disse: "A demanda de empregos foi tão grande que os industriais e as organizações de classe média lançaram numerosos esforços independentes para aliviar a situação". Mas não eram apenas demandas economicas. A classe operária negra do Alabama tinha que lutar contra a violência racista do Ku Klux Klan e da polícia. Por iniciativa dos militantes comunistas, surgiram conselhos vecinais em toda a cidade, muitos deles dirigidos por mulheres trabalhadoras que rapidamente incluíam parceiros agrícolas, trabalhadores industriais desempregados e mulheres a cargo da ajuda familiar. Estes conselhos, formados para lutar contra os efeitos mais adversos da crise, retomaram na primeira oportunidade a luta contra o racismo que assolava as comunidades negras.
Também é vital para o movimento operário o exemplo dos conselhos de desempregados que se extenderam para varias regiões do país em resposta ao desemprego massivo criado pela Grande Depressão. Em muitos estados, os comunistas organizaram dezenas deste tipo de conselhos através da Trade Union Unity League.

Em 1929, quando a Grande Depressão deixou milhões de trabalhadores nas ruas, os comunistas e os trotskistas desempenharam um papel chave na organização de conselhos de desempregados em várias cidades do país. Isto se deu frente a negativa das grandes centrais sindicais emergentes de lutar contra o desemprego e organizar os trabalhadores não sindicalizados. Estes conselhos não apenas se mobilizaram para garantir o seguro desemprego, como também organizaram a classe operária para lutar contra todos os efeitos da crise, por exemplo, a falta de moradia e os despejos. Como Christine Ellis nos diz sobre uma sessão do conselho de desempregados de Chicago:

"Falamos com sensibilidade, explicamos o programa, as demandas e atividades do conselho de desempregados. E logo dizemos: "Existe alguma pergunta?"... Finalmente, um senhor negro muito idoso se levantou e disse: "O que pensam fazer sobre a família negra que foi expulsa de sua casa hoje?"... Ainda estão lá fora com os móveis no quintal." Então o homem que estava comigo respondeu: "Muito simples. Terminaremos a reunião, iremos para lá e vamos colocar os móveis de volta na casa. Depois disso, qualquer um que deseje se unir ao conselho de desempregados e construir uma organização para lutar contra os despejos, pode regressar a esta sala e falaremos sobre isso um pouco mais". Isto foi o que fizemos... e todos contribuíram, carregando até o último móvel, arrumando as camas... e quando tudo estava pronto voltaram ao salão, que estava agora abarrotado!"

Seattle 1919

Um exemplo menos conhecido e muito significativo de auto-organização e auto-defesa em todo seu potencial radical é o do chamado "Soviete de Washington" de 1919, que teve seu epicentro nada menos que na cidade de Seattle. Em 6 de fevereiro de 1919, pelo menos 65.000 trabalhadores de Seattle se declararam em greve geral. Os trabalhadores também tomaram o controle de toda a cidade durante 6 dias. A greve foi em apoio aos 35.000 trabalhadores dos estaleiros, "então em conflito com os proprietários dos estaleiros da cidade e a Junta de Navegação do governo federal, que ainda estava fazendo cumprir os acordos salariais dos tempos de guerra". O Conselho Central Trabalhista de Seattle, que representa 110 sindicatos afiliados na Federação Americana do Trabalho (AFL), convocou a greve. Segundo o historiador Cal Winslow, os trabalhadores da cidade:

"...criaram uma cultura própria, com sindicatos "limpos" não dirigidos por gangsters; com um jornal de massas de propriedade dos trabalhadores (o Seattle Union Record), que se converteu no único jornal da sua classe em 1918, com escolas socialistas aonde as classes eram ministradas nas salas e ao ar livre; havia coros da Internacional Comunista, bailes comunitários e piqueniques".

O Conselho Central do Trabalho criou um Comitê de Greve Geral aonde participaram os delegados de base de todos os sindicatos, um verdadeiro corpo de auto-organização. Enquanto durou, o Comitê de Greve Geral se encarregou de dirigir toda a cidade e os serviços essenciais, sem patrões, sem políticos capitalistas e sem polícia.

Em seu clássico livro A outra história dos Estados Unidos, Howard Zinn descreve como se viveram esses seis gloriosos dias enquanto a classe operária esteve a frente de enormes progressos revolucionários:

"A cidade então deixou de funcionar, com exceção dos serviços organizados pelos grevistas para garantir as necessidades essenciais. Os bombeiros concordaram em permanecer em seus postos. Os trabalhadores das lavanderias limpavam apenas a roupa do hospital. Os veículos autorizados a circular levavam cartazes aonde era possível ler: "Dispensado pelo Comitê Geral de Greve". Montaram trinta e cinco postos vecinais aonde se podia conseguir leite. Organizaram uma Guarda Trabalhista de Veteranos de Guerra para manter a paz. Na entrada de uma das sedes estava escrito: "O propósito dessa organização é preservar a lei e a ordem sem o uso da força. Nenhum voluntário terá poder policial nem será permitido levar nenhum tipo de armas, apenas lhe será permitido usar a persuasão". Durante a greve, caiu o número de delitos ocorridos na cidade".

Em outras palavras, durante seis dias, a classe operária de Seattle manteve o controle territorial em suas mãos mediante a greve, a reorganização da cidade e a criação de uma milícia operária veterana. Se organizaram como uma alternativa ao poder burguês, deixando de lado a polícia e mantendo o exercíto à margem. Imagine esta experiência agora, unindo os bairros negros e latinos com os trabalhadores que controlam a produção, a distribuição e os serviços. Imagine o poder que se apoiaria nas milícias operárias para enfrentar a repressão e se defender dos ataques dos vigilantes brancos. Mas para isso necessitamos de poder de fogo, e esse poder de fogo está nas mãos da classe trabalhadora e dos oprimidos. Esta é a única maneira de converter estes protestos em uma luta contra todo o sistema de repressão racista e exploração capitalista.

Dualidade de poderes

Em sua definitiva História da Revolução Russa, Trotsky explica a importância e a necessidade da dualidade de poderes para qualquer revolução exitosa. "Não existe nenhuma classe histórica", diz Trotsky:

"Que passe da situação de subordinada para a situação de dominadora subitamente, da noite para o dia, ainda que esta noite venha a ser a da revolução. Por isso é necessário que já na véspera ocupe uma situação de extraordinária independência à respeito da classe oficialmente dominante; mais ainda, é preciso que nela se concentrem as esperanças das classes e das franjas intermediárias, descontentes com o existente, mas incapazes de desempenhar um papel próprio".

Como aclara Trotsky, as semente da revolução quase sempre se desenvolvem na auto-organização e normalmente levam anos para sempre plantadas ou, como no caso da Revolução Bolchevique, até mesmo décadas de preparação são necessárias. Os sovietes russos são apenas um exemplo de como podem se desenvolver tais organizações de duplo poder.

As mobilizações atuais contra a violência policial, ainda que não se assemelhem a um momento revolucionário ou até mesmo pré-revolucionário, possuem o potencial de colocar em xeque a questão do poder policial, que é fundamental para a existência do Estado. Mesmo que a as vozes que reclamam a abolição sigam sendo minoritárias em comparação com as que seguem crescendo de maneira equivocada ao acreditar em sua reforma, e mesmo que enfrentem uma campanha feroz de repressão e cooptação de todos os bandos do espectro político, a demanda em si mesma é qualitativamente diferente de tudo que temos visto nos Estados Unidos desde pelo menos os anos de 1960.

Que apareçam ou não novas formas de auto-organização e auto-defesa a partir destes protestos depende da consciência de classe dos que estão atualmente em luta, da capacidade da esquerda para intervir com um programa revolucionário, e de sua vontade e capacidade para vincular a luta contra a opressão policial com as lutas mais amplas que já estão surgindo devido a crise econômica e social gerada pela pandemia. Desde uma perspectiva revolucionária, essas formas de auto-organização tomarem forma, devido as condições das crises atuais (incluindo a entrada em cena de vigilantes brancos organizados) será fundamental. Os reformistas diram que isto é impossível, que deveriamos nos contentar com manifestações de rua e reformas cosméticas. Para nós, para além de que o movimento atual se desenvolva de maneira revolucionária ou não, é fundamental que um amplo setor do povo mobilizado chegue a conclusão de que é necessário e urgente desafiar o sistema e que é uma luta que vale a pena travar. Que a palavra revolução floresça uma vez mais nas bocas desta nova geração.

Ainda que estes prognósticos possam soar demasiado otimistas, considerando aonde se encontrava os Estados Unidos politicamente faz apenas um ou dois anos -quando a esquerda estava dominada pela campanha reformista de Bernie Sanders- está claro que algo mudou. Estamos sendo testemunhas do despertar político de toda uma nova geração de ativistas e manifestantes que estão muito mais interessados em enfrentar o capitalismo e o Estado, e que tem muito menos a perder que quase qualquer geração estadounidense anterior a eles. Se neste cenário se soma uma pandemia mundial, o desemprego massivo (que afetou especialmente os jovens) e uma crise econômica que provavelmente vai rivalizar com a Grande Depressão, é fácil ver que o futuro do próximo período de luta nos Estados Unidos segue estando em aberto. Construir e experimentar novas formas de auto-organização e auto-defesa, vinculadas a luta da classe operária, são as tarefas estratégicas mais importantes para o movimento.


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