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SEMANÁRIO

Como fica o governo Bolsonaro após o vídeo da reunião ministerial?

Úrsula Noronha

Ilustração: Alexandre Miguez

Como fica o governo Bolsonaro após o vídeo da reunião ministerial?

Úrsula Noronha

Ao contrário da expectativa gerada o vídeo não foi demolidor contra o governo Bolsonaro. As denúncias de Moro não saem fortalecidas. Novos atritos com governadores e STF se desenham a partir do vídeo, possivelmente vários ministros serão alvos de processos mas o governo não fica na corda bamba. O processo de fortalecimento institucional do governo pela via de compra de deputados do Centrão e forte aliança com a cúpula militar do Exército pode, se não ocorrerem novos fatos na política, na economia ou oriundos da pandemia seguir seu curso. No entanto o vídeo não deixa de aumentar os atritos com os governadores e especialmente com o STF. Enquanto na conjuntura imediata do governo há menores impactos no plano do regime político do golpe as contradições se acrescentam.

O vídeo escancarou a escória da política brasileira na qual o general Braga Netto tutela os outros ministros, mostrando a olhos nus essa crescente característica que temos remarcado. A imagem de Bolsonaro sentado ao lado de dois militares: Braga Netto e Mourão. Longe de ser uma mera imagem sem significados, ela revela por quem a reunião foi conduzida e o peso das forças armadas no regime.

O que a reunião revela sobre a localização de Sergio Moro e da imprensa?

A parte do vídeo em relação ao ex-ministro Sergio Moro presente no vídeo era conhecida, pois a Advocacia Geral da União já havia divulgado uma transcrição sobre essa passagem. Após o depoimento de Moro de 8h à Polícia Federal já vimos como sua denúncia ao sair do ministério não apresentava nada concreto contra o presidente que pudesse por si só, por sua contundência, levar ao impeachment.

Nesse cenário, Moro fica em uma situação ruim, e um ataque mal sucedido pode fortalecer quem está sendo atacado (no caso, Bolsonaro em aliança com os militares).

Afirmar que o vídeo não acelera a denúncia de Sergio Moro ao presidente não quer dizer que o arquivo publicado não tem outros escândalos que podem causar complicações institucionais ao bolsonarismo. Na reunião fica nítido como vários ministros são muito agressivos e golpistas expondo sua face mais nojenta em diversos âmbitos, a exemplo do ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles que afirmou que a pandemia do coronavírus é uma “oportunidade para passar desregulamentação”, visando a destruição da Amazônia, do ministro da educação Weintraub que escancarou seu ódio aos povos indígenas e disse que precisa prender ministros do STF, e também de Damares Alves, que aproveitou a crise para pregar contra o aborto questionando “vão liberar geral” e ainda defender a prisão de governadores.

O vídeo também revela a ofensividade de Bolsonaro em relação a alguns governadores como Doria e Witzel, referindo-se a eles como “esse bosta desse governador de São Paulo, esse estrume do Rio de Janeiro”. Essa ofensiva se apresenta após uma semana na qual ocorreu uma reunião entre ele e os governadores, e que apresentou um tom de pactuação para juntos conduzirem a abertura da economia, algo que sequer constava na pauta de tão confluente as posições, favorecendo os empresários enquanto os brasileiros seguem sem leitos, testes e equipamentos básicos de proteção. Além, é claro, da unidade em prol de atacar os trabalhadores, como declarou Maia na reunião ao afirmar a necessidade de novas reformas.

A divulgação do vídeo marcou um fato: estamos mais longe de uma pressão política que obrigue o Procurador Geral da República Augusto Aras a fazer uma denúncia ao STF que levaria a uma votação no Congresso em torno do Impeachment. O trabalho de Aras que estava fazendo de jogar para os dois lados do regime, por exemplo abrindo inquérito tanto contra Moro como contra Bolsonaro, mas fortalecendo o bolsonarismo está mais fácil agora depois da divulgação do vídeo, pois havia se elevado muito uma expectativa do que seriam as denúncias concretas que viriam com o vídeo, mas que não vieram. Não à toa Bolsonaro e o bolsonarismo deram declarações fortalecidas.

A debilidade da Moro fez toda a mídia focar nas últimas horas em polemizar com as ameaças golpistas de Heleno ou partir para o ataque contra ministros como Salles, Weintraub e Damares e deixar um pouco mais de lado a denúncia de Moro em si, ou consubstanciá-la com outros elementos, como depoimentos da PF, do empresário Marinho, etc. A discussão se Bolsonaro iria permanecer no poder ou não deslocou-se, sem com isso aplainar os choques nas forças de um regime golpista.

Consequências institucionais da divulgação do vídeo

A incógnita do aprofundamento dessa disputa no regime é como ela vai impactar no Congresso Nacional e nas negociações que estavam sendo feitas. Se poderá afetar, é uma questão em aberto, ainda que pareçam, hoje por hoje não afetadas. O tweet de FHC é bem revelador de um opositor burguês que não está vendo muito um caminho imediato, no qual afirmou: “Vejo juristas falando de impeachment. Pergunta de leigo: não adicionaríamos mais um complicador? O caso é de impedimento por falta de bom senso. Não sei se existe no arsenal jurídico. Houve com Delfim Moreira, caso clínico. Aplica-se ainda que difícil de comprovar? Duvido”.
Existem diversos crimes pelos quais Bolsonaro poderia ser acusado, visto suas inúmeras ações absurdas como os atos na frente do planalto. A questão fundamental é que o grande escândalo nacional que tornaria insustentável a permanência Bolsonaro na presidência é uma prova cabal de que ele queria interferir na Polícia Federal para abafar a investigação sobre os seus filhos de envolvimento de corrupção, com milícias etc.

Do ponto de visto como o vídeo pode cair na população, a tendência que talvez possamos ver é dos polos se fortalecerem, mas ainda é muito cedo para “cravar” uma tendência. Pode ser que quem é contra Bolsonaro fortalece seu ódio após os podres revelados do interior do governo que odeia pobres, indígenas, mulheres e negros. E a base social que Bolsonaro vem mantendo em torno de 30% (não necessariamente os mesmos 30%, que se modificam de acordo com as regiões do país, renda, escolaridade e gênero) também.

A disputa entre bonapartismos no regime

Desde o início da pandemia acelerou-se uma disputa entre atores do regime para ver quem vai assumir o protagonismo na crise e na configuração do regime golpista em que vivemos. Os militares, mais aliados a Bolsonaro principalmente após a saída de Sergio Moro do governo, buscam diversas formas para preservar o poder Executivo e seu campo de ação, enquanto o STF procura controlar a situação política em seus ritmos, enfraquecendo o Executivo. Essa disputa ficou bem marcada em diversos momentos, a exemplo de quando o STF definiu por unanimidade que os governadores iriam decidir sobre as quarentenas, tirando esse poder das mãos do Executivo, e, portanto, dos militares que controlam o ministério da Saúde primeiro de fora e agora de dentro dele.

Agora é evidente que a relação do governo com o STF se degrada ainda mais, e os elementos da reunião ministerial são essenciais para trazer à tona uma reflexão que se acelera: a disputa entre bonapartismos no regime.

Os militares cada vez mais mostram sua face autoritária. Na sexta-feira o general Augusto Heleno fez uma publicação em tom de ameaça se referindo à intervenção das forças armadas na política após o pedido que o STF encaminhou a Augusto Aras para apreensão do celular de Bolsonaro. Em um tweet abertamente golpista, afirmou que é intolerável que o STF tome medidas assim, e que se isso de fato ocorrer, será considerada "tentativa de comprometer a harmonia entre os poderes" e "poderá ter consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional". Essa declaração brutal, que vai além do que já tinha feito Villas Boas em ameaça ao STF em 2018, mostra como estão escalando seu papel no regime não só para controlar ministérios e iniciativas, mas também para tentar se impor sobre poderes.

Após a divulgação do vídeo o presidente foi ofensivo, como foi nítido na entrevista que deu à Jovem Pan, na qual afirmou que não entregaria de jeito nenhum seu celular, desafiando o STF. Frente a isso, logo em seguida Celso de Mello afirmou que o que Bolsonaro disse poderia ser crime de responsabilidade, por não atender a uma determinação do STF. Isso mostra uma postura agressiva do judiciário respondendo à altura e marcando uma correlação de forças. O fato é que essas questões certamente geram incômodo nas Forças Armadas, e a declaração de Celso de Mello marcou um ataque ao poder executivo que o exército não poderia deixar passar pois ele mesmo se sente enfraquecido.

A postura do STF de se colocar na disputa como árbitro na condução da pandemia já estava explícita com o fato de escolher quando solta ou não coisas que guarda em suas gavetas, com possibilidades de realizar inquéritos arbitrários como o conduzido por Moraes contra quem criticar o STF, no atrito com militares ao ameaçá-los de condução coercitiva, sendo que são testemunhas e sequer réus.

Agora, com esse cenário, essa disputa se aprofunda e ambos os atores seguem avançando com seus métodos autoritários. O pedido do STF à PGR sobre o celular fez Heleno, com declarado apoio tanto de Bolsonaro como do ministro da defesa Azevedo, mostrar seu DNA golpista e ameaçar o STF, além de fazer também Bolsonaro falar na Jovem que desafiaria o judiciário e que “só se fosse um rato para entregar o telefone”.

Esse contexto de disputa entre STF e militares se dá em um momento de crise orgânica como definia Gramsci, no qual há ausência de uma hegemonia, vários fatores antes subordinados emergem na disputa para se impor perante os outros, e como marcava o revolucionário italiano traz consigo o perigo de soluções de força, de fortalecimento de homens carismáticos e o fortalecimento dos setores sem voto.

Segundo Gramsci,

“Quando tais crises têm lugar, a situação imediata se torna delicada e perigosa, porque o campo fica aberto a soluções de força, à atividade de potências obscuras representadas pelos homens providenciais ou carismáticos (...) se fala de “crise de autoridade” e isto precisamente é a crise de hegemonia, ou crise do Estado em seu conjunto” (C13 §23, redigido entre maio de 1932 e início de 1934).

Frente a isso, há no cenário político um fortalecimento dos atores sem voto e o avanço dos seus métodos autoritários. Estamos em uma disputa de bonapartismos, à qual Daniel Matos nos ajuda a entender com um trecho escrito em outubro de 2018:

Trotski definia que mais em geral o “bonapartismo” como forma de governo busca se elevar por sobre os campos em luta, apoiando-se mais diretamente nas forças armadas em detrimento do parlamento, para preservar a propriedade capitalista e para impor a ordem. Pois bem, no caso de um governo Bolsonaro no Brasil, não parece necessitar ainda prescindir do parlamento (...) Para um governo assim, que corresponde mais a um período de incubação do bonapartismo, resulta útil a categoria de Trotski de “pré-bonapartismo”.

Hoje vivemos ainda um pré-bonapartismo no qual há um avanço autoritário para preservar a propriedade capitalista e impor a ordem mas não é preciso prescindir do parlamento, como Daniel aponta, ou do STF acrescentamos. É possível comprar o parlamento como está buscando fazer agora ou combinar isso com ameaças dos militares, como estão fazendo agora com o STF, esse projeto bonapartista inclui em si, ocasionais rompantes fascistas de Bolsonaro e de uma parcela de seus apoiadores, que geram como resposta que o Exército se localize como “arbitro” e vá ganhando crescente poder no regime. Essa força que inclui como binômio Bolsonaro e militares, mostra essa aliança, mas não permite reduzir uma parte na outra, e sem os militares o governo Bolsonaro teria uma muito profunda debilidade. Nesse âmbito apesar da diferença de quem aparece mais, quem parece ter a primazia são os militares. Do outro lado vemos o STF e seu protagonismo, junto a governadores neo-opositores como Doria e Witzel, Moro, parcelas do Congresso e boa parte da grande mídia batalhando para preservar o protagonismo adquirido pelo STF em toda a crescente degradação bonapartista do regime brasileiro de 2016 até aqui.

É escancarado que essa disputa fortalece o aspecto autoritário de ambos os lados, como ficou explícito nos atritos recentes desses atores, a exemplo de Celso de Mello ameaçando usar força coercitiva para que os generais fossem depor à PF e, agora, com essas declarações absurdas de Augusto Heleno. De um lado, o judiciário que pode conduzir operações a seu bel-prazer e de outro a ameaça de golpe se contrariar a cúpula militar.

No texto “Bonapartismo e Fascismo” publicado em 1934, Leon Trotski escreveu:

“Um governo do sabre como juiz-árbitro da nação: precisamente isso se chama bonapartismo. O sabre não dá a si próprio um programa independente. É o instrumento da “ordem”. Está chamado a salvaguardar o existente. O bonapartismo, ao elevar-se politicamente por cima das classes como seu predecessor, o cesarismo, representa no sentido social, sempre e em todas as épocas, o governo do setor mais forte e mais firme dos exploradores. Em consequência, o atual bonapartismo não pode ser outra coisa que o governo do capital financeiro, que dirige, inspira e corrompe os setores mais altos da burocracia, a polícia, a casta de oficiais militares e a imprensa.”

Retomando o conceito de bonapartismo que procura “se elevar por cima das classes”, Trotski nos ajuda a entender os movimentos dos militares e do STF que buscam ser “instrumento da ordem” e atuar como “juiz-árbitro da nação”. Nesse trecho, entretanto, o grande revolucionário russo também traz à tona um aspecto fundamental, que desenvolveremos ainda nesse texto: o bonapartismo não pode ser outra coisa que o governo do capital financeiro e isso fica evidente na ação de cada uma das forças bonapartistas por mais que conflitem.

A influência do capital financeiro

Após a divulgação da reunião ministerial, um embaixador americano trumpista, publicou um tweet falando da grande parceria do governo americano com o brasileiro. Esse é um sinal importante de Trump ao seu capacho no Brasil. Esse fato pode colocar em cena outro sinal importante de sustentação ao governo, um apoio contundente que pesa em todos os atores institucionais brasileiros.

Essa semana vimos que a reunião dos governadores com Bolsonaro marcou um cenário de uma pressão empresarial superior pela reabertura econômica, que impôs um clima harmonioso entre esses atores. O fato de o vídeo de 22/4 ter se tornado público pode sim impactar nessa aparente harmonia e afetar a relação dos governadores com o presidente, visto sua ofensiva e dos ministros a Doria e Witzel que aparece na reunião. No entanto, a pressão empresarial é um fator que marca a posição de um fator superior ao qual ambos os atores respondem.

Ou seja, os empresários também disciplinam os governadores, o STF, os militares, como vimos durante a semana e se mantém agora – inclusive a resposta imediata do mercado financeiro em relação ao vídeo foi positiva. Não à toa isso ocorre, visto que na reunião o que ficou marcado não foi uma preocupação com as vidas das pessoas em meio à pandemia, e sim debates em torno de como atrair o interesse do capital americano ao Brasil. Isso é explícito com diálogos como o de Braga Netto com Guedes para facilitar a presença estrangeira nas licitações públicas, o que poderia ser um dos motivos para Trump apoiar a entrada do Brasil na OCDE.

Encontramos, então, uma maior pressão para uma penetração imperialista no país e, também dos empresários que estão preocupados em não perder mercado na pandemia, mostrando a submissão dos atores políticos ao capital financeiro e seus monopólios aqui instalados, sejam eles as global players brasileiras ou as multinacionais que de mãos dadas reuniram-se com Bolsonaro e FIESP em 14/04 para organizar as aberturas das quarentenas. Bolsonaro tentou se apoiar primeiro em setores como Luciano Hang que propunham a mesma abertura radical e abrupta, depois em empresários que quiseram junto dele pressionar o STF, e sem conseguir consenso empresarial, foi mantendo sua busca sistemática de minar o isolamento social dia a dia e até que agora, confluente com as aberturas nos EUA e na Europa há um certo consenso empresarial em abrir, talvez não na rapidez de Bolsonaro, mas num ritmo que os governadores também implementem, mesmo no pico da pandemia, e assim salvar e garantir lucros a custas de vidas.

Dentre atrocidades de todos os tipos vomitadas pelas bocas desses saudosistas e apoiadores da ditadura, nenhum dos ministros, nem Bolsonaro, os militares ou o STF falaram sobre as mais de 20 mil mortes no Brasil com a pandemia. Esse é o futuro que eles querem para nós: reformas para que trabalhemos sob condições ainda mais precárias para manter o lucro dos patrões e mortes, sejam elas pelo coronavírus ou pela polícia como vimos essa semana com João Vitor, Rodrigo, Juan Oliveira e João Pedro, de apenas 14 anos.

Acompanhe o programa do Quilombo Vermelho: Por que a Covid-19 mata mais negros?

A crise se desenvolverá e a situação ficará cada vez mais acirrada do ponto de vista sanitário, econômico e social, mas em algum momento a classe trabalhadora vai se levantar impondo novos cenários para o regime político brasileiro, e é para isso que temos que nos preparar, para que o descontentamento que essa situação fomenta encontre uma força de esquerda que batalha para elevar nosso ódio de Bolsonaro a também seu aliado Mourão, ao todo poderoso Braga Netto, e que confie que não será das mãos do STF, do Congresso mas da própria classe trabalhadora e do povo pobre que se dará uma resposta não só a um governo mas ao regime que se degrada.

Devemos nos apoiar nas lutas dos trabalhadores da saúde, que estão na linha de frente do combate ao coronavírus e dão exemplos de resistência como vêm fazendo as trabalhadoras do Hospital Universitário na Usp, assistentes sociais em Brasília e tantas outras ao redor país. Tomemos como exemplo a força da greve dos trabalhadores agrícolas migrantes na Itália que gritam “Não somos animais para o abate”. Que os ventos de autoorganização dos setores precários na Argentina, Costa Rica e dos mineiros de Guanaco no Chile venham ao Brasil.

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