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Uma resenha sobre a obra de Isaac Asimov | Cuba e as Cavernas de Aço - semelhanças e diferenças

Adriano FavarinMembro do Conselho Diretor de Base do Sintusp

segunda-feira 22 de dezembro de 2014 | 21:12

Há uma semana um amigo me presenteou com um livro de Isaac Asimov, “Cavernas de Aço”. Confesso que não conhecia Asimov e no momento achei que seria apenas um livro de ficção-científica, como qualquer outro. Logo após ler as primeiras páginas sobre Asimov já tive a certeza de que não seria apenas "um livro de ficção como qualquer outro". Isaac, nascido na Rússia em 1920, mas criado e naturalizado norte-americano a partir dos três anos de idade, foi um dos grandes impulsionadores da própria literatura de ficção-científica, sendo o pai do gênero da robótica e ainda transitando entre o espaço sideral e seres extra-terrestres. Sua criatividade embasada na sua formação de bioquímico e no seu visionarismo tecnológico se misturam com sua facilidade em desenvolver um romance policial – no caso de “Cavernas de Aço” – de extrema qualidade.

Ainda que valiosos, porém, não foram esses méritos que me motivaram a escrever uma crítica a sua obra. Resenhas que se aprofundam nesses meandros literários do grande Asimov, escritor, existem de monte na internet, e várias muito mais qualificadas do que qualquer uma que eu pudesse escrever. Notei, porém, que nenhuma dessas críticas traçava uma avaliação política dessa sua obra. Achei curioso esse fato, pois foram as analogias que pude ir traçando durante a leitura do romance com a conjuntura em que foi escrito que me apaixonaram profundamente pelo livro.

A conjuntura em que Asimov escreveu “Cavernas de Aço”

O livro foi escrito em 1953, ano da morte de Stálin. Stálin, que havia se imposto na direção do Partido Bolchevique e do governo da União Soviética (URSS) a partir de 1924, com a morte de Lenin, havia conseguido usurpar das massas trabalhadoras a revolução russa que elas haviam impulsionado sob a direção de Lenin e Trotsky. Para se equilibrar na contradição entre manter os privilégios burocráticos da sua ascensão ao poder político do Estado e de que esse poder se assentava em uma poderosa revolução social que planificara e socializara a economia na URSS, Stálin transformou a ditadura do proletariado em ditadura do partido único e na sua ditadura pessoal enquanto convertia, “na ideia ou na marra”, o povo russo e a grande maioria da esquerda mundial na teoria do “socialismo em um só país”.

Essa URSS, com a economia socializada e planificada, mas tendo um regime político ditatorial e burocrático, acabava de sair como a principal vitoriosa da Segunda Guera Mundial, e, por isso, mantinha um nível de legitimidade mundial assustador. Para facilitar essa aceitação, a única corrente internacional de oposição pela esquerda – a Quarta Internacional, dirigida por Trotsky – que não se curvara frente à teoria do “socialismo em um só país”, que defendia todo o avanço social da planificação econômica e não aceitava a usurpação da revolução pela implantação de um regime político ditatorial e burocrático, havia sido massacrada durante a Segunda Guerra, tinha perdido seu principal dirigente assassinado por agentes de Stálin e seus líderes atuais estavam em estado de confusão.

Nesse cenário, cujo pano de fundo é a Guerra Fria, em que o capitalismo imperialista (simbolizado pelos EUA) e este “socialismo” burocrático (simbolizado pela URSS) disputavam a hegemonia e as zonas de influência mundial, se dá início às lutas políticas internas à própria URSS a caminho da restauração do capitalismo. É nessa complexa teia de interesses e relações políticas e sistemas sociais que Isaac Asimov vai escrever “Cavernas de Aço”, fazendo dessa obra muito mais do que uma ficção-científica com a inclusão de robôs e reflexões filosóficas sobre as relações entre o ser humano, a natureza, o desenvolvimento da tecnologia e o futuro da humanidade...

A conjuntura ficcional na qual se desenvolve a trama em “Cavernas de Aço”

O contexto ficcional no qual se passa a trama do livro esta envolvido por uma disputa de interesses políticos entre a Terra com os Mundos Exteriores. Com bastante riqueza o livro vai apresentando as tecnologias ficcionais e futuristas de uma maneira que também nos apresenta o regime social desta Terra de 5 milênios (um evidente regime socialista burocratizado). Essa Terra, que há milhares de anos havia colonizado outros planetas inabitados, tinha, porém, tido um desenvolvimento diferente dos demais mundos. A história do livro começa em uma época em que esses planetas já não eram mais colônias da Terra, mas haviam seguido um desenvolvimento social e político diferente. A entrada de terráqueos nos Mundos Exteriores estava barrada há milhares de anos e pouco se conhecia da vida desses planetas, só se sabia por filmes e histórias que eram arrogantes, magnatas, excêntricos, hostis, desprezíveis e cruéis.

Por sua vez, a Terra havia crescido e atingido uma população de 8 bilhões de pessoas, o medo da subalimentação e as necessidades econômicas haviam desenvolvido a criação de enormes espaços auto-suficientes chamados Cidades, que substituíram os vilarejos, povoados e “cidades” antigas. Esses espaços, verdadeiras bolhas de aço (ou Cavernas) aglomeravam dezenas de milhões de pessoas em cômodos verticais dentro de seções com cozinha, banheiro, lavanderia, biblioteca, filmoteca e áreas de lazer coletivas, no centro ficavam os prédios administrativos e nas periferias as indústrias e fábricas, entre estas, os cômodos verticais, as estradas rolantes e os canos de distribuição de energia e água. Com facilidade na distribuição de alimentos e deslocamento de pessoas, essas Cavernas eram autossuficientes economicamente e nenhum ser humano vivia fora ou saia das Cidades fechadas.

Ao mesmo tempo em que havia esse panejamento coletivo da vida nas Cidades, havia restrições quanto à sociabilidade e os direitos ao conforto e lazer de cada indivíduo estavam associados a sua localização no trabalho na administração ou na linha de produção, a sua posição na carreira e a sua localização social. Como exemplo, o privilégio de percorrer as estradas rolantes sentado e não a pé, o direito de receber uma cotização de carne e não somente as recorrentes rações industrializadas das cozinhas comunitárias, poder se alimentar alguns dias da semana dentro do cômodo residencial e não na cozinha coletiva ou, de ter um lavabo dentro do cômodo são só alguns pequenos exemplos da burocratização dessa Cidade planificada e da gama de privilégios e restrições que ela possuía.

As contradições que envolvem a “burocratizada” Terra e as estratégias dos “superiores” Mundos Exteriores

As Cidades eram vistas como “o apogeu do domínio do homem sobre o meio ambiente”, a grande contradição, porém, era que a população da Terra continuava a crescer, e isso, ligado às restrições de emigração que os Mundos Exteriores impuseram aos terráqueos e a uma visão ideológica da impossibilidade e incapacidade do homem expandir para novos mundos, levaria mais cedo ou mais tarde a uma catástrofe no desenvolvimento da vida na Terra. Essa contradição no desenvolvimento das Cidades ligado as dificuldades burocráticas da própria existência dessas Cavernas, fazia com que a maioria da população da Terra fosse Medievalista, ou seja, críticos a situação presente de vida e saudosos de um suposto passado de glória e menos burocrático da Terra. Muitos permaneciam no marco do arcaísmo e romantismo saudosista com o passado, alguns, porém, começavam a se organizar para transformar a cultura, os valores e a organização social da vida na Terra como era no passado.

Já uma parte dos habitantes dos Mundos Exteriores, os Siderais, estava disposta a transformar a sociedade da Terra, convencendo os terráqueos a adotarem o modo social destes Mundos. Essa tentativa contava com o apoio do governo terrestre, porém, enfrentava forte resistência da maioria da população. Essa tentativa estava ligada a uma convicção desse setor de Siderais de que “uma Terra saudável e modernizada seria de grande benefício para toda a Galáxia” e, para efetivar isso, haviam vindo para a Terra, fundado a Vila Sideral, e estavam buscando iniciativas junto das autoridades terráqueas para a execução dessa estratégia política.

Ao mesmo tempo, outra parte dos Siderais, fortalecidos nos Partidos Nacionalistas dos Mundos Exteriores rechaçava essa tentativa desse setor de Siderais, assumindo como imutável as convicções dos terráqueos e que tal tentativa poderia levar a destruição da Galáxia, defendendo que os Mundos Exteriores não se intrometessem nos assuntos da Terra. A necessidade de entender a psicologia dos terráqueos e superar o conservadorismo que impedia a população de aceitar uma nova cultura e uma nova organização social, mesmo com o aval do governo, era politicamente urgente para os moradores da Vila Sideral, pois dizia respeito ao fortalecimento ou derrota dessa perspectiva estratégica contra os Nacionalistas dos Mundos Exteriores.

A tática levada à frente pelos Siderais para alcançar a estratégia de transformação do sistema social da Terra é a introdução de robôs (tecnologia avançada) para desestabilizar o equilíbrio da economia das Cidades, aumentando o número de desempregados e desalojados, substituindo-os pela máquina e tecnologia. O raciocínio era que a falta de alternativa da Cidade para essas pessoas as levariam a buscar novos mundos para desenvolver a vida, deixando par atrás a Terra e seu sistema social. Acreditavam que a junção da experiência dessas pessoas com a vida nas Cidades (o “civismo”) poderia superar tanto a lógica individualista e de iniciativas particulares da cultura do “fiscalismo” que moveram os homens na época da colonização dos Mundos Exteriores, quanto também utilizar do mais avançado que a cultura dos siderais havia desenvolvido, que era a relação entre o homem e o desenvolvimento tecnológico simbolizado pelos robôs.

A contradição, porém, era que essa tática não estava levando as pessoas a essa conclusão, mas sim, fortalecendo o ódio contra os robôs e os Siderais e aumentando a influência dos grupos Medievalistas, que pregavam o retorno dos terráqueos ao modo de vida e sociabilidade pré-‘civismo’, na qual não haveria os robôs nem as Cidades e se voltaria à época em que a economia se baseava no dinheiro e na “luta pelo trocado”.

A URSS, Cuba e as tentativas de restauração capitalista pela ótica de Asimov

Embora associado à ficção-cientifica e inclua robôs, essa série de Asimov se insere no conjunto de suas séries espaciais e não robóticas. Inúmeras críticas feitas sobre o livro se focam no uso da tecnologia, nas reflexões filosóficas sobre a vida com robôs, no futuro da humanidade, na superpopulação, etc, mas como podemos observar, a trama do livro se passa em uma disputa de interesses políticos que envolvem a Terra, os Mundos Exteriores e as estratégias dos habitantes de cada planeta para transformar ou manter a estrutura social da Terra. A introdução dos robôs é um elemento condutor e de desfecho da trama, mas também simbólico do desenvolvimento tecnológico como fundamento propulsor nessa disputa de estratégias.

É nessa trama que se desenvolve o enredo policial: um dos Siderais, morador da Vila na Terra, é assassinado e todos os fatos indicam a existência de uma conspiração Medievalista envolvida com essa morte. As polícias da Terra e da Vila Sideral devem atuar em equipe para desfechar esse caso e evitar as consequências políticas que essa morte sem responsabilidades acarretaria para toda a Galáxia. Entram em ação Lije, pela polícia da Terra e R. Daneel, um robô humanóide pela Vila Sideral. Porém, com o desenvolvimento do enredo vamos descobrindo que as motivações políticas por trás dos Comissários de Polícia de cada lado são diferentes e desvendar esse assassinato é apenas um pretexto para uma queda de braço entre o avanço das estratégias políticas com relação ao destino do sistema social da Terra e o futuro da Galáxia.

Impossível não retomar essas analogias nesse momento em que vemos Cuba assumir um passo decidido a caminho de uma via de restauração capitalista ao ter, após várias reformas econômicas no sentido capitalista, reestabelecido as relações diplomáticas com os EUA. Em um país de economia planificada e de um socialismo deformado por uma burocracia governante, há anos se fortalecem dentro do próprio país contradições que incentivam no imaginário popular sentimentos, sensacionalistas ou românticos, de um passado melhor, sobre o qual grupos restauracionistas se apoiam para defender um retorno ao capitalismo pré-revolução de 1959. Nada muito diferente da situação da Terra e das posições dos grupos Medievalistas na obra-prima de Asimov. Ao mesmo tempo, os países capitalistas e setores da burguesia que buscam intervir na restauração de Cuba, divergem se a melhor estratégia seria manter o embargo econômico e político ao país e fortalecer o setor Gusano, de Miami – burgueses expropriados e fugitivos da revolução de 1959 –, ou se haveria condições de influenciar na própria condução do governo cubano no caminho da restauração, transformando os membros mais elevados da burocracia do Estado nos novos burgueses cubanos. Também muito semelhante com as diferenças dos Mundos Exteriores sobre intervir ou não no processo de reorganização social da Terra e com a estratégia utilizada pelos Siderais da Vila em relação ao convencimento do governo e da população nas ilusões de uma sociedade mais livre e avançada.

A conclusão restauracionista de Asimov: a falta de uma alternativa política de classe

O desfecho da narrativa não podia ser mais ilustrativo dessa analogia. A tática de introdução de robôs na Terra com a perspectiva de transformar a economia e assim, pressionar a população da Terra a romper a casca de suas Cidades e empreender o caminho cultural dos Siderais na colonização de novos mundos havia se mostrado falida. Ela somente fortalecia a oposição interna Medievalista. Ao final do livro, a mudança da tática de uma imposição de fora pra dentro para a tática de encontrar, dentro da Terra, um humano que poderia ser persuadido por essa ideia e iniciar um movimento nativo em prol da colonização se mostrava acertada. Mais que isso, se demonstrava que a única mente aberta para defender tais ideias de modo fanático e persistente era a dos Medievalistas, bastando para isso se apoiar no desejo destes de transformar a Terra e direcionar esse desejo de ruptura da casca das Cidades não mais para um passado distante, mas para vantagens da cultura e do modo de vida dos Siderais.

Isaac Asimov, claramente um crítico ao regime socialista stalinizado, não é um defensor efusivo do modo de produção capitalista, mas também não aponta o socialismo como alternativa estratégica. Ao avaliar como deveria se dar o desenvolvimento da humanidade – defendendo a planificação + tecnologia e fazendo uma crítica discreta da ideologia stalinista do desenvolvimento de uma sociedade em um só país – de um modo romântico, termina apontando como única alternativa as vias da restauração capitalista "planejada". Tal linha de pensamento político se opõe nas conclusões a um contemporâneo, George Owell, que escreveu suas duas obras-primas (“Revolução dos Bichos” e “1984”) pouco antes de 1953. Owell, também crítico ferrenho ao regime soviético stalinizado, apresenta em suas obras a existência da Oposição de Esquerda (“Bola de Neve” e “Goldstein”, respectivamente) como alternativa, embora em suas tramas, o processo de derrocada do sistema soviético burocratizado não tem como horizonte a restauração capitalista, nem tampouco a revolução política dos trabalhadores, mas um ceticismo profundo com o futuro da humanidade, diferente de Asimov.

Assim como ocorreu com a URSS, Cuba esta vivendo os últimos momentos de sua situação contraditória enquanto Estado Operário Burocratizado. A tática do imperialismo está deixando de ser a imposição de restrições externas e a tentativa de impor a restauração capitalista na ilha pela linha dura de enfrentamento com a burocracia castrista e começa a ser uma busca de acordo com os irmãos Castro e sua camarilha em Cuba. Na ficção de Asimov, essa tática imperialista aparece como a resposta para o desenvolvimento futuro adequado da humanidade. Não é adequado um julgamento sobre as posições políticas de Asimov sem analisar a data que ele escreve esse romance e a situação política da esquerda trotskysta na época. Mas hoje, com o trotskysmo ganhando novamente posições frente à crise econômica mundial e as misérias que a esquerda reformista e revisionista já tem demonstrado nos recentes processos de luta de classes, devemos apresentar uma alternativa não restauracionista para Cuba: a revolução política, a organização dos trabalhadores para derrubarem a burocracia castrista e defenderem as conquistas sociais, reconstruindo todas as bases, as quais algumas já foram fortemente abaladas, de uma economia planificada... É essa a nossa aposta e é a falta dessa perspectiva que impede o gênio de Asimov de apresentar alguma via classista de superação das contradições das "Cavernas de Aço"!!!




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