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Cultura: tradição e revolução (PARTE 3)

Afonso Machado

Cultura: tradição e revolução (PARTE 3)

Afonso Machado

Encarar de frente os obstáculos ideológicos para a organização e difusão da tradição cultural revolucionária, é um importante passo. Se faz necessário observar novamente o atual cenário da alienação, já mencionado na primeira parte deste artigo. Nos deparamos com trabalhadores que são suscetíveis aos discursos políticos autoritários. Vários são os trabalhadores que compactuam facilmente com as formas de negação da ciência num retrógrado movimento mental que vai da desconfiança frente ás vacinas contra o coronavírus e chega na afirmação de que a terra é plana. Esses mesmos trabalhadores que também acreditam na falácia de uma república de empreendedores e que “o fim dos tempos“ está próximo, vivem em grande dificuldade financeira. Se por um lado existem condições objetivas (materiais e sociais) que mostram a necessidade histórica dos explorados lutarem contra o sistema econômico e político estabelecido, faltam a esses mesmos explorados condições subjetivas para realizarem esta luta. A defesa da tradição dos oprimidos visa atuar precisamente no campo da subjetividade.

O trabalhador é politicamente desmemoriado porque, dentre outras razões, falta-lhe inclusive uma tradição de luta capaz de projetar as imagens da luta de classes na vida cultural. O que fazer se muitos trabalhadores da atualidade não sabem que são parte de uma classe oprimida? Lenin dizia que o proletariado sem organização não é nada e com organização é tudo. Esta afirmação reforça a necessidade ideológica de aprofundar, dentro das organizações políticas da esquerda, a produção e o debate que tratam da tradição cultural revolucionária; uma questão altamente relevante para a construção da consciência de classe. Ao pressupor um esforço militante em que o trabalhador está inserido na construção da sua própria organização política, que por sua vez se abre para práticas culturais, podemos intuir que do ponto de vista cognitivo o conhecimento da história da luta de classes não é simplesmente enciclopédico.

Obter uma relação qualitativa e não meramente quantitativa com o conhecimento histórico envolve diferenciar o ato de “decorar” do ato de “rememorar”. Decorar (datas, fatos, personagens, títulos de obras de arte, filosofia, literatura etc.) é um ato diletante em que as informações podem escorrer rapidamente para fora da cabeça. Já o ato de rememorar implica na internalização das informações, do conhecimento narrado. Para que as imagens da luta de classes sejam internalizadas pelo oprimido é preciso que elas façam sentido para ele: como nos ensina Benjamin, é preciso identificar-se com os oprimidos do passado para entregar-se á luta política pela emancipação dos oprimidos no presente. Este processo de identificação da classe trabalhadora do presente com as classes oprimidas do passado, não passa por uma simples questão sentimental. Os sentimentos (de empatia e indignação, por exemplo) não se separam de uma percepção histórica sobre o papel que as classes obreiras possuem na produção econômica: o peso do trabalho sobre as costas dos oprimidos de todas as eras, faz do olhar objetivo sobre a história uma experiência fundada na violência. Se atualmente a exploração do trabalho não implica necessariamente na produção de objetos físicos, mas também no processamento de informações como nos mostram os setores do capitalismo de serviços, o chamado “cyberproletário” necessita obviamente de uma formação histórica revolucionária.

É hora de rememorar... Existe um grito ensurdecedor de guerra nas senzalas das eras colonial e imperial da história do Brasil que não deixa os trabalhadores negros de hoje dormirem. Os escravos do passado enviam a encomenda política da resistência expressa na força da sua cultura e nos seus atos de revolta. É possível ouvir o silêncio quebrado nas fazendas localizadas na província de Minas Gerais, durante o ano de 1833: os cativos sublevados ameaçaram a ordem dos senhores com a Revolta de Carrancas. Podemos sentir ainda pelas ruas de Salvador a temperatura política elevada do ano de 1835: cerca de 600 negros rebeldes ameaçavam dominar a cultura dominante com a Revolta dos Malês. Partindo do Brasil da época das Regências poderíamos recuar para outros tempos e lugares, como o Egito antigo, encontrando durante a décima oitava dinastia dos faraós, revoltas populares que empalideceram o Estado teocrático. Se depois deste recuo histórico saltarmos para frente no tempo, passaremos por muitos outros episódios que testemunham conflitos de classe: as lutas entre exploradores e explorados pontuam a vida de cada época, em cada cultura. Nesta viagem política de séculos, as pilhas de cadáveres dos revoltosos aumentam a cada ano, resultando paradoxalmente em exemplos extremamente vivos para quem precisa de lembranças revolucionárias, ou seja, o atual proletariado.

Os trabalhadores de hoje que são tapeados pelas lorotas do Pejotismo e desejam ser algum dia “patrões”, deparam-se todas as noites com uma vigília de operários mortos em frente ás suas casas: são os operários que agitaram a cidade de São Paulo durante a Greve Geral de 1917, são os operários que lutaram nas ruas contra os integralistas, são os trabalhadores que foram torturados nos porões do Estado Novo e da ditadura militar. A partir destas imagens históricas, os trabalhadores da atualidade são desafiados a reconhecerem-se enquanto classe. O “novo proletariado” deve ser desafiado a pensar/sentir que a classe trabalhadora é a classe que através do socialismo poderá colocar um ponto final na tragédia iniciada com as primeiras civilizações, isto é, a tragédia expressa na história das sociedades de classes. Como se pode ver, as imagens dos oprimidos do passado possuem uma ligação poética e política com os trabalhadores dos dias de hoje. Experimentar essas conexões históricas requer o início de pesquisas que aprofundem procedimentos estéticos. O militante atual deve pesquisar maneiras de fazer com que adentrem pelo ano de 2021 as imagens revolucionárias de 1848, 1871, 1917... Forma revolucionária e conteúdo revolucionário são indissociáveis na disseminação das imagens da tradição dos oprimidos.

É precisamente o conceito de luta de classes o cerne que orienta a experiência da rememoração, que organiza o olhar que vai do presente para o passado e do passado para o presente. Estes cortes temporais que permitem fotografar conflitos de classe, transportam energias revolucionárias. A transmissão dialética das lutas/conflitos do passado não possuem barreiras temporais, territoriais e culturais: é possível que o trabalhador de hoje consiga ouvir no fundo dos tempos os apelos dos escravos de toda antiguidade grega e romana, dos camponeses das antigas sociedades do oriente, dos servos medievais, dos povos indígenas, africanos e asiáticos saqueados/explorados. Entendendo a cultura como um campo de guerra ideológica, a militância precisa inserir sistematicamente no cotidiano estas imagens históricas que desafiam a letargia no pensamento. Perante o complexo estado de alienação existente, a estratégia cultural da rememoração das lutas sociais do passado longínquo e do passado recente, podem permear o tempo livre do trabalhador: o texto escrito e a festividade, o filme e a peça de teatro, a pintura e a canção popular, a aula e o debate, constituem momentos de rememoração (evidentemente é necessário observar que, em tempos de pandemia, o texto escrito e os encontros online estão entre as poucas possibilidades de convivência).

Claro, é inevitável considerar o problema do acesso aos bens culturais, inclusive dos produtos culturais que exprimem o pensamento crítico. Dificuldades técnicas reveladoras da desigualdade econômica saltam aos olhos, já que em muitas áreas do Brasil o acesso á internet é efetivamente problemático, como comprovam muitos estudantes de origem proletária que não conseguiram no ano passado acompanhar as aulas. Sem se desvencilhar destas questões estruturais que caracterizam o subdesenvolvimento, existe também um outro aspecto do problema na transmissão da tradição revolucionária que passa pelo hábito. Na rotina dos espaços físicos e digitais por onde a cultura dominante é expressa, trabalhadores se habituaram com uma produção ideológica que realiza a naturalização das desigualdades, da miséria, do imperialismo, enfim dos crimes capitalistas. Mas não existe bloqueio ideológico que seja imbatível: não é possível fugir da dialética materialista. São as contradições sociais do presente que permitem a inserção das imagens da luta de classes na cultura.

Caminhar pela floresta dos documentos históricos que testemunham os patrimônios culturais da humanidade, envolve um método fundado nas necessidades políticas do presente. Para nos orientarmos nesta floresta a única trilha possível é a da luta de classes: as organizações políticas da esquerda abrangem os ambientes educacionais, os contextos editoriais, em que a cultura do passado é pensada a partir das lutas sociais, das negações das formas opressoras. De nada serve a chave marxista para aqueles que não desejam abrir as portas da história. Somente o proletariado organizado, herdeiro político de todos os oprimidos do passado e destinatário maior de suas realizações/experiências políticas, pode usar a chave do marxismo e orientar as massas com um programa político. Em termos culturais este proletariado necessita, num primeiro momento, de uma formação histórica/filosófica que possibilite interpretar e promover a tradição dos oprimidos. Da mesma maneira em que as ciências da natureza nos ajudam a entender o que é o coronavírus e o que precisa ser feito para controlar e erradicar a pandemia, o marxismo permite compreender as estruturas e o condicionamento material das sociedades, a nossa formação histórica e o que é necessário para libertar os oprimidos.


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