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Cultura: tradição e revolução (PARTE 1)

Afonso Machado

Cultura: tradição e revolução (PARTE 1)

Afonso Machado

IMAGEM: fotografia da Comuna de Paris de 1871

No complexo fluxo de imagens, sons e palavras que transitam ora verticalmente ora horizontalmente, a transmissão do conhecimento acumulado é um problema crucial do nosso tempo. Uma questão da maior gravidade na medida em que a consciência de classe dos trabalhadores está indubitavelmente ligada a ela. Um conhecimento revolucionário da realidade, a representação materialista da história, consiste sempre em dirigir um apelo à consciência da classe oprimida. É preciso admitir a enorme dificuldade para transmitir este conhecimento crítico no presente. Sabemos que não é pequeno o número de trabalhadores apartados da tradição revolucionária do movimento dos trabalhadores. Saber transmitir tradições revolucionárias, trabalhar com imagens da luta de classes, não envolve um problema acadêmico, mas uma necessidade política do presente.

Podemos imaginar o quanto foi politicamente importante para o proletariado russo em outubro de 1917 as imagens dos operários franceses tombados no esmagamento da Comuna de Paris de 1871. Aqueles que tomavam o Palácio de Inverno tinham a responsabilidade histórica de acertar as contas não apenas com o governo de Kerenski, mas com os carrascos dos exércitos francês e prussiano do século anterior: o sangue dos comunards fuzilados corria agora pelas veias dos bolcheviques. As trabalhadoras francesas arremessadas nas ruas por soldados covardes em 1871 eram simbolicamente reerguidas pelas mãos das trabalhadoras russas em 1917. Na dimensão cultural da Revolução permanente deve-se considerar a importância da percepção estética para realizar analogias históricas entre os episódios da luta de classes. Estas conexões entre a narrativa histórica e a luta política são realizadas através de imagens revolucionárias que precisam ser internalizadas pelo atual proletariado. Uma tarefa hercúlea para os trabalhadores militantes, visto que o conservadorismo e a ignorância são aliados naturais, sobretudo no Brasil de hoje.

Não é raro encontrarmos em nosso país trabalhadores que são alvos de um orquestrado bloqueio ideológico que impede a reflexão crítica. As forças políticas da extrema direita e do fundamentalismo religioso ainda atuam com grande projeção neste cenário. Dados religiosos se opõem através da surdez dos intolerantes e com a habilidade dos facínoras aos dados científicos. Desta operação irracionalista que ganha terreno ideológico com a carência cultural/educacional das massas, colhe-se a mais profunda ignorância: em plena luta pela vacinação contra o coronavírus existem trabalhadores que consideram o vírus como um “mosquito” e em nome de uma individualidade que vira as costas a qualquer interesse coletivo, nega a ciência. Em meio às crises da democracia burguesa no mundo, como atesta a recente invasão dos partidários do ex-presidente Trump ao Capitólio nos EUA , muitos trabalhadores apegam-se de modo fundamentalista às imagens bíblicas para compor narrativas em que as ovelhas, o pão, a maçã, os peixes e os desertos são em muitos casos utilizados para impedir uma reflexão objetiva sobre os problemas econômicos, políticos, étnicos e de gênero. Mas como combater o cenário da alienação perante a crise na transmissão do conhecimento? Frisamos aqui o âmbito do conhecimento da história. As tradições culturais de crítica e oposição, os documentos históricos portadores de experiências políticas revolucionárias, carregam em seus variados suportes energias libertadoras. Mas essas descargas elétricas não atingem em grande parte o proletariado, não geram luz ou energia entre os seus verdadeiros destinatários históricos.

Os trabalhadores previamente organizados, que portanto atuam dentro da esquerda, precisam lidar com o fato de que a transmissão da memória revolucionária não atinge as massas, não se dá plenamente onde ela poderia exercer um caráter político funcional. Canais de televisão por assinatura exibem filmes revolucionários do cinema soviético dos anos de 1920, livrarias vendem clássicos da literatura marxista. Tudo isto é muito bom, ajuda na divulgação de objetos culturais que existem enquanto antítese. Mas como fazer com que essa produção permeie a vida cultural dos trabalhadores e corresponda às suas necessidades ideológicas? Enquanto uma boa parte da classe média que teve acesso a livros e estudos não abre mão do seu gozo individualista e irresponsável em festas e consumismo conspícuo em época de pandemia, o proletariado segue politicamente desmemoriado e com homéricas falhas educacionais. Perante a agenda da história o que está em questão é como esses trabalhadores podem paralelamente à luta política apropriar-se da tradição revolucionária que poderá alimentá-los como sujeitos históricos.

Para realizar a efetiva apropriação da cultura, o proletariado deve tomar as rédeas da vida política. Portanto, a resposta cultural passa inevitavelmente pelas organizações políticas da classe trabalhadora. Evidentemente que não se trata de pegar uma varinha de condão e, ocupando os espaços da cultura com imagens revolucionárias, possibilitar que trabalhadores façam a revolução num passe de mágica. A história das revoluções nos ensina que estas ocorrem a partir de circunstâncias históricas excepcionais, em que as tensões entre classes chegam no auge e atiram a vida social e cultural para dentro da luta pelo poder: neste contexto ocorre uma profunda transformação psicológica das massas. Mas por que falar então em tradição revolucionária quando não se vive uma época revolucionária? A explicação passa pelo fato da consciência de classe ser historicamente construída. A educação socialista é um processo sistemático, diário, cujo esforço consiste em agir sobre a imaginação histórica e fortalecer intelectualmente os trabalhadores. Transmitir imagens das lutas do passado é fornecer material estético que inspira as lutas políticas do presente. Desse modo, mesmo quando o cometa da revolução não dá sinais de sua passagem, é preciso que a esquerda saiba problematizar os conceitos de tradição e cultura.

Em primeiro lugar devemos olhar mais cuidadosamente para a tradição dos oprimidos e constatar que a própria cultura popular em muitos casos a exprime segundo um caráter combativo. Seria um pleonasmo afirmar que nas festividades populares, nas danças que narram através do corpo costumes e acontecimentos do Brasil, se fazem presentes a resistência política de populações (negras e indígenas por exemplo). Existe nas narrativas de escritores periféricos e de cantadores de feiras das regiões agrestes do país, muito mais sobre a história da luta de classes no Brasil do que em trabalhos de historiadores austeros. Assim, quando a esquerda trata da cultura revolucionária e consequentemente da organização da tradição dos oprimidos, não se pode cair na imposição de um conhecimento “oficial“, num saber “superior“ que em última análise exprime o eixo ideológico de origem eurocêntrica e descarta formas não institucionalizadas de conhecimento.

Entretanto, nem todas as formas da cultura popular são revolucionárias ou pelo menos expressam a necessidade por transformações sociais e políticas. É neste sentido que o materialismo histórico, um pensamento de origem europeia, orienta as diferentes formas de narrar/expressar os combates dos oprimidos das mais variadas culturas, das mais variadas formações sociais. De onde vem esta validade universal do marxismo? Gostando ou não o capitalismo é um sistema que das suas origens no contexto europeu medieval até o presente impôs com extrema brutalidade interesses econômicos sobre as culturas do globo: das ferraduras dos cavalos que transportavam mercadorias para vilas e cidades medievais da Europa, passando pelas caravelas e chegando aos aviões a jato que atingem vastos territórios, as forças produtivas capitalistas se expandiram vertiginosamente segundo uma divisão internacional do trabalho. Os Estados da era do capitalismo comercial e posteriormente do capitalismo industrial, investiram igualmente em armamento e controle: dos canhões quinhentistas aos atuais drones, do colonialismo ao imperialismo, a burguesia submeteu diferentes modos de vida ao modo de produção capitalista. Os “mocinhos“ da civilização ocidental sempre falaram em nome de Deus, em nome da cultura, para legitimar o assassinato em massa, a violência expressa nas conquistas territoriais e na exploração do trabalho (escravo e assalariado). Ou seja, a expansão internacional capitalista possui um nítido caráter predatório . Disso constata-se que sendo o materialismo histórico a expressão mais bem acabada de crítica e luta contra o capitalismo, ele fornece em sua fisionomia internacionalista estratégias que fortalecem ideologicamente e politicamente os oprimidos de qualquer parte do planeta, sem qualquer espécie de prejuízo sobre suas peculiaridades culturais e tradições.

Veremos na segunda parte do presente artigo as possíveis maneiras como o marxismo pode contribuir com a construção e disseminação da tradição dos oprimidos. Nesta peleja ideológica será preciso frisar que o materialista histórico não deve falar propriamente em nome da cultura, mas sim contra a cultura.


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