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Faz tempo que o 8M deixou de ser uma data a mais para se tornar um dia mais parecido com os dias que deram origem ao Dia Internacional da Mulher: luta e mobilização. Confira o editorial do “El Círculo Rojo”, programa do La Izquierda Diario que é transmitido aos domingos.

Celeste MurilloArgentina | @rompe_teclas

segunda-feira 9 de março de 2020 | Edição do dia

Nenhum dia 8 de março é semelhante ao anterior. Faz tempo que deixou de ser uma data formal do calendário para se tornar um dia mais parecido com os dias que deram origem ao Dia Internacional da Mulher: luta e mobilização.

Escute completo aqui:

Este ano, os protestos começaram com uma mobilização que ultrapassou um milhão de pessoas na Plaza de la Dignidad, em Santiago, Chile. Não é coincidência: os estudantes secundaristas que invadiram o metrô de Santiago em outubro de 2019 se multiplicaram por milhares no dia da luta contra a violência machista, manifestaram-se contra os abusos sexuais das forças repressivas, disseram que o estuprador “eres tu” [famosa performance denunciando a violência machista] e levaram os seus lenços verdes à linha de frente da resistência contra o governo Piñera e o regime herdado da ditadura de Pinochet.

Hoje eles tentam canalizar os protestos para uma Assembleia Constituinte bem limitada, e a mobilização de mulheres no Chile confirma, à sua maneira e não sem contradições, que não há muro que separa as chamadas demandas "femininas" de outras quando tudo que antes parecia imutável agora está colocado em questão.

Em cada país se desenham cenários políticos, e em muitos o feminismo e o movimento das mulheres são atores políticos inevitáveis.

O presidente mexicano López Obrador sabe disso, desafiado pela fraca resposta do Estado, mas acima de tudo pelo desprezo que emanam as declarações de intenções gerais sobre feminicídios. No México, 11 mulheres são mortas todos os dias, a raiva se torna incendiária e põe em cheque até os que se dizem progressistas.

Os governos e regimes políticos sabem disso, como o espanhol, que ensaia a canalização institucional da mobilização de mulheres, tentando reduzi-la a leis e agendas, tirando os aspectos mais perigosos da crítica dessa verdadeira associação ilícita que existe entre o patriarcado e capitalismo.

Na Argentina, o fato de o anúncio de um novo debate sobre o aborto legal ser o mais esperado do discurso do presidente na abertura das sessões legislativas é uma imagem incontestável dessa relevância. É impossível arriscar um resultado, mas se estamos mais perto da legalização, é por causa da persistência das ruas, a única linguagem que o palácio entende. Não foi, não é e não será um presente de nenhum governo.

A espera do projeto anunciado, que ninguém conhece, nossos inimigos declarados já falaram:

● O chefe da Igreja Católica, Monsenhor Víctor Fernández, adiantou um pouco do que vimos hoje naquele ato político disfarçado de missa. A Igreja desencadeará sua guerra, e o acordo político entre o Papa Bergoglio e o governo de Alberto Fernández não é garantia de paz.
● O chefe dos senadores oficiais, José Mayans, já falou em assassinato e pena de morte.
● Os moderados, que disseram “não concordo, mas não quero mulheres presas”, como o deputado Eduardo Valdés, hoje pedem liberdade de ação no bloco majoritário da Frente de Todos para votarem contra.

Para nós, conquistar o direito de decidir sobre nossos corpos é vital e imprescindível. Porque não queremos ser cidadãs de segunda classe, mas sobretudo porque não toleramos que a maioria das mulheres que abortam em nosso país, que são trabalhadoras, pobres e jovens, tenham que arriscar suas vidas porque não podem pagar uma clandestinidade segura.

É um direito elementar pelo qual lutamos décadas atrás, pelo qual a maré verde argentina se tornou um símbolo além de nossas fronteiras e queremos que seja legal já.

Conquistá-lo seria um triunfo de todas as pessoas que exauriram dias e noites nessa luta, daqueles que sempre nos acompanharam e que se juntaram agora, daquelas que souberam ser poucas para que hoje sejamos muitas com a maioria da população do nosso lado.

Queremos vencer, mas não é nosso teto, a conquista do direito ao aborto legal é um ponto de partida: é o mínimo que exigimos das sociedades que ostentam o nome de democracia.

Nosso teto segue longe:
● Se uma mulher é morta a cada 23 horas por ser mulher
● Se 55% das pessoas que trabalham em condições de extrema precariedade são mulheres
● Se houver uma diferença salarial de 25%
● Se continuarmos sendo as mulheres que passam mais tempo nas tarefas de cuidados, não remuneradas e vinculadas ao nosso gênero por preconceitos patriarcais
● Se apenas 10% das trabalhadoras em idade de aposentadoria atendem aos requisitos necessários para isso e a maioria atinge apenas a aposentadoria mínima
● Também está longe enquanto houver transfeminicídios, enquanto Higui continuar sendo condenada por se defender contra a violência homossexual-transfóbica, enquanto a maioria das pessoas trans tem uma expectativa de vida que não excede 40 anos.

Faz muitos anos que o capitalismo sofistica seus modos para manter o necessário da opressão de gênero.

Ele se despiu de preconceitos como aquele que dizia que as mulheres são criaturas da casa quando ele precisou de nossa força de trabalho.

Ele modernizou sua imagem e suas palavras quando precisou apagar o fogo revolucionário das décadas de 1960 e 1970. Ele incorporou discursos, agendas e até direitos.

Uma minoria de mulheres entrou nos espaços de poder das classes dominantes.

Uma parte do feminismo apagou as críticas à sociedade de classes e se transformou assim num discurso dócil e digerível para as democracias que liquidavam os direitos trabalhistas e as conquistas trabalhistas das maiorias.

Nos disseram que éramos iguais, que tínhamos as mesmas oportunidades. Mas quando os governos adotaram a linguagem do teto de cristal, a maioria das mulheres vivia nos porões da precarização, dos baixos salários e da pobreza.

Enquanto a maioria permanece lá, nos porões, nenhum telhado nos conforma, seja do material que for. É por isso que não eximimos os governos de sua responsabilidade de sustentar as condições em que a desigualdade, a opressão e a violência sexista são reproduzidas.

Querem nos convencer de que é mais inteligente e eficaz lutar contra a opressão "desde dentro". Que nos contentemos com a paridade, as secretarias e os ministérios, como se não fosse indigno que a democracia tivesse esse nome por tanto tempo sem uma só mulher nos gabinetes e com minorias miseráveis nos parlamentos. E como se esses gabinetes hoje não aplicassem medidas em todo o mundo que dificultam a vida da maioria das mulheres.

Querem nos convencer de que a luta por nossa igualdade pode aceitar os contornos de uma sociedade desigual. Que nos contentemos em conquistar um direito importante para nós, enquanto todos os dias são privilegiados os interesses dos credores de uma dívida, que é ilegal e ilegítima, enquanto a maioria das aposentadas e aposentados vive na pobreza.

Ver também: [PODCAST] Feminismo & Marxismo - (Extra) História do 8 de março

A vitalidade do movimento de mulheres é que não somos poucas as que não se conformam.

Queremos vencer, queremos conquistar os direitos que hoje nos são negados. Mas isso não pode significar silenciar as críticas ou debates que foram, são e farão parte de qualquer movimento que lute contra a opressão.

Nossos inimigos das igrejas, a direita conservadora nos blocos majoritários, todos já mostraram suas cartas. Temos que escolher as nossas.

Exigir tudo: por que não parar o país se eles ameaçarem rejeitar o aborto legal novamente? Por que as escolas não são esvaziadas se a maioria das pessoas que ministra aulas não tem acesso ao direito básico de decidir sobre seu corpo? Por que os hospitais continuam funcionando se a maioria de suas trabalhadoras não consegue interromper a gravidez em condições seguras? Por que os metrôs andam, por que os alimentos são processados, por que os bancos trabalham? A vida dos trabalhadores vale tão pouco para os sindicatos? A vida das mulheres vale tão pouco?

As críticas, as perguntas e as exigências não impedirão que, quando chegar o momento em que seja lei, nos vejamos cara a cara nas ruas e saibamos com uma só mirada que a vitória é nossa.

Com essa vitória, teremos mais força para dizer "Nós vencemos, mas não basta", "Não estamos satisfeitas" e nos perguntar-nos: não apenas se é possível que exista capitalismo sem discriminação de gênero, mas também se essa é uma igualdade pela qual valha a pena lutar.




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