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ERA O CANGAÇO REVOLUCIONÁRIO? | Cangaço - Protorrevolucionário?

As primeiras três décadas do século XX foram palco, dentre outras coisas, de um movimento rural conhecido como cangaço. A origem da palavra é motivo de discussão entre muitos que afirmam ser estudiosos do fenômeno social em apreço.

José Ferreira JúniorSerra Talhada – Pernambuco

quarta-feira 10 de agosto de 2016 | Edição do dia

As primeiras três décadas do século XX foram palco, dentre outras coisas, de um movimento rural conhecido como cangaço. A origem da palavra é motivo de discussão entre muitos que afirmam ser estudiosos do fenômeno social em apreço.
Deixando de lado essa discussão que a nada leva, importa pensar acerca do cangaço como fenômeno que produz múltiplas interpretações, no referente à sua ação. Uma delas é a que coloca o movimento como sendo precursor de revolução, sendo os cangaceiros e cangaceiras proto-revolucionários.

Essa concepção proto-revolucionária cangaceira tem registro no livro “Cangaceiros e Fanáticos”, de autoria de Ruy Facó, um jornalista, advogado e militante do Partido Comunista, que ao falecer precocemente em um acidente de avião, teve seu livro publicado postumamente em 1963. Mas, essa concepção, foi combatida em “Os Cangaceiros”, de Luis Bernardo Pericás. Apoiava-se a ideia de Ruy Facó em uma leitura equivocada do movimento cangaceiro feito, à época, por militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) que, na opinião de Pericás, despossuídos eram de preparo teórico sistemático e orgânico, além de pouco conhecimento da formação histórica, econômica e social da nação.

Desse modo, mesmo existindo o interesse pela problemática agrária, segundo Pericás, estavam mal preparados intelectual e ideologicamente para que pudessem elaborar um projeto de mudanças estruturais no campo. Afirma ainda Pericás, que era grande a escassez de livros marxistas no Brasil e a maioria dos militantes socialistas era autodidata, existindo apenas um grupo restrito que tinha condições de participar dos cursos de formação em Moscou e, mesmo assim, isso não seria suficiente, pois, segundo Pericás, Moscou não era possuidor de conhecimento elastecido sobre a América Latina e o Brasil.

Imaginando os cangaceiros como sendo sujeitos propícios à absorção de ideais revolucionários, o PCB leva à III Conferência de Partidos Comunistas da América Latina e Caribe, realizado em Moscou, em 1934, proposta de alinhar os cangaceiros na luta revolucionária, fazendo-os participantes das guerrilhas nordestinas. Moscou compra a ideia do PCB e se propõe a apoiar a intensificação dos contatos com os cangaceiros. No dizer de Pericás: “os comunistas ingenuamente achavam que se poderia dar um caráter revolucionário ao cangaço, influenciando-o de tal forma que vários grupos de bandoleiros iriam até mesmo querer adotar o programa da Aliança Nacional Libertadora (ANL)”.

A ideia do PCB era reflexo da ideologia stalinista da revolução num só país, que defendia a revolução por etapas e as políticas de frentes populares. Uma aliança dos trabalhadores com a ala mais progressista da burguesia nacional, o que significava a subordinação política da classe. Tratava-se de uma visão linear da história, ideia que confrontava o pensamento leninista que defendia que o socialismo era, antes de tudo, análise concreta de situações concretas. É óbvio que o devaneio do PCB ficou somente no devanear.

Porém, existe um discurso contemporâneo que remete ao devaneio do PCB: o que defende revolucionarismo nas ações lampiônicas, que afirma ter sido o cangaço lampiônico luta contra as injustiças protagonizadas pela estrutura coronelística e oligárquica dos seus dias.

Para tais pessoas, principalmente os produtores culturais dedicados à temática cangaço, Lampião pegou e morreu em armas, porque era possuidor de ideologia, porque tinha em mente o combate ao latifúndio improdutivo e aos desmandos coronelísticos que caracterizavam os sertões dos seus dias.

Lampião

Tido como Rei do Cangaço, esse pernambucano, nascido em Serra Talhada, sertão pernambucano, por mais de duas décadas assombrou as caatingas sertanejas, vindo a ser morto, em 1938, no estado de Sergipe, pela volante alagoana, comandada pelo tenente João Bezerra.

A ideia de Lampião como revolucionário não se sustenta quando exame é feito à história que protagonizou e que, quando examinada, revela-se um misto de revolta e oportunismo, sendo que a revolta é o dado usado e abusado, quando do uso da memória lampiônica, para dar legitimidade ao discurso defensor de cangaceiro revolucionário. Esquece-se, todavia, do oportunismo lampiônico.

O ingresso de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, e seus irmãos – Antônio, Levino e Ezequiel – no cangaço foi sim decorrente de revolta. Tratou-se, como era recorrente à época, do efeito de desavença entre pequenos proprietários (família Ferreira) e Grandes proprietários (família Nogueira).

A Justiça, a princípio evocada pelos Ferreira, como era comum naqueles dias (e por que não dizer, também hoje), fez-se cega aos seus apelos. Virgulino, pais e irmãos tiveram que deixar seu lugar. Migraram para Alagoas. Nesse êxodo, morreram a mãe (desgostosa) e o pai (assassinado, pela polícia alagoana).

Diante dessas circunstâncias, os irmãos Ferreira, comandados por Virgulino, adentram aquilo que se chama “Cangaço de Vingança” e que se caracterizava pela permanência temporária no ser cangaceiro. Geralmente era protagonizado por alguém ultrajado e ou desmoralizado por alguém econômica e ou politicamente mais forte. Aqui entra o etos da macheza como elemento justificador do vir a ser cangaceiro, conforme digo, em artigo que escrevi, intitulado: “A macheza na sociedade sertaneja serra-talhadense: origem, elementos constituintes e justificadores”, do ano de 2013. Após a consecução da vingança desejada, o cangaceiro depunha as armas e retornava ao seu fazer anterior, como pontua Frederico Pernambucano de Melo, em “Guerreiros do Sol” (2004).

Lampião, ainda Virgulino, passa a ser liderado por Sebastião Pereira, conhecido como Sinhô Pereira e que, a época, era o braço armado da família Pereira, no Pajeú, contra a família Carvalho. A união de Virgulino com Sinhô se derivava do fato de que ambos tinham questões afins. Depois de certo tempo, Sinhô abandona a vida do cangaço, isso se dando por intermediação do padre Cícero do Juazeiro. Passa o comando do grupo para Virgulino, agora já conhecido como Lampião, alcunha que se atribui a Sinhô Pereira a autoria.

Na entrega do comando a Lampião é feito um pacto: Lampião se compromete, perante Sinhô Pereira, em não causar nenhum dano a membros da família Pereira. Isso é cumprido pelo cangaceiro e, por si só, já desconstrói o discurso que atribui a Lampião caráter revolucionário: Os Pereira eram latifundiários e, como tais, não fugiam à regra da prática da espoliação, exploração, desmandos e etc., típico da elite dona de terras e possuidora de dinheiro.

Assim, a pergunta que se faz é: como se pode pensar alguém revolucionário estabelecendo relações de compadrio com a classe que oprime?

Ainda outro questionar se faz iminente, no referente à prática cangaceira de Lampião: Se a proposta era vingança, discurso reiterado significativas vezes pelo próprio cangaceiro, por que não a efetivou, matando, como dizia querer fazê-lo, José Saturnino e José Lucena, a quem Lampião atribuía a culpa de sua vida de crimes?
Também em seu “Guerreiros do Sol” (2004), Frederico Pernambucano de Melo, promove explicação à não consecução da vingança lampiônica: a manutenção de um escudo ético, que lhe viabilizasse a continuidade de sua estada no cangaço. Matar os dois desafetos implicaria ter que deixar o cangaço, uma vez que se concluiria seu objetivo de estar nas fileiras cangaceiras. Não matá-los, porém, gerava justificativa para a permanência na vida cangaceira.

É nesse pormenor que o oportunismo de Lampião se evidencia, pois se utiliza de um binômio bem presente na cultura sertaneja, a macheza e a honra, para legitimar sua vida de crimes, saques, castrações, sangramentos, estupros e outras coisas do ramo. No ideário sertanejo, pautado na macheza e na honra, a barbárie, desde que tenha “razão” em existir, é legítima, como discute, Durval Muniz Albuquerque Júnior, em seu artigo, “Quem é frouxo não se mete: violência e masculinidade como elementos constitutivos da imagem do nordestino” (1999).

Trata-se, nesse oportunismo, da vivência do cangaço meio-de-vida, onde a preocupação, além de fugir da Lei, é angariar riqueza. Em seus escritos “Serrote Preto: Lampião e seus sequazes” (1974) e “ Lampião e a Sociologia do Cangaço” (S/D), Rodrigues de Carvalho atesta a existência de bens (terra e gado bovino) atribuídos a Lampião, obviamente confiada a administração a terceiros de sua confiança. Dessa forma, torna-se, no mínimo pueril alcunhar Lampião revolucionário.

Ademais, também deve-se chamar a atenção para a rede de informantes e protetores construídas por Lampião, à qual se convencionou chamar coiteiros, composta por sertanejos paupérrimos, militares (que, em tese, deveriam estar em lado contrários) e, principalmente, fazendeiros latifundiários, conforme relato na dissertação “A apropriação da memória lampiônica como elemento de construção da identidade de Serra Talhada – PE” (2010). Tratava-se, além de mecanismo garantidor de longevidade ao cangaceiro, de elemento possibilitador de desconstrução do discurso que confere ao cangaceiro postura revolucionária, uma vez que revolucionário não pactua com o opressor, contra o qual estabelece luta.
Em sua obra “Os cangaceiros” (1977), Maria Izaura Pereira de Queiroz, reproduz o depoimento de Antônio Silvino, cangaceiro famoso e antecessor de Lampião, dado a Leonardo Mota, folclorista cearense, em 1930:

O folclorista cearense, Leonardo Mota, entrevistou, em 1930, Antônio Silvino, então preso na penitenciária do Recife:


Silvino, que é você me diz de Lampião?


Ah, seu doutor, Lampião é um Prinspe!
-----Príncipe por quê?


Veio depois de mim. Os tempos são outros. As armas estão mais aperfeiçoadas. Não falta quem venda tudo. Caixeiro viajante não é besta para se esquecer de levar presente de bala para ele. A políça quer é só se encher de dinheiro no Sertão [...] Não tenha dúvida, Lampião é um Prinspe! (Grifos nossos).

Duas, talvez, possam vir a serem as óticas por que se possa enxergar essa declaração de Antônio Silvino: talvez quisesse dizer o cangaceiro que ele fosse o rei e Lampião, por sua vez, alguém menos importante e, portanto, um príncipe; a segunda, talvez a mais acertada, levando-se em conta a denúncia feita pelo cangaceiro na continuidade da entrevista e sendo a que vai aqui ser considerada, quisesse dizer que o tratamento recebido por Lampião era semelhante àquele recebido por um príncipe.

Tomando-se como referência Julio José Chiavenato, em seu livro “Cangaço: a força do coronel” (1990), percebe-se que, de fato, o tratamento dado a Lampião era o de um príncipe, no que tange às benesses recebidas pelo cangaceiro a partir de acordos tácitos feitos com oficiais da polícia, de acolhida cedida por ricos e poderosos fazendeiros e da amizade travada com homens públicos.

Na obra de Chiavenato (1990), Lampião é visto como alguém inteligente que, sabendo ser a sua sobrevivência dependente de acordos, tratou de fechá-los e, quando oportunidade teve de se beneficiar com alguma situação, não se fez de rogado, beneficiou-se.

Diante do exposto, acreditamos que chamar o cangaço de protorrevolucionarismo e Lampião de revolucionário é, no mínimo, desconhecer o que foi o movimento camponês chamado cangaço, expressão típica da política estalinista de não realizar análise concreta das situações concretas, em termos leninistas em cada formação econômico-social, fato que serviu para justificar estratégias políticas que incluíam mudanças de sujeitos que negavam a independência política da classe trabalhadora.




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