Logo Ideias de Esquerda

Logo La Izquierda Diario

SEMANÁRIO

Do presidencialismo de coalizão à coalizão presidencialista. Reflexões sobre o significado da aliança Lula Alckmin

Thiago Flamé

Do presidencialismo de coalizão à coalizão presidencialista. Reflexões sobre o significado da aliança Lula Alckmin

Thiago Flamé

Ainda é incerto o destino das conversas entre Lula e Alckmin para a conformação de uma chapa presidencial comum, mas as tratativas estão avançando e o simples fato de acontecerem significa uma sinalização muito forte do PT para as classes dominantes e para o governo Biden e um acontecimento de extrema relevância na política brasileira. Em nome de derrotar Bolsonaro, Lula e o PT dão as mãos para uma figura que foi um dos principais aplicadores do neoliberalismo no Brasil, apoiador de primeira ordem do golpe institucional, do governo Temer e do próprio Bolsonaro.

Essa insólita movimentação, que une os dois polos que antagonizaram as disputas políticas no regime de 1988, responde aos profundos deslocamentos na relação entre as classes que houve no Brasil desde o golpe de 2016 e com a entrada no governo da extrema-direita bolsonarista.

O núcleo articulador do golpe, a partir do departamento de estado e de justiça dos EUA, sob o comando de Obama e tendo como responsável pelas relações com o Brasil na época o próprio Biden, da Rede Globo, do PSDB que Alckmin compunha, e da parcela majoritária das finanças e da indústria, da maioria do centrão e da alta cúpula militar sob comando do general Villas Boas, pretendiam um retorno rápido à legitimidade democrática como forma de consolidar e prosseguir a obra econômica do golpe.

Esse plano caiu por terra com a crise histórica do PSDB e, em geral, do centro burguês. As classes médias tucanas, arrastadas à direita com a ofensiva da Lava Jato abandonaram seus representantes tradicionais. Setores mais radicalizados das classes dominantes, em especial o agronegócio e alguns setores das finanças, viram desde o início em Bolsonaro a possibilidade de avançar mais além do que o golpe de 2016 havia ido na imposição de uma hegemonia que jamais poderia se consolidar em base ao voto. E a cúpula dos militares, vendo a popularidade do candidato militar, quis se localizar como quem "controla" Bolsonaro, sem deixar de encampar e articular o projeto reacionário com o qual se identifica, e Bolsonaro passou naturalmente a se identificar aos olhos das massas com o exército, também querendo aproveitar a possibilidade de retornar ao comando do país 30 anos depois da promulgação da constituinte.

Ao longo do governo Bolsonaro, os setores majoritários da classe dominante e seus representantes tradicionais buscaram apoiar as medidas econômicas do golpe, mas conter a escalada do bonapartismo militar que foi cerrando fileiras em torno do governo, contra o STF e os governadores, para dar uma cara de legitimidade institucional ao sistema político pós-golpe. No entanto, mais uma vez essa política não obteve sucesso. Não conseguiram um sólido consenso burguês em torno dessa política, a não ser no momento de maior ofensiva bolsonarista e não conseguiram avançar sobre a base social nem do bolsonarismo nem do lulismo. Fraco demais para impor o bonapartismo militar contra o STF e os governadores e forte o suficiente para se manter no governo como favorito da direita para chegar ao segundo turno em 2022, Bolsonaro vai chegando ao fim do seu governo sem que nenhuma terceira via tenha conseguido se impor por ora.

O significado da possível aliança Lula e Alckmin

O caminho preferível para a burguesia consolidar os ataques que avançaram desde o golpe institucional seria a viabilização eleitoral de um candidato burguês tradicional, algum representante do PSDB ou da direita tradicional que agora está buscando se reorganizar no novo partido Avança Brasil. No entanto, nenhuma dessas alternativas tem demonstrado viabilidade eleitoral. Nesse cenário, Sérgio Moro também tenta se colocar como uma alternativa da terceira via, porém um governo seu seria muito mais a ascensão do bonapartismo judiciário ao governo, a consolidação de uma república de juízes e procuradores, que, além de não contar até agora com respaldo eleitoral para ir ao segundo turno e causar horror no centrão, significaria menos um retorno a condições mais normais de presidencialismo do que o prosseguimento da escalada bonapartista sob roupagem institucional.

Lula, nesse cenário, aparece como a alternativa de centro mais viável para a estabilização do regime democrático sob as novas configurações de classe. Porém, também aparece como uma opção que nunca foi a primeira para a grande burguesia, menos pelo que ele significa em si e mais pelo temor de que uma vitória sua desperte forças na classe trabalhadora e na juventude que não possam ser contidas pelo petismo. A aliança com o PSDB tradicional via Alckmin torna a alternativa Lula muito mais confiável para o conjunto da burguesia e para o imperialismo.

Alguns setores apresentam essa aliança como uma defesa da democracia e da constituição de 1988 contra o bonapartismo militar do Bolsonaro. Um dos que foi mais longe na tese, Luiz Werneck Vianna, apresenta as coisas assim: “A aliança Lula-Alckmin recupera as melhores inspirações que estiveram presentes nas lutas contra o regime do AI-5, mas por si só, sem se encorpar com as demais forças democráticas e sem conquistar a imaginação social de todos os descontentes com o que aí está, nada lhe afiança o seu sucesso e sua intenção de nos devolver a feliz combinação da questão social com a da democracia política.” Como é possível pensar que uma aliança com o neoliberalismo tucano, do golpismo mais descarado, recauchutado num Alckmin em novo partido, pode promover uma “feliz combinação da questão social com a democracia política”? Porém, esse argumento ressoa hoje na boca de Lula e dos dirigentes petistas, quando se referem ao PSDB “democrático” de FHC e Franco Montoro.

A aliança com Alckmin, como diz Lula desmentindo a ideia de que é necessária para ganhar as eleições, visa sobretudo garantir a governabilidade na sequência das eleições. O objetivo, ao contrário de uma defesa da democracia, seria avançar num presidencialismo mais fortalecido, já não sob as condições do antigo pacto social, mas agora para dar garantias de que manterá intacta a obra econômica do golpe e o aprofundamento da subordinação aos EUA. Nos marcos do presidencialismo de coalizão, o centrão era a garantia que nenhuma das cláusulas progressistas da constituição de 1988 fosse levada à prática na forma de lei. Porém, ao custo de dificultar e moderar ao sabor da opinião pública o ritmo das reformas neoliberais e das privatizações. Sim, talvez um governo Lula-Alckmin possa ter melhores condições de "governabilidade", mas para avançar mais rápido e decididamente nas medidas requeridas pela grande burguesia. O discurso oficial petista já se desenha nas entrevistas de Lula “pegaremos o país numa situação muito pior que em 2003”. A resposta em 2003 havia sido reforma da previdência atacando o funcionalismo público, aumento do superávit primário, dos juros e cortes no orçamento da saúde e educação. Sem o boom das exportações, não teria existido lulismo, e se é verdade, como diz Lula, que a situação agora é pior, o remédio pode ser mais amargo. Lula falou em revogar a reforma trabalhista e retrocedeu, mas falou também em privatizar a Caixa Econômica Federal, e disso não voltou atrás.

Também o discurso em política externa, ainda que tente manter uma equidistância entre China e EUA, contra a postura de subordinação total de Bolsonaro, já acena para níveis maiores de subordinação e a própria aproximação com Alckmin também é uma sinalização neste sentido.

Que tradições democráticas reivindicamos

O artigo de Werneck Vianna expressa tão cabalmente os preconceitos e erros das camadas dirigentes dos chamados círculos progressistas, incluindo o PT e o PSOL, que vale a pena voltar a ele. Na sua visão, o que garantiu o fim da ditadura foi essa aliança entre a questão social e a democracia política, que se expressou, por exemplo, nas Diretas já ou na constituição e o grande erro que abriu caminho para todos os males posteriores teria sido a ruptura desta aliança a partir de 1989. Afastadas as duas, um dia veio junho de 2013, o governo Dilma, o golpe. “Descobriu-se o caminho que poderia levar a interrupção do regime autoritário de então pela ação combinada dos vetores sociais animados pelos temas da democracia política, com ênfase nos processos eleitorais, tal como na eleição de 1974 com a vitória da candidatura de Orestes Quércia ao Senado, com aqueles originários da questão social vigorosamente expressos pelo sindicalismo operário, especialmente do ABC em São Paulo e que se espraiou em todo o país. A fórmula vitoriosa tinha como consigna a democracia política aliada à questão social e se fez presente ao longo do tempo em que se elaborou o texto constitucional de 88”.

Quando os militares iniciaram o processo de abertura “lenta, gradual e segura” para fazer frente à crise da ditadura a partir de 1974, o sonho que alimentava os militares era de que figuras políticas alinhadas com a caserna dominassem o cenário político. Deste ponto de vista estritamente formal, até pode parecer correto o argumento de Werneck Vianna, as forças políticas vitoriosas até a constituinte, foram sobretudo o MDB (o único partido a obter maioria simples no Congresso, em 1986), o nascente PSDB e o ascendente PT, com lugar também para o PDT de Brizola. As eleições de 1989 aparecem como um erro de percurso ocasionado pela divisão destas forças, da mesma maneira que, ainda que não diga, está inscrito em todo a argumentação, essa teria sido uma aliança que teria evitado a que fez o PSDB com o PFL (um dos partidos herdeiros da ditadura, que depois se chamou DEM e agora, após fusão com o PSL, é o União Brasil) em 1994. O que esse raciocínio formal não consegue explicar é por que se dividiram então essas forças, apenas por imbecilidade e estreiteza de vista por parte dos principais líderes políticos do país? Ainda que essa estreiteza de vista e imbecilidade sempre são um fator na política, como vemos com Bolsonaro, as causas devem ser procuradas em motivos mais profundos.

O triunfo de 1986 e da constituição não foi somente eleitoral contra os representantes militares. Também foi um triunfo contra o movimento operário, que foi contido e derrotado. O pacto de transição, em troca da perda de protagonismo, garantiu aos militares a impunidade pelos crimes cometidos, a manutenção dos poderosos serviços de inteligência e a garantia de uma tutela discreta porém ativa sobre as instituições do novo regime. Antes de Lula despontar em 1989 à frente de todos os políticos tradicionais, como Ulisses Guimarães e Brizola para chegar ao segundo turno contra Collor, o movimento operário protagonizou um ciclo de greves muito superior numericamente ao de 1978/80, porém menos lembrado, por que já não se enfrentava com um governo militar, mas contra um governo civil, de José Sarney, do MDB e os governadores democráticos (que contavam com escandaloso apoio do PCB).

Essa ruptura, que nunca foi total, foi imposta mais pela necessidade de evitar que um movimento operário em ascensão se radicalizasse politicamente e chegasse a se constituir em uma ameaça à ordem burguesa do que pela vontade dos líderes. Lula, por exemplo, era contra a criação de um partido dos trabalhadores e defendia que os sindicalistas apoiassem os políticos do MDB, como, por exemplo, FHC. Foi somente ao ver que o partido sairia com ou sem Lula, que ele foi convencido a entrar, justamente para fazer frente à esquerda radical.

Nunca foi total porque durante os anos do governo FHC o papel do PT nos sindicatos foi fundamental para a derrota da greve dos petroleiros de 1995, que poderia ter imposto um sério limite à estabilização do governo FHC. Da mesma forma que nos sindicatos o PT utilizava as greves meramente como forma de desgastar o governo em função dos seus interesses eleitorais, mas na prática ajudava a que eles fossem derrotadas, nos governos e municípios em que estava, aplicava medidas neoliberais e privatizações. E os governos petistas mantiveram em linhas gerais o legado de FHC, não reverteram nenhuma privatização, mantiveram um tucano como Henrique Meirelles no Banco Central e, sobre base constituída por FHC, irrigaram com os dólares das crescentes exportações, com o agro adquirindo um peso cada vez maior, os projetos sociais que foram a marca do lulismo.

De fundo, PSDB e PT rivalizaram nos marcos de um projeto comum. Abertura do mercado brasileiro às empresas multinacionais, pagamento em dia da divida pública, conservando nichos de mercado para setores competitivos da burguesia brasileira através de investimentos do BNDES, precarização trabalhista (sob Lula adquiriu a forma da terceirização e dos empregos com baixos salários) e planos assistenciais que puderam ser turbinados. Foi a revolta de juventude em junho de 2013 que rompeu essa colaboração na rivalidade, que, ao contrário do que diz o petismo hoje, ainda que com caráter difuso, não era despolitizada e foi às ruas para lutar por direitos substantivos, educação, saúde, e contra os pactos de governabilidade com a direita mais reacionária, ainda que aquela energia tenha se canalizado pela direita, também pelo papel do PT em reprimir as mobilizações e não atender as demandas.

Essa tradição, da colaboração entre PSDB e PT, não representa a luta do movimento de massas contra a ditadura, por direitos democráticos. Representa o desvio de um movimento que poderia ter ido muito mais além e que deu grandes exemplos de luta onde podemos nos apoiar. A tradição democrática que reivindicamos é a da luta das massas camponesas pela expropriação dos latifúndios, brutalmente reprimida durante o governo de FHC em Eldorado dos Carajás. A luta do movimento operário na década de oitenta contra o arrocho e a inflação, luta que se deu durante o regime militar e seguiu durante o governo Sarney e Collor, que tiveram nos operários da CSN em Volta Redonda, e nos mártires que tombaram em confronto com o exército depois da promulgação da constituinte, um dos seus exemplos mais heróicos. A luta das massas negras através de cada um desses processos. A longa resistência dos povos originários em defesa da terra e da mata, que atravessou os séculos e chega até os nossos dias. A luta das oposições sindicais contra a burocracia sindical colaboracionista com a ditadura e a luta do funcionalismo público pelo reconhecimento dos seus sindicatos. Tudo o que se conquistou nesse terreno foi arrancado em lutas heróicas em que muitos tombaram e todo esse processo poderia ter ido muito além, se cada uma dessas lutas tivesse articulada com a tarefa estratégica de derrubar a ditadura pela força da mobilização de massas e imposto uma assembleia constituinte livre e soberana, livre da tutela militar, do centrão e da ingerência dos EUA.

Uma luta consequente por todos os direitos democráticos, por uma assembleia constituinte livre e soberana, pelo fim da impunidade dos ditadores, por uma reforma agrária radical, pelo direito de autodeterminação dos povos originários, pelo não pagamento da dívida pública, pela nacionalização do petróleo e de todas as riquezas naturais seguem vigentes nos dias de hoje e a articulação entre as demandas democráticas mais radicais e as demandas sociais mais profundas é a única forma de articular as questões sociais com a democracia política em favor das grandes massas exploradas e oprimidas do país.


veja todos os artigos desta edição
CATEGORÍAS

[PT]   /   [Alckmin]   /   [Lula]   /   [Ditadura militar]

Thiago Flamé

São Paulo
Comentários