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Do PT à ultradireita: breves notas marxistas sobre a evangelização da política no Brasil hoje

Simone Ishibashi

Imagem: Alexandre Miguez.

Do PT à ultradireita: breves notas marxistas sobre a evangelização da política no Brasil hoje

Simone Ishibashi

Recentemente um acontecimento gerou revolta pelo nível inaudito de reacionarismo. As redes sociais foram tomadas por mensagens contra a absurda vigília de fanáticos religiosos diante do hospital em que uma criança de apenas 10 anos de idade teve que recorrer a um aborto, após ter sido estuprada pelo próprio tio. As alegações de que estariam defendendo a vida do feto, tornaram explícitas a hipocrisia e o desprezo criminoso com a vida da menina vítima do estupro. Como decorrência, e ampliando ainda mais a escalada autoritária contra os direitos das mulheres, agora foi publicada uma portaria que obriga os médicos a notificarem a polícia em caso de aborto por conta de estupros. Trata-se de mais uma resposta reacionária para calar a justa indignação expressada por uma parcela da sociedade contra a absurda postura dos grupos fanáticos religiosos contrários à garantia do direito ao aborto em caso de estupros. E mais um ataque ao laicismo do Estado.

O governo Bolsonaro em meio aos escândalos envolvendo esquemas de corrupção com Queiroz, recentemente teve que enfraquecer a ala ideológica inspirada em Olavo de Carvalho. A saída do ministro da Educação, Abraham Weintraub, foi uma expressão disso. No entanto, buscando uma base de apoio mais ampla, Bolsonaro segue mirando nos evangélicos e na direita cristã com medidas e gestos que visam atender aos desumanos clamores pela elevação do controle e vigilância responsáveis por aprofundar a negação dos direitos das mulheres aos seus próprios corpos.

Embora tenha se fortalecido no contexto do governo da ultradireita, a bancada da Bíblia, composta pela Frente Parlamentar Evangélica e outras agremiações das igrejas pentecostais e católicas, não emergiu somente agora. É há décadas parte organizadora do consenso burguês junto ao que Gramsci denominou como sociedade civil. E teve seu desenvolvimento pavimentado não apenas por Bolsonaro, como também pelos governos do PT. Este último fato ainda que muito conhecido, merece ser retomado. Mas primeiramente retomemos algumas breves observações teóricas sobre o papel das agremiações religiosas como parte dos pilares que sustentam o Estado capitalista.

Gramsci, o Estado integral e a bancada da Bíblia

Gramsci elaborou uma significativa reflexão sobre o papel das organizações da sociedade civil para a ampliação do poder estatal, e a construção do consenso que permite às classes dominantes a perpetuação de sua dominação. Essa reflexão é relevante para apreender a difusão das igrejas evangélicas neopentecostais no seio das sociedades norte-americana e brasileira, o que lhe conferiu importância como força política capaz de pautar suas demandas como parte das agendas de política doméstica e externa. De acordo com Gramsci, “o único caminho para buscar a origem da decadência dos regimes parlamentares é (...) investigar na sociedade civil”. (GRAMSCI, 2000, p. 220). Posto de uma outra maneira, a ampliação do Estado é o que permite que o poder estatal construa o consenso social necessário para a sua sustentação, já que uma formação que se apoia majoritariamente na repressão, ou na ameaça constante do uso da força, é menos hegemônica. Portanto, a elaboração do consenso a partir da disseminação de determinados valores e sentidos pela ação das igrejas, escolas, organizações midiáticas é um fator de grande importância para a conformação política que assegura a permanência do Estado. De acordo com Gramsci:

[...] Por enquanto, podem-se fixar dois grandes “planos” superestruturais: o que pode ser chamado de “sociedade civil” (isto é, o conjunto de organismos designados vulgarmente como “privados”) e o da “sociedade política ou Estado”, planos que correspondem, respectivamente, à função de “hegemonia” que o grupo dominante exerce em toda a sociedade e àquela de “domínio direto” ou de comando, que se expressa no Estado e no governo “jurídico”. Essas funções são precisamente organizativas e conectivas. Os intelectuais são “prepostos” do grupo dominante para o exercício das funções subalternas da hegemonia social e do governo político, isto é: 1) do consenso “espontâneo” dado pelas grandes massas da população à orientação impressa pelo grupo fundamental dominante à vida social (...); 2) do aparelho de coerção estatal que assegura “legalmente” a disciplina dos grupos que não “consentem”, nem ativa nem passivamente, mas que é constituído para toda a sociedade na previsão dos momentos de crise no comando e na direção, nos quais desaparece o consenso espontâneo. [1]

A noção de Gramsci de Estado ampliado, categoria que apesar de não estar presente dessa maneira nos Cadernos do Cárcere depreende-se de passagens deste texto, permite dar um pano de fundo que explicita parte do processo de expansão das igrejas evangélicas no Brasil. Para Gramsci o consenso que sustenta o Estado é construído pela ação das organizações da sociedade civil, que por sua vez são dirigidas por uma camada parte da própria classe dominante, ou sua representação. Assim, as igrejas evangélicas atuam como aparelhos privados de hegemonia. Portanto, o questionamento à hegemonia exercida pela ampliação do Estado faz-se mais dificultosa e complexa, já que a própria percepção do caráter de classe da dominação vigente torna-se imersa em um aparente consenso perpetuado pelas esferas das instituições da sociedade civil.

Cabe também ressaltar que a noção de ampliação do Estado se combina em Gramsci com a problemática relativa à crise orgânica, que indica um processo de crise da hegemonia das classes dominantes cujo desenvolvimento culmina no afastamento dos grupos sociais aos seus representantes políticos tradicionais, tornando “a situação imediata delicada e perigosa, pois abre-se o campo às soluções de força, à atividade de poderes ocultos, representados pelos homens providenciais ou carismáticos.” [2]. É neste contexto que se dá o fortalecimento relativo do poder da burocracia civil, militar, da alta finança, e da Igreja como instituições que passam a ocupar o lugar outrora reservado aos representantes dos partidos políticos tradicionais. Esse processo de crise orgânica opera-se mediante a falência de um grande empreendimento político para o qual se haveria convocado a ação das massas. Pode-se interpretar que a falência do grande empreendimento também significa o esgotamento das condições que sustentavam a vigência de uma determinada maneira de exercer a hegemonia. Como se sabe, no caso do Brasil a falência da empreitada de crescimento gradual e reposicionamento pacífico no tabuleiro internacional, que caracterizaram os anos dos governos do PT cederam espaço para a abertura da crise orgânica, com o consequente golpe de 2016, e todo o processo político que culminou na eleição de Bolsonaro em 2018. Uma das características específicas que revestiu esse processo aqui foi o fortalecimento da “bancada da bíblia”, que já vinha ganhando terreno nos anos anteriores, e tem contribuído para a manutenção de uma ordem cada vez mais reacionária.

Bancada Evangélica: a entrada na política, corrupção e fortalecimento sob o PT

A imensa proliferação das igrejas neopentecostais ajuda a delinear a face do reacionarismo em temas relativos à família, costumes, sexualidade e papeis de gênero. Em dez anos estima-se que o número de evangélicos no país elevou-se em 61,45% de acordo com o Censo Demográfico do IBGE, atingindo 22,2% dos brasileiros em 2010, o que totaliza 42,3 milhões de pessoas (IBGE, 2010). Desde o censo esse número aumentou ainda mais, segundo pesquisa do Datafolha de 2020. Mesmo que maioria dos brasileiros se declare católica, com 50%, os evangélicos são os que mais crescem, já contam com 31%, dentre os quais 58% são mulheres. Esse crescimento e enorme capilaridade que as igrejas, em especial as pentecostais e neopentecostais, têm junto às comunidades e periferias rapidamente se traduziriam em uma busca pela ampliação da posição política por parte dos bispos-capitalistas que estão à frente das maiores agremiações, como a Igreja Universal do Reino de Deus e a Assembleia de Deus.

Desde a Constituinte tutelada de 1988 setores neopentecostais articulam seus partidos e atuações políticas de maneira cuidadosa, embalados pela ideologia contida na “teologia da prosperidade”, que não apenas é alheia a qualquer aversão ao enriquecimento, como ainda o encara como uma graça divina alcançada. Assim, a participação política foi se manifestando sob uma combinação de agenda conservadora e reacionária nos costumes, com destaque para a militância contrária ao aborto e aos direitos das mulheres e dos LGBTs, e favorecimento da ampliação dos monopólios de comunicação, sob o lema de “irmão vota em irmão”. Assim, a política deixava de ser encarada como algo mundano, e passava a ser uma das atribuições dos pastores das mais variadas agremiações, sob a justificativa de que se tratava de um combate de valores e da “missão de moralizar a política”.

A Frente Parlamentar Evangélica se forma em 1960, começa a atuar em 1961 quando elege seu primeiro deputado federal, e em 1966 o estadual, e um deputado federal em 1986. Durante os anos 1990 a Igreja Universal do Reino de Deus se expande, e ganha terreno nos grandes centros urbanos, o que faz com que Edir Macedo indique pessoalmente os principais candidatos da Frente. Desde o início de sua entrada na política durante a transição para o regime de 1988 quando os evangélicos conseguem eleger 34 parlamentares, membros da bancada da bíblia esteve envolvida em escândalos:

Um grande número destes parlamentares estava localizado naqueles partidos de direita, a ala conservadora do Congresso. Em um primeiro momento, boa parte destes deputados participou do “Centrão”, bloco de apoio ao Presidente José Sarney. Sobre esta presença, Saulo Baptista apresenta que “a avidez dos pentecostais, liderados por Gidel Dantas, era tamanha que Daso Coimbra gravou alguns telefonemas nos quais eles faziam exigências descabidas de recompensas materiais para votarem alinhados com o Centrão” (BARBOSA, 1988, apud BAPTISTA, 2009). Gidel Dantas, do PMDB de Goiás, pertencia a Igreja Assembleia de Deus e Daso Coimbra, do PMDB do Rio de Janeiro, pertencia a Igreja Congregacional do Brasil. [3]

Tal prática foi uma constante desde então. Um exemplo é o Bispo Rodrigues era uma das lideranças da Igreja Universal na Câmara, e foi acusado de envolvimento direto no mensalão em 2005, cujas repercussões lhe custaram seu afastamento do cargo. Não foi o único escândalo. A criação da “CMPI das sanguessugas” em junho de 2006, que fora criada para apurar um esquema de fraude na licitação para compra de ambulâncias, tornou pública uma lista na qual dos 90 deputados federais e senadores suspeitos, 27 eram evangélicos, com destaque para o senador Magno Malta (PL-ES).

Paralelamente a isso, a Frente Parlamentar Evangélica, que cabe notar sempre foi heterogênea, seguia atuando ferozmente contra as reivindicações democráticas. Ampliando sua bancada nas eleições de 2014 conquistaram 74 deputados, chegando a ter Eduardo Cunha da Assembleia de Deus e um dos artífices do golpe de 2016 como presidente da Câmara. A atuação da bancada da bíblia se pautou por inúmeros projetos contrários aos direitos democráticos dos setores oprimidos. E já naquele momento o PT não opôs qualquer resistência.

A negativa do direito ao aborto legal, seguro e gratuito que custa a vida de milhares de mulheres, o caminho livre para tentativa de retorno à patologização dos LGBTs, e a retirada do projeto “Escola sem Homofobia”, que mais tarde daria origem à fakenews do Kit Gay são exemplos da ausência de combate do PT. Dessa forma, a resposta dos governos petistas, tanto de Lula quando de Dilma, foi ceder às pressões conservadoras, negando direitos democráticos enquanto abriram terreno para o desenvolvimento dos ataques ao laicismo do Estado. Da mesma maneira que o PT não combateu os golpistas, tampouco barrou o avanço das intromissões religiosas sobre o Estado. Pelo contrário, enquanto a bancada da bíblia defendida pautas abertamente regressivas, Dilma inaugurava ao lado de Edir Macedo o Templo de Salomão, dizendo que apesar do Estado brasileiro ser laico “cito o salmo de Davi, que ‘Feliz é a nação cujo Deus é o senhor’”. Dilma proferiu discursos similares ao lado do Pastor Everaldo, presidente do PSC, na Assembleia de Deus. O mesmo pastor que acaba de ser preso na operação que depôs o reacionário governador do estado do Rio de Janeiro, Wilson Witzel acusado de lavagem de dinheiro.

Agora, como já é parte de sua tradição, o PT na voz de Lula orienta-se na busca por ampliar sua base entre os evangélicos, adaptando o discurso e a ideologia para esse fim. Em abril deste ano realizou-se o Encontro de Evangélicos do PT marcado por discursos de que o “evangelho é revolucionário” por parte de Benedita da Silva, candidata a prefeitura do Rio de Janeiro, e de declarações de Gleisi Hofman da necessidade de aumentar as candidaturas de pessoas evangélicas no PT, “para que possam lutar por suas bandeiras, assim como temos espaço para as mulheres lutarem pelas delas, os negros lutarem pelas deles e todos os outros”. Uma reprodução da mesma lógica de conciliar o irreconciliável que marca o trajeto de derrotas que o PT representa.

Breve conclusão

É certo que grande parte da classe trabalhadora brasileira é religiosa, e integram agremiações católicas ou neopentecostais. Como assinalava Marx na Crítica à Filosofia do Direito de Hegel, a religião é “a realização fantástica da essência humana por que a essência humana carece de realidade concreta. (...) A miséria religiosa é, de um lado, a expressão da miséria real e, de outro, o protesto contra ela. A religião é o soluço da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação carente de espirito”. Posto de outra forma, a religião emana das contradições que constituem o capitalismo, e só poderá desaparecer quando essas mesmas bases forem superadas definitivamente.

No entanto, como apontou Gramsci em sua reflexão sobre o Estado integral, as igrejas são parte de articulação do consenso que sustenta a hegemonia capitalista. E a forma concreta com a qual essa tem se dado no Brasil é crescentemente regressiva, dado o fortalecimento da bancada da bíblia e o consequente ataque à laicidade do Estado. Mas a sustentação que as igrejas evangélicas e suas bancadas parlamentares deram ao golpe de 2016, e à ascensão da ultradireita, não pode levar à adoção de uma posição oportunista por parte da esquerda em relação às crenças religiosas. A melhor maneira de disputar suas bases não é ter pastores de esquerda, mas organizar as amplas massas de trabalhadores e do povo para lutar pelas suas demandas.

Visto da atualidade isso pode parecer uma impossibilidade. No entanto, o capitalismo jamais cessa de constituir as contradições sociais e econômicas que abrem o caminho para o questionamento da ordem vigente. Basta lembrar que a maior revolução da história da humanidade, a Revolução Russa de 1917 foi protagonizada por uma ampla massa de trabalhadores e camponeses que em sua maioria era religiosa. Isso não impediu que no calor da luta de classes, tendo à frente sua vanguarda organizada pelos bolcheviques, tomassem o poder.

Nas condições concretas que atuamos no Brasil defender o caráter laico do Estado é algo elementar. Mas não devemos nos deter aí, pois um Estado laico por si só não basta, é preciso que ele deixe de ser capitalista. Disso deriva que ao contrário de adaptar-se à ação política de qualquer uma das vertentes religiosas, sejam essas neopentecostais, cristãs ou mesmo provenientes de outras crenças, lançando candidaturas com este perfil ainda que se declaram como “progressistas”, o que a esquerda precisa avançar em estabelecer são respostas anticapitalistas e revolucionárias às crises econômica, política, social e sanitária que assolam o conjunto dos trabalhadores e do povo, independentemente de suas crenças.


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FOOTNOTES

[1GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, v. 1, 2000-2001. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, v. 2, 2000. p. 20-21.

[2Idem, 54.

[3GONÇALVES, Rafael. “O envolvimento de parlamentares evangélicos em casos de corrupção na Câmara dos Deputados”, Revista Sapiência: Sociedade, Saberes e Práticas Educacionais V.6, Dossiê: Religiões e Religiosidades na Modernidade Tardia, p. 300-332, Dez., 2017. ISSN 2238-3565
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Simone Ishibashi

Rio de Janeiro
Editora da revista Ideias de Esquerda e Doutora em Economia Política Internacional pela UFRJ.
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