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OPINIÃO | Debate com Nahuel Moreno (II parte)

Ao defender que a passagem de um regime ditatorial para a democracia burguesa é uma revolução, mesmo quando imposta pela mobilização de massas, Moreno embeleza a democracia dos capitalistas, constrói ilusões na vanguarda dos trabalhadores, não compreende que apenas se modificou a configuração das formas através das quais a burguesia impõe sua dominação sobre o conjunto da sociedade.

quinta-feira 21 de janeiro de 2016 | 10:12

O estado burguês, forma de ditadura de classe.

É um equívoco entender qualquer transformação no estado ou no regime como revolucionária sem uma transformação nas bases sociais, na estrutura da sociedade, nas relações objetivas entre as classes, pois sem essas transformações o estado, independente das configurações que assume, das formas de regime através das quais se expressa, continua sendo essencialmente aquilo que era, instrumento da classe dominante para o exercício de seu poder sobre os dominados.

Se partirmos da concepção marxista sobre o estado, do qual o próprio Moreno parte, de que este, mesmo em sua forma mais democrática, mesmo na república burguesa mais livre, é ditadura da classe dominante, forma de imposição pela força de sua vontade política, não existe qualquer justificativa para que transformações no regime político, independente da forma com que aconteçam, sejam entendidas como revoluções e não como auto-reformas feitas pela classe dominante para garantir sua dominação. Pois democracia burguesa, ditadura fascista, ditadura militar, etc, como formas de regime através dos quais os capitalistas impõem sua dominação compartem todas da mesma característica fundamental: serem formas da ditadura da burguesia sobre a classe operária.

E o erro não é apenas de classificação, não é um mero erro teórico, mesmo porque dentro de uma concepção marxista a teoria é instrumento, e portanto tem conseqüências, para a atuação prática. Ao colocar a passagem de um regime ditatorial para a democracia burguesa como uma revolução, mesmo quando imposta pela mobilização de massas, Moreno embeleza a democracia dos capitalistas, constrói ilusões na vanguarda dos trabalhadores, não compreende que apenas se modificou a configuração das formas através das quais a burguesia impõe sua dominação sobre o conjunto da sociedade.

A burguesia não impõe sua dominação, sua ditadura de classe, no vácuo, da maneira como quer, fruto apenas de sua vontade, mas dentro de uma correlação de forças determinada, onde as outras classes que compõe a sociedade são também agentes, que tem que ser ao mesmo tempo reprimidos e cooptados.

Os diferentes regimes através dos quais a burguesia configura sua ditadura de classe são portanto expressões de uma correlação de forças determinada da luta de classes, cada tipo de regime construído pelos capitalista sendo o que mais se adapta àquela conjuntura particular.

A democracia burguesa pode inclusive em diversas situações ser a forma de configuração de sua ditadura mais funcional, a que melhor se adapta as suas necessidades como classe dominante, pois permite maior abertura para os conflitos no interior de suas própria frações de classe e a construção de novas alianças entre essas frações, com as mudanças que ocorrem dentro delas, uma cooptação mais efetiva dos setores médios e pequeno-burgueses da sociedade, uma maior capacidade de desviar as lutas dos trabalhadores; em suma, a democracia como forma de regime é aquela mais adaptada à burguesia para que ela exerça sua hegemonia sobre o conjunto da sociedade, sendo as formas abertamente ditatoriais de dominação reservadas para os momentos de agudização exasperada dos conflitos, arma de guerra civil dos capitalistas contra a mobilização dos trabalhadores.

Isso evidentemente não quer dizer que os revolucionários não devam lutar por um alargamento o maior possível das liberdades democráticas mesmo sob a dominação da burguesia, que toda luta por demandas democráticas, mesmo que formais, seja um desvio da luta efetivas dos trabalhadores. Debateremos essa questão mais a fundo abaixo, quando tratarmos das conseqüências práticas para os revolucionários desses equívocos teóricos, mas adiantamos que sim, os revolucionários devem lutar por demandas democráticas, mesmo as mais elementares e formais, que inclusive é essencial que o façam, seria um grande erro sectário evitar essas lutas, mas que isso não representa um desvio quando essas lutas táticas estão articuladas a uma perspectiva estratégica.

Revolução democrática, etapa distinta do processo revolucionário?

As revoluções são fruto dos profundos choques entre as classes sociais, expressão da exasperação dos conflitos, da crise das antigas formas de dominação capitalista, etc, e não expressão de um plano pré-concebido, orquestrado por pequenos grupos; do fato que os revolucionários agem de maneira consciente nesse momento de crise orgânica da hegemonia burguesa não decorre que impõe sua vontade de maneira livre, através de fórmulas tiradas da gaveta.

O processo revolucionário tem uma sua lógica própria e o papel de uma direção é reconhecer essa dinâmica particular desse fenômeno concreto para atuar sobre ele da maneira mais incisiva, mais aguda, podendo colocar sobre ele a marca de uma estratégia e um programa proletários. É nesse momento de crise orgânica da dominação burguesa que o conjunto dos setores oprimidos se tornam ainda mais permeáveis as idéias dos revolucionários e o conhecimento científico e objetivo dessa realidade é elemento central para que esses possam estender sua influência o máximo possível.

A agudização das lutas entre as classes que marca o processo revolucionário não acontece, portanto, dentro de uma correlação de forças escolhida de maneira livre pela vanguarda que atua no processo; o grau de abnegação e clareza com que as massas lutam, a própria influência que os revolucionários tem sobre o conjunto da classe, não são expressão de sua escolha subjetiva, mas refletem uma série de fatores, objetivos e subjetivos, que nem sempre podem ser influenciados diretamente pelos revolucionários (com isso de forma alguma quero negar o papel ativo da direção em buscar no momento de preparação anterior ligar-se o mais profunda e extensamente possível com o conjunto da classe, esclarecê-la com um programa e estratégia corretos, inflamá-la com sua abnegação na luta, etc, mas apenas marcar que as possibilidades dessa atuação estão submetidas a condições objetivas).

Quando se abre o processo revolucionário o partido do proletariado deve portanto saber reconhecer em quais condições objetivas se dá a luta, para poder traçar um plano tático que lhe permita realizar suas tarefas mais imediatas ligadas e submetidas a sua perspectiva estratégica. É evidente que a linha tática que deve seguir uma organização revolucionária se ela é uma organização de massas, com peso, influência e confiança do conjunto da classe trabalhadora é diferente da linha a ser seguida por uma pequena organização de propaganda, ainda incapaz de influenciar de maneira concreta os movimentos do proletariado em luta. É evidente também que as linhas táticas a serem seguidas são distintas em relação à forma com que se organiza o estado e o regime político (monárquico, republicano, democrático, ditatorial) através do qual os capitalistas configuram sua dominação, se o começo da luta se dá contra um estado monárquico ou um regime ditatorial, por exemplo, as demandas democráticas formais ganham maior peso, etc.

O erro que comete Moreno, assim, ao analisar os processos revolucionários que derrubam as ditaduras militares no Cone Sul não é reconhecer que por fruto das condições objetivas em que se dão essas lutas, do isolamento e da fraqueza ainda das organizações revolucionárias, da derrota sofrida anteriormente pelos trabalhadores, se imporia objetivamente um primeiro momento democrático do processo revolucionário, por conta que as massas que se levantavam não conseguiriam impor todo um programa e estratégia revolucionários de imediato e assim a burguesia conseguiria conter seu primeiro assalto dentro dessa trincheira democrática, e que como conseqüência disso os revolucionários deveriam ter um programa e uma tática para responder a esses anseios democráticos das massas (dentro de uma perspectiva revolucionária desde um primeiro momento, ligando isso a uma estratégia revolucionária).

Seu erro, que tem profundas conseqüências práticas, é estabelecer, teorizar, esse primeiro momento que se impõe objetivamente, pela correlação de forças concreta, como uma etapa marcadamente distinta, com uma lógica própria, que impõe um programa e uma estratégia próprios, para essa etapa de revolução democrática, e que se expressa numa separação entre programa e estratégia democrático e revolucionário, entre programa mínimo e máximo, rompendo assim com a lógica mesmo do programa de transição.

Era correto, portanto, que os revolucionários que atuavam naquele momento histórico específico expressassem uma série de demandas democráticas formais, inserissem essas demandas no programa do partido do proletariado, buscando assim hegemonizar todos os setores que lutavam pelas liberdades democráticas, mostrando, dessa forma, que são os trabalhadores os campeões na luta pela democracia, que é interesse direto do proletariado alagar o máximo possível essas liberdades mesmo dentro do estado burguês, não fazendo conceções ao sectarismo e ao infantilismo ultra-esquerdista, combatendo-os diretamente, inclusive. Mas essa defesa e luta pelas demandas democráticas formais só ganha um sentido revolucionário, proletário, quando ligadas intimamente as demandas transitórias, que desde um primeiro momento se chocam com as estruturas da sociedade capitalista. A habilidade de uma direção revolucionária, do estado maior dos trabalhadores na sua luta por emancipação, é exatamente o saber ligar as questões mais imediatas e mais sentidas, de forma mais concreta e direta, pelos trabalhadores a necessidade de que eles se choquem e superem as bases da sociedade mesma que cria essas contradições.

Vitórias táticas e objetivos estratégicos

Os processos de redemocratização dos regimes políticos que aconteceram na América do Sul durante os ano 80 foram certamente importantes vitórias táticas da classe trabalhadora, demonstrações se sua força social e de sua capacidade de através da mobilização, mesmo sem uma direção consciente, impor uma nova correlação de forças para a burguesia. Mas ao mesmo tempo ao não conseguir ir além dessa posição tática conquistada, não impor uma derrota estratégica à burguesia, permitiu a reorganização do exército inimigo que a partir disso iniciou uma contra-ofensiva brutal com todo a onda neo-liberal que atravessou a década de 90, com seus ataques a uma série de direitos históricos dos trabalhadores.

Esse fato coloca a questão da relação entre vitórias táticas e objetivos estratégicos, entre a perda de posições da burguesia em uma determinada luta e sua capacidade de desviar processos mais agudos de mobilização para dentro de formas “democráticas” de sua dominação.

Aprofundando a analogia muitas vezes utilizada aqui com os conceitos militares, nesse caso temos que pensar a relação entre tempo e espaço no campo de batalha militar e como essa relação se dá no terreno político, na luta de classes. No campo de batalha frente a desorganização do seu exército, a fraqueza de suas linha de comunicação, a força do ataque inimigo sobre aquele ponto imediato, etc, pode ser do interesse do comando militar ceder aquele terreno, aquela posição tática, aquela trincheira, para se poder reorganizar suas tropas; a isso chama-se a troca de espaço por tempo, ou seja, se troca o espaço perdido no campo de batalha, a posição tática imediata, pelo tempo para reorganização de suas tropas, para a escolha de um terreno mais propício para a batalha, etc.

No terreno político, na luta de classes, a mesma tática pode ser usada pela classe dominante frente a uma mobilização muito ampla dos trabalhadores, quando num momento imediato ela é incapaz de responder essa mobilização com um choque direto, com medidas simplesmente repressivas; um dos movimentos que sempre fizeram os burgueses em situações como essa foi permitir conceções, conquistas de posição pelo proletariado, que não afetassem diretamente seus interesses e, desviando os processos de mobilização, permitissem sua reorganização para que num momento posterior eles pudessem desferir sua contra ofensiva sobre os trabalhadores.

Assim, a conquista de uma posição tática pelo atacante, tanto no campo de batalha quanto no terreno político, é expressão de um determinado equilíbrio na correlação de forças em que nem o primeiro consegue impor de imediato seu objetivo estratégico nem o defensor consegue repelir a ofensiva, tendo assim que ceder um determinado espaço ou posição.

Agora, essa conquista de posição tática é uma vantagem para o atacante ou para o defensor? Isso depende de uma série de fatores, cujo principal é a capacidade da direção, do estado maior de cada uma das partes em disputa de utilizar a nova correlação de forças criada dentro de um plano estratégico mais amplo.

Num primeiro momento a vitória que permite um avanço na posição, um avanço sobre o terreno do inimigo, tende a ser uma vantagem para o atacante, por conta do fator moral, da moralização que tem as tropas vencedoras e da desmoralização que sofrem as derrotadas. O proletariado que consegue impor uma derrota à burguesia ao reconquistar a democracia no cone sul através de suas mobilizações de massa, greves, etc, e assim hegemonizar amplos setores dos oprimidos esta certamente muito moralizado, confiante na sua capacidade de impor sua vontade política ao conjunto da sociedade e ser o representante de todos os setores oprimidos, mas essa vantagem moral só se transforma em força material na luta se existe uma direção revolucionária que mostra que essa vitória é só ainda uma meia-vitória, que a vitória efetiva ainda esta por vir, que essa primeira demonstração de força é importante porque mostra que mobilizados podemos impor nosso programa à burguesia, mas que ainda falta clareza de qual é esse programa e com qual estratégia vamos conseguir torná-lo realidade.

Se pela falta de um objetivo estratégico claro, pela falta de uma direção consciente, a conquista dessa trincheira, dessa posição tática, é vista como um fim em si mesmo, se não se aproveita a desorganização e desmoralização do exército inimigo para lhe impor uma derrota efetivamente estratégica, a vitória tática representa apenas um desvio do processo revolucionário, não uma revolução democrática vitoriosa, mas uma revolução socialista abortada, que inclusive permitirá num momento seguinte, com a reorganização do inimigo, um contra ataque que retire os direitos conquistados (o exemplo concreto do neoliberalismo, como contra-ofensiva da burguesia durante os anos 90).

É nesse sentido que um partido que se pretende ser vanguarda consciente dos trabalhadores em sua luta deve partir de uma estratégia que tenha como base a teoria da revolução permanente e como programa o programa de transição, como forma de combater as pressões objetivas que certamente existirão para a adaptação do programa a “primeiras etapas”, etc. Uma estratégia que desde um primeiro momento seja a da ditadura do proletariado, para que assim possa ligar todas as demandas mais imediatas, diretas, dos trabalhadores e dos oprimidos a sua luta mais geral, conseguindo assim articular cada uma das vitórias parciais a um plano de luta de conjunto.

Continua...


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