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SEMANÁRIO

Da hegemonia das reformas a reforma da hegemonia

Iuri Tonelo

Da hegemonia das reformas a reforma da hegemonia

Iuri Tonelo

Essa semana voltaram à cena e aos debates políticos duas novas reformas de grande importância para a estrutura macroeconômica brasileira: o arcabouço fiscal e a reforma tributária - a primeira com votação prevista para agosto, a segunda aprovada em dois turnos na câmara, e agora passará pelo senado. Mas o significado dessas reformas extrapola muito a dimensão da política econômica. A unidade do grande capital, congresso e governo federal em torno delas expressa que podem estar ocorrendo movimentos que buscam dar novas feições ao regime político, que tiveram como último capítulo as propostas concretas de adesão do centrão ao governo Lula. Ainda que com diferenças, eventos que ocorreram nos primeiros governos petistas, nas aproximações e distanciamentos, podem ser ilustrativos do novo momento político e das armadilhas que estão colocadas. Compreender essa mudança, e como vai se assentando o jogo de forças, tem importância decisiva para pensarmos a emergência de uma esquerda socialista com independência do governo para enfrentar as reformas em curso e lutar por uma perspectiva anticapitalista

Sinais trocados

A forma de hegemonia que se constituiu no começo do governo Lula-Alckmin em 2023 nesses meses dava a impressão de um regime que mantinha sua coesão numa espécie de “hegemonia reativa”, ou seja, um governo e forças do regime que, embora com espectros políticos distintos se unificam no ponto comum de reagir às “ameaças bolsonaristas”. Isso teve expressão desde as eleições, quando se conformou a frente ampla, e deu continuidade no começo do governo, quando das ações bolsonaristas do 8J, em que a “defesa da democracia” era a palavra de ordem para unificar desde setores ultraneoliberais do capital financeiro até a esquerda institucional.

Aqui vale retomarmos o plano histórico para valermos de pontos de comparação para a compreensão do presente. A diferença com o primeiro governo Lula em 2002 no que tange a relação de forças tem sido muito acentuada no debate, mas vale a pena pensarmos isso à luz da análise do regime político: o primeiro governo se deu a partir de um contexto de jornadas revolucionárias na América Latina (Argentina, Bolívia, Venezuela), e a subida de Lula ao poder atuava como uma espécie de “frente popular preventiva”, ou seja, a conformação de um governo de conciliação de classes, que coloca uma figura de origem operária na presidência e um empresário (do partido atual de Bolsonaro, o PL) na vice, com o intuito de conter qualquer contaminação política dos arredores latino-americanos em nosso país, que pudesse levar a um quadro maior de instabilidade na região.

Até aqui, contrapondo os dois momentos, é importante observar que no tabuleiro político os sinais estão trocados: o novo governo de frente ampla vem após um golpe institucional, com sua obra econômica de reformas, governo Bolsonaro e uma pandemia. Disso decorre que até aqui a justificativa da “defesa da democracia” funcionava como o avalizador de qualquer medida governamental, mesmo as neoliberais – eram os efeitos políticos do período de hegemonia reativa, que se articulava e tinha como ponto de coesão (muitas vezes mais em palavras que em atos) a “luta contra o fascismo”.

As novas reformas e seus efeitos

Num país profundamente dividido há poucos meses, chamaria a atenção de um analista estrangeiro ou um comentarista apressado a expressão da “unidade nacional” para a aprovação da reforma tributária. Banqueiros, latifundiários, industriais, reis e rainhas, o governo federal e um setor da esquerda institucional comemoraram em uníssono a aprovação da reforma.

Voltando ao primeiro governo Lula, os efeitos de contexto de sinais trocados afetam também o esquema da conciliação de classes, a equação já não é mais a mesma. Agora não se trata mais, como nos governos anteriores do PT, de medidas que estão sendo pressionadas apenas por um agente neoliberal exterior ao governo que, diante da correlação de forças desfavorável, imporia a necessidade da aprovação de reformas, buscando acumular forças para em uma nova correlação tentar outras medidas (um discurso petista clássico dos anos 2000). Agora a formulação da política macroeconômica nasce de dentro do governo: Fernando Haddad é a cabeça da reforma tributária, que não modifica em nada o sistema regressivo de impostos (sobre o consumo), em que a população fica com o grosso do peso dos impostos, apenas azeita o metabolismo tributário do capital. Mas junto com essa reforma veio outra: Lula-Alckmin, representado pelo seu ministro da fazenda, também são os arquitetos do chamado arcabouço fiscal, um verdadeiro teto de gastos 2.0, a velha fórmula do consenso de Washington de “responsabilidade fiscal”. E também como no outro caso, e inclusive como parte do pacote macroeconômico, tem a melhor acolhida entre congressista, empresários e banqueiros.

Dos ecos do passado, nos lembramos do ano de 2003. Lula em seu primeiro governo teve que mostrar que não só de promessas se comprova suas intenções, que não bastava a Carta ao povo brasileiro, e então começou seu governo com duas reformas, a da previdência e a universitária.

Qual o resultado? Um grande aceno ao capital, que resultou em anos de governo do PT, mas com o preço de processos de rupturas à esquerda, que levaram a formação do PSOL e uma nova central sindical, a Conlutas - em que pese as debilidades claras que se mostraram no PSOL como um partido amplo sem estratégia e por outro lado na Conlutas ser minoritária e dirigida pelo PSTU (que anos depois teria lamentável posição diante do golpe institucional). Os acenos ao grande capital se mantiveram tal qual o velho modelo, mas a ausência não só de rupturas, mas da própria conformação de uma oposição de esquerda ao governo é um componente importante das feições de transformação no regime. Nos detenhamos com mais calma nesse ponto.

Reformas da hegemonia, despolarização planificada

Como pontuamos, na comparação com as primeiras reformas do primeiro governo Lula, a primeira coisa a se observar é que, ao contrário daquele momento, ao invés de estar incrementando uma oposição de esquerda, agora o PSOL é parte ativa da construção da estabilidade relativa de um regime político que assume uma forma – a despeito do período reacionário de Bolsonaro, mas sem que com isso tenhamos que deixar de analisar com clareza a situação - montada em políticas macroeconômicas categoricamente neoliberais, depois de legitimar antigos atores do golpe institucional como novos “defensores da democracia”.

Isso significa um grande triunfo de Lula em sua versão “varguista” da Frente ampla. Cada vez menos é Lula ex-operário, e cada vez mais o “melhor gestor”, que faz poucos gestos para manter a burocracia sindical e a esquerda institucional debaixo de suas asas, e muitos gestos para assentar novas bases de confiança com o grande capital. Quando figuras como Guilherme Boulos, do PSOL, comemoram com orgulho que passou uma reforma que isenta ainda mais as Igrejas evangélicas de impostos, agrada banqueiros e industriais, mas “agora está taxando jatinhos e lanchas”, como se fosse uma grande conquista dos trabalhadores, é porque se existia qualquer horizonte de crítica anticapitalista ou socialista nesses setores ele se esvaiu completamente - e agrupamentos como o MES no PSOL se “absteve” na votação ou fazem “críticas”, mas sempre no tom certo de forma a se manterem sob disciplina de Boulos. Figuram apenas como a “ala esquerda” desse plano de boa gestão, das taxações adequadas, desburocratização e responsabilidade fiscal. Essa é a conquista estratégica que tem Lula para mostrar para o grande capital: reformas sem oposição de esquerda.

A contrapartida foi oferecida e endossada no “grande acordo” do regime: se a nova gestão macroeconômica vem de dentro do governo, podemos resguardar novamente a selvageria que levou às últimas reformas. Em outras palavras, Bolsonaro inelegível, pelas mãos daqueles que outrora fortaleceram sua candidatura a partir de todo golpismo institucional. A disciplina de Lula-Alckmin é tamanha (aliás é tão natural que Alckmin seja vice-presidente, Tebet esteja no planejamento e um longo etc), que não precisamos arriscar instabilidades. A burguesia conhece a máxima, em time que está ganhando, não se mexe.

O centrão cresce os olhos

Voltamos novamente ao passado, mas agora ao segundo mandato e ao que se convencionou chamar de lulismo. Antes da ampliação da base do segundo governo Lula veio o mensalão. O efeito foi rolar algumas cabeças do PT, a de José Dirceu a mais evidente. Entre os efeitos, que queremos destacar porque são ilustrativos, foi a incorporação do PMDB no governo. E uma base de governo muito mais ampliada, com o centrão dentro, resultou, num contexto de boom das commodities e fluxos de capital crescentes para o Brasil, em anos de estabilidade, que ficaram conhecidos como lulismo.

Agora não foi o mensalão; foram mais longe. Prenderam Lula por um tempo, disciplinaram o PT, soltaram os cachorros da reação de extrema-direita para governar o Brasil e eis que estávamos diante das novas condições da política (ditada, como sempre, pelo grande capital). E o retrocesso bem sucedido do governo Bolsonaro na consciência das massas e também na vanguarda colocou condições de “aceitar toda negociação”. O tabuleiro favorito de Lula, diga-se de passagem, pois suas habilidades de vender sonhos, mas na prática costurar acordos pragmáticos com a direita, tem se mostrado elevada ao longo das últimas décadas.

E qual o próximo capítulo? Do mensalão ao governo com PMDB de Michel Temer no passado, a sinfonia do presente recente passa pela prisão de Lula, eleição apertada com a Frente ampla contra Bolsonaro, manutenção de velhas reformas e aprovação de novas, para....governo com o centrão. Sim, a proposta já está claramente na mesa. Arthur Lira, esse reacionário sem limites durante o governo Bolsonaro, já lançou as cartas na mesa (ministério do desenvolvimento social, esportes, turismo, correios, caixa econômica, isso e aquilo).

De um lado, efetivamente o centrão percebe a “fortaleza” do governo federal, afinal, mostrou que segue aprovando reformas (sem tocar na reforma da previdência, trabalhista, no Novo ensino médio, nem falar qualquer questão estrutural do país, agrária, urbana, dívida pública, trabalho precário). Ao mesmo tempo faz isso num contexto que Bolsonaro se torna inelegível de um lado, e se bloqueia o terreno para a oposição de esquerda, ou seja, um prato feito para o centrão utilizar sua tática centenária de aprofundar a degeneração de um governo, qual seja: entrar nele.

É mais que evidente que isso não poderá resultar em uma estabilidade duradoura, pois não tem bases orgânicas na economia como nos anos do lulismo em um mundo marcado por uma guerra na Europa. E a ironia da história, ou a insistência de não se aprender nada com ela, é que Lula aceitará essa entrada, e estaremos num governo de frente-ampla com centrão. Que o governo siga esse caminho não surpreende nada, mas que a vanguarda socialista se resigne com “críticas” e endosse o governo, é mais que lamentável. Alguém realmente acredita que essa fórmula pode vingar para os trabalhadores e a população oprimida do país? Tem que ser muito otimista com o capitalismo brasileiro e sua democracia degradada para isso.

Ecos da miragem

Quando em novembro de 2009, um dos auges do lulismo, a revista britânica The economist soltou sua matéria “Brazil takes off” (O Brasil decola), com um cristo redentor como um foguete, num contexto que se falava de protagonismo internacional, empresas global players nacionais, planos nacionais de construção civil e grandes eventos, com Lula com uma popularidade de mais de 80%, poderiam ver no governo do PT uma grande força, mas a partir de uma análise marxista víamos o contrário, tudo isso aparecia como a construção de uma casa sem alicerces, uma enorme fragilidade.

O fundamento era de que as grandes questões estruturais do país foram relegadas a segundo plano, o que inclui o abandono da reforma agrária e urbana, uma arquitetura macroeconômica subserviente a pagar a dívida pública e subordinada ao capital estrangeiro, e expansões de empregos e renda baseados no trabalho precário e em mecanismos de crédito que não se sustentavam. Em suma, um governo com um fraco reformismo, e que assistia resignado se fortalecer em seus governos o agronegócio, a bancada evangélica, a bancada da bala e outras forças reacionárias, num jogo de alianças de governo que ia de Michel Temer até Paulo Maluf.

Daqui podemos pensar os contornos do esquema de regime que começa a ganhar feição no governo Lula-Alckmin. Da hegemonia reativa à hegemonia das reformas, um regime que pode despolarizar momentaneamente, retomar os velhos métodos do presidencialismo de coalizão com liberação recorde de emendas parlamentares, toma lá da cá com centrão, e um plano Safra recorde de 340 bilhões para agradar e conter momentaneamente o agronegócio. Em síntese, o caminho de alianças e conciliações que foi o grande responsável, estrategicamente, por abrir espaço para o golpe institucional e o crescimento da extrema-direita.

Nesse contexto, é crucial que retomemos os debates essas as lições do passado, particularmente no debate com a juventude, nas universidades e também nos locais de trabalho. Com a integração do PSOL ao governo, e pequenos grupos políticos de origem stalinista como UP e PCB não oferecem uma alternativa efetivamente à esquerda do governo (posto sua tradição de conciliação, sempre dispostos a se integrar), abre-se uma grande oportunidade para a esquerda socialista e revolucionária, que deve seguir numa grande denúncia do capitalismo brasileiro, os descaminhos da frente-ampla no país, a conformação desse regime subserviente às reformas e localizar os acontecimentos no marco de um contexto de guerra da Ucrânia, crises econômicas, greves gerais e rebeliões em outros partes do mundo.

Os ecos da miragem do lulismo de 2009 não devem de modo algum confundir a vanguarda socialista no presente momento, afinal, a fragilidade de um governo sem bases orgânicas econômicas para uma hegemonia maior é evidente, o contexto internacional é turbulento, a extrema-direita segue viva, e os métodos da frente ampla, ainda mais evidentes com a possível incorporação do centrão no governo, só podem conduzir, num prazo mais estendido e diante de novas turbulências, à catástrofe, no que depender dos “de cima”. Daqui que nossa aposta deve ser, insistentemente e de forma preparatória, na organização da juventude e dos trabalhadores, e numa ofensiva ideológica comunista, como parte de se preparar para os novos embates e a luta pelo futuro, num presente da cada vez mais evidente, pensando em termos históricos, de bancarrota capitalista.


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Iuri Tonelo

Recife
Sociólogo e professor. Um dos editores do semanário teórico do Ideias de Esquerda, do portal Esquerda Diário. Autor dos livros "No entanto, ela se move: a crise de 2008 e a nova dinâmica do capitalismo" e "A crise capitalista e suas formas". Atualmente é pesquisador na PPGS-UFPE
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