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Dia Nacional da Luta Antimanicomial | Crônica: Saúde mental para além do capital

Crônica em homenagem ao 18 de maio - Dia Nacional da Luta Antimanicomial. A loucura no capitalismo é quase sinônimo de estigmatização e aprisionamento. O marxismo nos fornece o método para libertar a humanidade da lógica da exploração e da opressão. E assim também, libertar a loucura das amarras do capital. Nesse texto, os delírios de um personagem nordestino se encontram com as ideias do filósofo alemão.

Mafê MacêdoPsicóloga e mestranda em Psicologia Social na UFMG

terça-feira 18 de maio de 2021 | Edição do dia

Foto: Agência Brasil

“Ô nossa terra

Ô nossa terra

Ô nosso chão

Ô nosso chão

Ô nosso mundo

Ô nosso mundo

Viva nosso amor tudins”

Conheci Ozildo na minha infância através das histórias do meu avô sobre a sua infância. Personagem nordestino do interior do Maranhão, conhecido como o louco que todo mundo da cidade sabe quem é, mas ninguém entende. Aquele que queimou a Santa Padroeira da cidade? Foi preso? Internado? Amaldiçoado?

Por cima de sua roupa comum, Ozildo, também conhecido por Azulão, usava uma bata com um símbolo desenhado na frente e nas costas: três círculos superpostos. Um branco, que representava o espaço individual e subjetivo de cada pessoa; um vermelho, representando os grupos, a comunidade ou a sociedade em que cada um está inserido e um azul, que simbolizava o mundo, a humanidade, o universo.

Para Ozildo, a superposição dos círculos coloridos representava o relacionamento dessas três instâncias, numa contínua e gradativa interação. Os indivíduos vivem em uma e para uma sociedade que, por sua vez, se insere num espaço maior, o universo, a natureza, o mundo.

Foto de Ozildo com seu traje típico

Já na faculdade, cursando a disciplina de Psicologia do Trabalho, Ozildo revisitou a minha memória durante a leitura do texto “A dialética do singular-particular-universal” de Betty Oliveira. Nele, a autora retoma a concepção histórico-social dos sujeitos desenvolvida por Karl Marx, que esquematiza três relações estruturais da atividade humana, qualquer que ela seja. Sendo elas: a singularidade, que se dá, por exemplo, na relação do indivíduo com a produção, com a execução da atividade; a particularidade, como a relação do indivíduo com o produto da atividade executada; e a universalidade que se manifesta na relação do indivíduo com o gênero humano. O filósofo propõe a compreensão de como a singularidade se constrói na universalidade e, ao mesmo tempo e do mesmo modo, como a universalidade se concretiza na singularidade, tendo a particularidade como mediação.

Para Marx, os indivíduos não trazem dentro de si mesmos, ao nascer, uma essência já delimitada, sendo a sociedade somente o ambiente através do qual esta se desenvolveria. Segundo ele, os indivíduos são frutos de uma "síntese de múltiplas determinações". Sendo assim, tal essência humana, como um produto histórico-social precisa ser apropriada e objetivada por cada sujeito singular ao longo de sua vida em sociedade.

Lembrei de Azulão.

Das suas ideias que, de um jeito ou de outro, dialogam com aquelas de um dos maiores filósofos do século XIX. Assim como Marx, ainda que em forma de delírio, Ozildo se indignava profundamente com o que se passava ao seu redor e acredito que concordaria com o precursor do socialismo científico sobre não bastar interpretar o mundo. Azulão também queria transformá-lo.

E tinha seus métodos.

Realizava rituais, que materializavam suas ideias, voltados para transformação da sociedade e para a melhoria das pessoas. Quando achava, em algum quintal da cidade, árvores carregadas de frutos verdes, mesmo expondo-se à possível fúria e perseguição do proprietário, entrava no cercado, colhia uma boa quantidade deles e os levava até uma cova previamente preparada. Ali os enterrava seguindo uma cerimônia à base de cantos e de gestos ritualizados. Junto à cova aberta, com os frutos amontoados ao lado, apoiava-se em um cajado, recitava palavras e expressões, em geral, incompreensíveis e cantava a todo pulmão os versos que iniciam esse texto.

Para ele, aquilo tudo tinha um significado. Profundo. Que especialmente os proprietários dos frutos arrancados por Ozildo não compreendiam.

Os frutos enterrados se transformariam em frutos seres humanos que nasceriam armados de dotes e sentimentos elevados, livres de imperfeições que minavam o convívio das pessoas. “Gente pura, inteligente, solidária, sem feiura e sem defeitos.” Esses novos elementos seriam responsáveis pela transformação do mundo, pelo surgimento de uma nova sociedade dominada pela paz, a inteligência, a prosperidade, a igualdade e a beleza.

Em diferentes episódios de sua vida Ozildo, como tantas outras pessoas em sofrimento psíquico, foi aprisionado em manicômios e penitenciárias e isolado devido às suas experiências subjetivas. Durante seus anos de vida, Azulão, não teve suas diferenças respeitadas e reconhecidas na sociedade, não foi bem aceito em um sistema que exige determinados comportamentos moldados com base nos valores burgueses, em que os princípios da propriedade privada moldam as relações sociais de acordo com os interesses econômicos e de classe que as envolvem.

Falar da Luta Antimanicomial é pensar nas possibilidades de apropriação da essência humana ao longo da vida em sociedade. É falar de liberdade. A liberdade para Marx não é apenas sobre a consciência da liberdade ou das escolhas possíveis, mas sobre a real existência de alternativas e possibilidades concretas de escolha entre elas. O lema ‘Por uma sociedade sem manicômios’ deve ser ampliado, já que no capitalismo, de acordo com os processos históricos, tem-se a recriação de novos formatos de manicômios, tanto em ações direcionadas pelas políticas públicas como na criação de valores e na padronização de comportamentos. A Luta Antimanicomial não pode restringir-se à negação do isolamento. Ela deve ser construída pelo princípio da liberdade de escolhas.

A Carta de Bauru – 30 anos , publicada três décadas após a carta que mudou os rumos da Luta Antimanicomial no Brasil, coloca que apesar de todos os retrocessos: “Acesa e viva, mantém-se a nossa disposição de lutar contra tudo aquilo que é intolerável para a dignidade das pessoas e nefasto para o seu convívio enquanto iguais: a exploração e a ganância, o manicômio e a tortura, o autoritarismo e o Estado de exceção. (...)

A conjuntura presente, que intensifica o risco das conquistas duramente obtidas, exige um posicionamento que reafirme e radicalize nossos horizontes. É preciso sustentar que uma sociedade sem manicômios reconhece a legitimidade incondicional do outro como o fundamento da liberdade para todos e cada um; que a vida é o valor fundamental; que a sociedade sem manicômios é uma
sociedade democrática, socialista e anticapitalista.”

Os fundamentos da desigualdade se encontram na propriedade privada dos meios de produção. A partir disso, identificar e fortalecer ações que promovam a consciência de um projeto de sociedade que supere o capitalismo é fundamental para aqueles que participam da Luta Antimanicomial e para classe trabalhadora de conjunto. Ozildo e Marx de um jeito ou de outro, evidenciam que é necessário superar o projeto societário excludente e burguês e constituir uma sociedade igualitária e sem exploração de classes.

Eu concordo com eles.




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