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FLIP | Diário da Flip – primeiro dia: “É triste não ser branco”

Essa sequência de textos sobre o que foram os – meus – dias na Flip não se pretende a uma crítica, artigo de opinião; mas também não é crônica ou diário pessoal – é no fim talvez um pouco de tudo isso na tentativa imanente de dividir minhas experiências com quem não foi a festa, e uma conversa, uma troca de sensações aos que também viveram esses dias.

Gabriela FarrabrásSão Paulo | @gabriela_eagle

terça-feira 15 de agosto de 2017 | Edição do dia

De São Paulo a Paraty seis horas de viagem, dividindo o observar da paisagem, o mar surgindo na beira da estrada com a leitura dos zines Mais Pornô, Por favor! #3 e #5, que merecem um texto apenas a eles, assim como também o Tiraspola e Desaparecimentos de Ana Kiffer que devorei encantada – por enquanto ficam aqui as dicas de leitura: procurem saber!

Lima Barreto: triste visionário

A abertura da Flip na quarta-feira, 26 de junho.

Joselia Aguiar, curadora da Flip deste ano – que merece e terá ao longo desses textos todos os elogios possíveis, pois com coragem tornou essa Flip um marco - abriu a festa dizendo que Lima Barreto podia nos levar a compreender melhor o nosso país.

A mesa de abertura foi uma apresentação da vida de Lima Barreto por Lilia Schwarz e Lázaro Ramos – e emocionou. Emocionou porque a história de Lima é triste e tão parecida com a de tantos brasileiros. A vida de Lima Barreto continua a se repetir em cada negro no Brasil. Sua história é, ao mesmo tempo, tão antiga e recente. Lima profetizou que escreveria a história da escravidão negra no Brasil, e escreveu em sua obra, e em sua vida.

As palavras de Lima Barreto em seu diário pessoal ou em sua obra ganharam voz e corpo – voz e corpo negro - na brilhante interpretação de Lázaro Ramos. Não sabia se o que eu via era Lázaro ou Lima – no último dia Conceição Evaristo fez a mesma declaração e o ator também disse que em alguns momentos não sabia diferenciar o que era ele e o que era o escritor.

Lima Barreto era neto por parte materna e paterna de negros escravizados. Quando tinha sete anos a escravidão foi abolida no Brasil. Ele pensou “ Livre! Livre!”. Mas observando sua história, a triste realidade é que não há grande diferença entre a vida do negro neto de escravos alforriados e os negros que vivem hoje. O próprio Lima, a época, declarou “Como estamos longe disso”.

Sua mãe morre por tuberculose, seu pai foi diagnosticado como louco, neurastenia (um termo genérico dado a todos) – em uma época em que todos os excedentes, todos aqueles que não eram úteis a sociedade eram diagnosticados como loucos -, Lima se tornou o arrimo de família com seu emprego de funcionário público. Não ia bem na escola politécnica e largou a faculdade. Tendo que se dividir entre o trabalho e sua tragédia doméstica – como se referia ao seu pai – logo caiu no alcoolismo, coisa que o assombrava desde jovem e o levou a escrever em seu diário que não devia beber excesso de coisa alguma.

Mas não sai da escola politécnica sem fazer a crítica de que filhos, sobrinhos de poderosos, todos esses se formam na escola mesmo sendo imbecis e vão para vida se tornarem donos de banco, políticos, militares, prontos para dificultarem a vida dos outros, mesmo não tendo maior capacidade que seus subalternos.

Lima escreve diversos artigos e crônicas em jornais, revista, organiza sua própria revista, onde publica os primeiros capítulos de “Recordações do escrivão Isaias Caminha”; obra que contém um trecho duro em que descreve como o personagem se reconhece negro. A passagem narrada é algo que triste continua a se repetir até hoje, onde nós negros nos vemos negros ao sofrermos racismo. O personagem de Lima Barreto conta que parou a uma padaria, se serviu, e reclamou do seu troco que demorava a vir, o atendente se indigna e diz “aqui não se rouba, não’; ao seu lado um rapazola aloirado reclama também seu troco e é educadamente atendido, a diferença de tratamento logo faz o personagem notar sua condição de negro. Emocionou, e hoje ao lembrar ainda emociona a leitura de Lázaro sobre tal passagem, emociona, magoa porque nos reconhecemos em tal narrativa.

E tal narrativa ocorre também a Lima, que descreve em seu diário da vez que foi ver a esquadrilha americana passar pelo rio de janeiro, todos subiam a bordo para ver, a ninguém era pedido convite, mas a Lima foi pedido; ele declarou então “Aborreci-me. É triste não ser branco!”

Nessa época Lima escreve em seu diário pensamentos suicidas, que diz que apenas não comete pelo costume de viver, e que apenas o álcool lhe dá prazer. As lágrimas vieram novamente aos olhos.

As obras de Lima Barreto possuem grande crítica a burguesia brasileira, onde qualquer um podia ser doutor, aos políticos que nada sabiam de política e só queriam o poder e dinheiro. E todas as suas obras são duramente ignorados pela crítica ao que Lima responde que a única crítica que não o interessa é o silêncio.

Hoje conseguimos analisar que a obra de Lima Barreto não foi ignorada por ser pequena, mas sim, por suas críticas, por ele ser negro, por não ser doutor ou pertencer as classes de cima.

Em 1914 Lima é internado no manicômio por alcoolismo como branco, quer dizer, funcionário público, então branco. É internado na área pandemônio onde é tratado como todos os outros internos com ópio. Nota e descreve que todos os internos são negros – o que torna claro o perfil dos manicômios serem lugares de descarte daquilo que a sociedade não quer, os negros. “No manicômio olho de lado a lado e tudo é nergo!”

É depois afastado do trabalho no fim do mesmo ano com o mesmo diagnóstico que o pai, neurastenia. Volta ao trabalho no dia 31 de janeiro do ano seguinte e passa a escrever mais do que nunca. Publica sua maior obra “Triste fim de Policarpo Quaresma” em 1916, que é recebido também com frieza pela crítica. Lima escreve em seu diário: “Policarpo Quaresma ideia que mata, decepção, pessimismo. ” Em junho é novamente afastado do trabalho por neurastenia.

Em junho de 1917 é internado no hospital do exército após uma bebedeira.

Em 1918 se candidata a ABL, depois retira a candidatura, fala mal da ABL, e repete esse ciclo algumas outras vezes.

Em 1919 é internado no manicômio novamente, agora aposentado é registrado como pardo dessa vez e tratado outra vez com ópio. O diretor do manicômio, também negro, lhe dá lápis e papel, onde o autor narra uma rebelião dos pacientes contra os maus tratos recebidos. Suas anotações dessa época serão base para o romance inconcluso “Cemitério dos Vivos”, que tratará de uma crítica muito dura ao sistema manicomial brasileiro e as descriminações de cor realizadas dentro dele.

Lima escreve que sabe que não é louco, mas que o álcool e sua condição financeira nos últimos 20 anos o leva a tal comportamento, e que a intromissão da polícia que o coloca no manicômio o aborrece. Declara junto com esses escritos: “A literatura ou me mata ou me dá o que peço dela!”

Em fevereiro de 1920 recebe alta e se torna recluso em sua casa. Em novembro de 1922 morre um dia e meio antes de seu pai, com apenas 41 anos de idade. Lima, nas palavras de Lilia, viveu entre dois mundos e conseguiu uni-los, entre a periferia e o centro, entre o Rio de Janeiro e o Brasil.

Lima teve uma recepção demorada, foi rotulado de pré-modernista, uma literatura que não foi e também não era. Só em 1952 tem sua vida estudada e uma biografia lançada por Francisco de Assis Barbosa, que ainda fez mais, e junto de sua irmã Evangelina dá início a publicação da obra original de Lima Barreto em 17 volumes.

Lilia coloca, que quem sabe agora onde estamos finalmente discutindo as questões democráticas poderemos dar o real valor a obra de Lima Barreto buscando uma sociedade sem racismo, sem feminicidios, sem diferenças. E eu acrescento, que agora com essa sensação de que vivemos uma época de tantos retrocessos, onde a extrema direita sai a rua se declarando supremacistas brancos, a obra de Lima e sua vida se torna ainda mais importante, ainda sua obra é – para o bem e para o mal – presente e necessária. E como Lima declarou a arte é importante, pois nos faz compreender o universo, nos abre perspectiva para sonhos e desejos, nos faz tudo compreender, reforça nosso natural sentimento de solidariedade, realçando os nossos defeitos e qualidades, a arte tem de nos levar a nos tolerarmos e nos compreendermos, o futuro da literatura é tornar sensível.

Lilia e Lázaro ao final da abertura foram para a tenda de onde assistíamos tudo do telão, com o público gritando “Fora Temer”, o ator declarou: “Se Lima Barreto aqui estivesse também gritaria ‘Fora Temer’”




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