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ELEIÇÕES EUA | É hora da esquerda construir uma força fora do Partido Democrata

O atraso sem precedente na liberação dos resultados da eleição primária de Iowa é apenas a prova mais recente da corrupção sistêmica do Partido Democrata, que não é o lugar para um projeto socialista.

Juan Cruz FerreLeft Voice, EUA

domingo 16 de fevereiro de 2020 | Edição do dia

Enquanto eu escrevo este artigo (publicado originalmente no portal Left Voice, portal norte-americano da rede internacional Esquerda Diário), os resultados completos das eleições primárias de Iowa ainda não estão disponíveis, cerca de 16 horas depois do último voto. O Partido Democrática de Iowa (IDP) Explicou que o atraso era devido a um “controle de qualidade”, depois eles afirmaram a existência de problemas com o aplicativo usado (pela primeira vez no ano) para transmitir os resultados. O desenvolvedor do aplicativo é a Shadow Inc., uma empresa que, segundo várias fontes, recebeu dezenas de milhares de dólares da campanha de Pete Buttigieg em 2019 por “direitos de software e subscrições”. Por sua vez, foi descoberto que a liderança executiva da Shadow Inc está repleta de veteranos da campanha de Hillary Clinton de 2016.

Essa não é a primeira irregularidade nessas primárias. Alguns dias atrás, a pesquisa da Des Moines Register/CNN/Selzer & Co - considerados pela acuracidade (“gold standard”) de suas previsões para a convenção em Iowa - foi suspeitosamente cancelada antes de chegar ao domínio público, supostamente por causa de um entrevistado que apontou um problema com a maneira que o survey foi conduzido. Depois, foi informado que a pesquisa mostrava Sanders na liderança e Joe Biden no quarto lugar.

Alguns dias atrás, o Comitê Nacional Democrata (DNC) eliminou a exigência de doador individual com o objetivo de permitir a participação de Michael Bloomberg no próximo debate Democrata. O bilionário e ex-prefeito de Nova York está concorrendo através de uma campanha completamente autofinanciada, literalmente comprando seu caminho para as primárias do partido. Bloomberg e Tom Steyer (outro bilionário que decidiu concorrer pela nominação interna) estiveram entre os top 5 doadores democratas nas últimas 3 eleições. Esta injustificável e inexplicável reversão das regras de qualificação para os debates é prova de que bilionários como Bloomberg and Steyer podem usar seu dinheiro para influenciar diretamente no resultado das decisões partidárias. Dificilmente pode haver um exemplo melhor do quanto grande capital manda no Partido Democrata.

Um vislumbre do que está por vir

As irregularidades e conflitos de interesse na convenção de Iowa são apenas um vislumbre do que podemos esperar do resto das primárias. Sem dúvidas, Bernie Sanders tornou-se um forte candidato para a nomeação (talvez o mais forte, neste momento) e o establishment partidário está tentando bloquear sua vitória nas primárias. O problema é que não há um candidato moderado que consiga consolidar todo o suporte dos grandes doadores do partido. O desempenho medíocre do uma vez favorito, Joe Biden, forçou a entrada dos próprios bilionários doadores, como Steyer e Bloomberg, para dentro da arena eleitoral.

Pode não ser suficiente, então, para o establishment partidário oferecer apoio (financeiro e logístico) para o melhor candidato moderado (seja ele Biden, Buttigieg ou o cada vez mais moderado Warren). Apesar de ser apresentada como falha técnica, existem fortes sinais que sugerem que o escândalo em Iowa pode ser outra manobra do DNC para garantir que Sanders não vença. Claro, isso não é novidade
Em 2016, o DNC fez de tudo para dar a nominação à Hillary Clinton - desde o provimento antecipado de perguntas de debate, até o uso do trunfo dos superdelegados para esmagar a esperança de uma nomeação de Sanders. Entretanto, quando Sanders perdeu as primárias, em vez de denunciar o caráter fraudulento do processo de seleção e o nefasto papel da liderança partidária, ele cerrou fileiras atrás de Clinton e chamou seus apoiadores para se unirem atrás dela, sustentando a legitimidade do Partido Democrata. Sanders já indicou que fará o mesmo este ano: ele apoiará o nome do Partido Democrata, independentemente de quem seja.

Quando a esquerda aprenderá?

Há uma longa história de iniciativas de “usar” o Partido Democrata para uma transformação social progressiva. Desde a campanha End Poverty (Acabar com a Pobreza) na Califórnia, de Upton Sinclair, ao apoio dos PC’s a Franklin D. Roosevelt durante o período da Frente Popular, à coalizão Arco Íris de Jesse Jackson na década de 80, a história da esquerda nos Estados Unidos é marcada por tentativas fracassadas de transformar o Partido Democrata em uma ferramenta para o povo trabalhador (working-class people). Isso nunca aconteceu e nunca acontecerá. Mesmo assim, a esquerda socialista ressurgente nos EUA hoje, hegemonizada pelo DSA (Democratas Socialistas da América), está insistentemente fixada na ideia de trabalhar dentro do Partido Democrata com a esperança de eleger Bernie Sanders para a Casa Branca.

Há pouca esperança de que, se confrontado por irregularidades semelhantes a Iowa ou de outros tipos, Bernie Sanders sairá para denunciar o establishment do Partido Democrata. A partir de 2016, Sanders apenas tornou-se mais integrado ao partido, defendendo reformas no processo primário, e nestas eleições de novo, comprometendo-se a apoiar qualquer candidato que acabe sendo o indicado. Esta atitude pragmática de empurrar as linhas em direção a políticas mais progressistas, mas comprometendo-se com o establishment dos democratas quando julga necessário, marcou sua carreira política em Vermont e no Senado. Seria tolice esperar algo diferente.

Mesmo no caso hipotético de que Sanders acabe ganhando a nominação e, depois, as eleições gerais, ele enfrentará oposição insuperável de seu próprio partido no Congresso que, com ou sem a ajuda dos republicanos, seria capazes de barrar qualquer grande reforma que vá além do que o grande capital dos EUA está disposto a conceder. Enquanto isso, centenas de milhares de novos socialistas trabalharam no telemarketing para o Partido Democrata, pedindo votos para candidatos democratas, imersos na política de lobby, construção de coalizões e pressionando a linha apenas um pouco para a esquerda. Atolados nos meandros de um sistema político que se destaca pelo seu caráter antidemocrático e viés em relação ao status quo, recrutados como soldados de infantaria e um campo de batalha eleitoral durante o ano todo (lutando pelo mal menor), a energia explosiva de uma nova geração de socialistas seria imperdoavelmente desperdiçada.

Começar do começo

“A história de todas as sociedades existentes até agora é história da luta de classes.”

A principal fonte do conflito é, e sempre foi, a divisão da sociedade entre classes: a classe trabalhadora é explorada enquanto os capitalistas colhem os lucros do nosso suado trabalho. Nada define melhor nossos interesses, experiências e condições de vida do que a classe social a qual pertencemos. Um partido que é dominado por um leque poderoso de capitalistas que o financiam e sentam-se em suas cadeiras de comando sempre procurará garantir os lucros capitalistas. É por essa razão que os trabalhadores precisam de sua própria ferramenta política que defenda nossos interesses

Se tirarmos as lições mais básicas do movimento socialista, de Marx e Engels aos dias atuais, veremos que o primeiros passo para a criação de um projeto socialista viável nos EUA é o reconhecimento do Partido Democrata como um inimigo da classe trabalhadora, investindo assim nossas energias na construção de uma ferramenta política independente da classe trabalhadora. A insistência do DSA em trabalhar dentro do Partido Democrata para que, mais tarde, em algum ponto do futuro, rompa com ele para formar uma nova organização, é a receita perfeita para uma lenta dissolução no poderoso aparato partidário. Os esforços exagerados que o DSA teve na eleição de democratas progressistas para cargos apenas enfatiza uma tendência a colaboração cada vez mais próxima, em vez de um caminho de ruptura com as instituições do regime americano. Tal orientação apenas enfraquece a capacidade do DSA em combater o establishment do Partido Democrata, caso o DNC tente roubar as primárias novamente, ou se a maioria do partido opor-se ao Medicare for All - um cenário seguro de se esperar. Uma quebra revolucionária com as instituições do regime capitalistas serão inevitáveis se nós queremos construir uma nova sociedade, uma sem classes sociais, que não seja mais baseada na exploração de uma maioria por uns poucos ricos. O escândalo da convenção de Iowa é somente mais uma prova de que o Partido Democrata é um partido decadente, dominado pelo capital e nunca será o lugar para um projeto socialista.




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