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SEMANÁRIO

CPC da UNE: entre a cultura de combate e a conciliação de classes (PARTE 2)

Luno P.

CPC da UNE: entre a cultura de combate e a conciliação de classes (PARTE 2)

Luno P.

O movimento operário, camponês e a juventude marcaram a década de 50 e 60 com as cores da luta de classes, mas foi com o golpe de 1964 e, posteriormente, a promulgação do AI-5 em 68, representado também com a queima da sede da UNE no Rio de Janeira, que esse levante de uma convulsão social que atravessa o país sofreu uma derrota importante. É inegável constatar que a política do PCB de aliança com a burguesia nacional foi fundamental para desarmar os trabalhadores e a juventude, abrindo caminho para o fortalecimento das forças da reação. Sentindo também a derrota da luta de classes e a bancarrota de revoluções no cenário internacional, esse fator foi fundamental para a análise da literatura que, a partir de 1970, se propôs revisar criticamente a tão recente experiência do CPC, tornando seus agentes como interlocutores, no campo cultural, da política de conciliação de classes do "partidão".
PRIMEIRA PARTE: CPC da UNE: um teatro sob o signo da luta de classes (PARTE 1)
TERCEIRA PARTE: CPC da UNE: as formas do teatro de agitação e propaganda cepecista (PARTE 3)

As relações entre isebianos e cepecistas

O Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) foi um órgão governamental criado em 1955, no Rio de Janeiro, vinculado ao Ministério de Educação e Cultura, pelo então presidente Café Filho, reunindo intelectuais de diferentes matizes sob o pretexto de pensar um modelo de desenvolvimento para o Brasil. Nele, podemos identificar ao menos duas fases: uma primeira encampada pelo governo de Juscelino Kubitschek, que o fortaleceu aprofundando seu sentido de departamento de produção ideológica burguesa e nacional-desenvolvimentista, e a fase conhecida como "último ISEB", com forte presença dos intelectuais ligados ou próximos ao PCB. Essas duas fases foram marcadas pelo debate central sobre a existência (ou não) de uma burguesia nacional desenvolvimentista/progressista, defesa essa que dá base para a política do PCB na época, mas que encontrava discordâncias entre muitos dos intelectuais, como Fernando Henrique Cardoso (sim, o FHC), que defendia o o Brasil possuía uma burguesia internacionalizada que usava o nacionalismo apenas com fins retóricos para justificar vantagens e proteções.

É o longo do período conhecido como "último ISEB" que os caminhos dos isebianos e cepecistas se entrecruzaram, num primeiro momento marcado com os contatos de Vianinha e Carlos Estevam Martins na produção da peça A Mais Valia Vai Acabar, Seu Edgar. Essa ligação fez com que a experiência do CPC estivesse teoricamente vinculada à filosofia isebiana, embora fosse uma radicalização à esquerda dessa perspectiva, como aponta Augusto Buonicore retomando o professor Renato Ortiz. Essa ligação será fio de continuidade durante toda a produção teórica do CPC, tanto no Anteprojeto de Manifesto do CPC, escrito por Carlos Estevam Martins, quanto nos Cadernos do Povo Brasileiro, em especial “Quem é o povo no Brasil?” de Nelson Werneck Sodré, ambos isebianos. Vale destacar que Cadernos do Povo Brasileiro é uma coleção produzida inteiramente pelos intelectuais do ISEB e apenas distribuída pelo CPC.

Mas, apesar da ligação teórica e ideológica do CPC com o ISEB, e ainda mais aprofundado com as concepções políticas e estratégicas do PCB, um dos grande problemas da literatura crítica ao CPC é a visão desta experiência como um bloco monolítico da linha política nacional-desenvolvimentista e de conciliação de classes do PCB, que levava à frente a busca por alianças com setores burgueses, numa completa negação da perspectiva de revolução através da luta e auto organização dos trabalhadores em unidade com o conjunto dos setores oprimidos.

Essas concepções tinha força nas teorizações sobre cultura popular no interior do CPC. Exemplo disso são as concepções de Carlos Estevam Martins expressas no Anteprojeto de Manifesto do CPC, que em balanços autocríticos dos próprios cepecistas foram profundamente questionadas, primeiramente por seus cineastas, como Carlos Diegues, [1] e questionadas também por Vianinha.

O peso das derrotas na revisão crítica do CPC

Marilena Chauí e Heloísa Buarque de Hollanda são dois dos grandes nomes da revisão crítica da história do CPC de um modo que se torna quase impossível entender profundamente os debates e disputas em torno da ideia de cultura popular sem antes passar por seus escritos. Antes de aprofundar diretamente na produção teórica cepecista, me sinto na obrigação de introduzir um pouco das críticas dessas duas autoras.

A obra O Nacional e o Popular na Cultura Brasileira - Seminários, Marilena Chauí, sem dúvidas é a mais revisitada no que diz respeito a revisão teórico-crítica do CPC. Nela, a autora analisa como as concepções idealistas e esquemáticas sobre povo e vanguarda se expressavam na produção teórica cepecista, na qual a autora aponta uma dinâmica de oscilação entre o determinismo de “leis objetivas” da história, cujas necessidades são incontornáveis, e um subjetivismo da vontade vanguardista [2]. Exemplo disso é seu diálogo sobre a concepção de vanguarda no Anteprojeto de Manifesto do CPC, escritos por Carlos Estevam Martins, a autora tece duras críticas:

“Os artistas do CPC não optaram por aquilo que outros, cristãos, costumam chamar de ‘comunidade de destino’, isto é, a partilha da existência em comum numa prática construída em comum, tanto assim que a arte do povo é caracterizada pelo anonimato do artista. Optaram por ser vanguarda do povo, condutores, dirigentes, educadores (…). No fundo, o missionário do CPC quer ser individualizado sem o anonimato do artista do povo e sem a pasteurização do artista de massa. Como vanguarda, parece conseguir os dois intentos”.

O fato, é que esse elemento vanguardista representa uma ruptura importante com uma característica essencial do teatro de agitprop soviético: a questão da autoorganização. O teatro não cumpria o papel de colocar o autor/ator como vanguarda dos trabalhadores, mas permitir a propagação de ideias fundamentais que seriam combustíveis para o processo de transformação da sociedade soviética levado a frente por esses próprios trabalhadores. Outro fato fundamental é que em nas experiências de agitprop tanto na URSS quanto na Alemanha, as fileiras da encenação eram constituídas também por trabalhadores. A esse vanguardismo, Chauí identificará como "iluminista e inconscientemente autoritário", afirmando também que "carrega em seu bojo uma concepção instrumental da cultura e do povo".

A falta dessa perspectiva criou uma cisão profunda entre povo, artista e intelectual, num sentido onde povo passa a ser um sujeito histórico sem classes e alienado, enquanto o artista/intelectual se transforma quase como o sujeito da revolução:

“para poder respeitar o povo, o artista do CPC não pode tomá-lo nem como parceiro político e cultural, nem como interlocutor igual: oscila, assim entre o desprezo pelo povo ‘fenomênico’ (que, no entanto, é descrito como o povo realmente existente) e a invenção do povo ‘essencial’, o herói do exército de libertação nacional e popular (que existe apenas na imaginação). Sem o fantasma do ‘bom povo’ por vir, o artista do CPC não teria sequer tido a lembrança de ‘ir ao povo’ e, sobretudo, de ‘optar por ser povo’”.

Essa completa falta de análise das diferenças entre as classes também promove o intelectual não mais como fruto de uma classe, mas como parte desse povo metafórico. A isso, Heloísa Buarque de Hollanda aproveita o caminho aberto por Chauí e aponta essa contradição entre a relação povo/artista:

“Ao reivindicar para o intelectual um lugar ao lado do povo, não apenas se fez paternalista, mas terminou (…) por escamotear as diferenças de classes, homogeneizando conceitualmente uma multiplicidade de contradições e interesses”. Continuou a autora: “A linguagem do intelectual trans-vestido em povo traiu-se pelos signos de exagero e pela regressão estilizada a formas de expressão provinciais ou arcaicas”

Apesar da qualidade inegável dessas críticas, avalio que ambas partem de um contexto que ajuda a renegar a experiência cepecista a uma simples caricatura: ambas as autoras partem da derrota, tanto no campo cultural quanto político, e esse movimento acaba por secundarizar os seus elementos mais progressistas, principalmente como uma primeira experiência de agitprop no Brasil, fator que também se traduz numa negação do teatro como uma possibilidade de forma para agitação e propaganda, expressa num certo combate, ainda que em níveis distintos, a uma "instrumentalização" da arte, um debate que certamente vale algumas boas linhas em outra edição.

O polêmico Anteprojeto de Manifesto do CPC

Como mostrado nas linhas anteriores, sem dúvidas tal obra é o principal alvo das críticas ao CPC, o que não poderia ser diferente já que nela se expressam o mais acabado das visões esquemáticas de arte e cultura. Nela, Estevam Martins apresenta três categorias de separação da arte: a primeira, a arte do povo que, para ele, “é um produto das comunidades economicamente atrasadas”. A segunda, a arte popular, que se estabelece “na divisão do trabalho que faz da massa a receptora improdutiva de obras que foram criadas por um grupo profissionalizado de especialistas”. Destas duas primeiras, Estevam afirma que nenhuma deveria ser nem chamada de arte, nem de popular, nem de povo:

“a arte do povo é predominantemente um produto das comunidades economicamente atrasadas e floresce de preferência no meio rural ou em áreas urbanas que ainda não atingiram as formas de vida que acompanham a industrialização. O traço que melhor a define é que nela o artista não se distingue da massa consumidora. Artista e público vivem integrados no mesmo anonimato e o nível de elaboração artística é tão primário que o ato de criar não vai além de um simples ordenar os dados mais patentes da consciência popular atrasada. A arte popular, por sua vez, se distingue desta não só pelo seu público que é constituído pela população dos centros urbanos desenvolvidos, como também devido ao aparecimento de uma divisão de trabalho que faz da massa a receptora improdutiva de obras que foram criadas por um grupo profissionalizado de especialistas. Os artistas se constituem assim num estrato social diferenciado de seu público, o qual se apresenta no mercado como mero consumidor de bens cuja elaboração e divulgação escapam ao seu controle [3]

E então, entra a Arte Popular Revolucionária, que se propõe a superar essas duas últimas, sendo, portanto, uma arte de combate à arte "burguesa e alienante", e a qual Estevam caracteriza da seguinte forma:

Para nós, tudo começa pela essência do povo e entendemos que esta essência só pode ser vivenciado pelo artista quando ele se defronta de fundo com o fato nu da posse do poder pela classe dirigente e a consequente privação de poder e que se encontra o povo enquanto massa dos governados pelos outros e para os outros. Se não se parte daí não se é nem revolucionário, nem popular, porque revolucionar a sociedade é passar o poder ao povo. Radical como é, nossa arte revolucionária pretende ser popular quando se identifica com a aspiração fundamental do povo, quando se une ao esforço coletivo que visa dar cumprimento ao projeto de existência do povo o qual não pode ser outro senão o de deixar de ser povo tal como ele se apresenta na sociedade de classes, ou seja, um povo que não dirige a sociedade da qual ele é o povo [4]

Num palavreado supostamente marxista, o que se percebe nestas definições é um abandono grotesco da dialética, principalmente no que condiz à ideia abstrata de povo, onde as diferentes divisões de classe acabam por ser diluídas a serviço de uma visão que na prática buscava sustentar, de maneira contraditória, a linha política do PCB de aliança com a burguesia, da qual Estevam fazia parte, de uma linha de combate à burguesia no plano da cultura. Jacqueline da Silva Takara, de maneira certeira, traduz essa contradição na seguinte frase: “em outras palavras, pretendia-se o combate a cultura e arte burguesa, sem o combate real contra essa mesma classe” [5].

É também dessa contradição que surge o fato de que nunca foi parte tanto das definições de Estevam, quanto da prática político-estética do CPC, a necessidade da tomada de controle dos meios de produção e circulação de arte e cultura. Não veremos como uma defesa intransigente do CPC a estatização, sob controle dos trabalhadores, dos teatros, cinemas, rádios e da televisão. A este campo, apenas surgem no máximo informações sobre o domínio da burguesia, mas nenhuma política consciente de combate a esse domínio, que inclusive foi parte importante dos mecanismos do golpe de 64.

Junto desse elemento, como também aponta Takara, saltam aos olhos as aproximações das concepções de Estevam com o realismo socialista de Andrei Jdanov na União Soviética stalinizada. Essas aproximações se expressam principalmente no que diz respeito ao combate à cultura e arte burguesas, mas também se expressava numa postura restritiva em relação às tendências artísticas que se desenvolviam, com a diferença que no Brasil esse combate foi encampada comouma política de estado pelas forças militares e burguesas do golpe de 64, diferente do que foi na URSS, onde a política do realismo socialista de perseguição a artistas era parte da camarilha stalinista. Apesar disso, o realismo socialista era uma concepção bastante abrangente nos ciclos influenciados pelo PCB, e tinham grande influência sobre todo os partidos comunistas pelo globo. É na ideia de Estevam de que “fora da arte política não há arte popular”, onde essas concepções ganham eco. Aqui é flagrante uma pobre caricatura do marxismo e dos debates que tomavam a URSS antes de Stálin em torno da ideia de Proletkult, da possibilidade de construção de uma arte e cultura proletárias. No manifesto, Estevam define os objetivos da dita arte política da seguinte forma:

Em lugar do homem isolado em sua individualidade e perdido para sempre, nos intrincados meandros da introspecção, nossa arte deve levar ao povo o significado humano de petróleo e do aço, dos partidos políticos e das associações de classe, dos índices de produção e dos mecanismos financeiros. Para nossa arte há de ser incomparavelmente mais pungente uma fogueira de toneladas de café do que as mesquinhas paixões de um marido traído ou o alienado desespero dos que vêem na existência um motivo para o fracasso e para a impotência. Ao homem do povo, entretanto, não basta que seja rico e diferenciado o seu saber do mundo sobre o qual fará incidir sua atividade transformadora: nossa arte precisa oferecer-lhe também os motivos que forjam e impulsionam a ação revolucionária [6]

Esse, sem dúvidas, é um dos trechos que mais se aproximam das ideias jdanovistas, como fica claro no discurso de Andrei Zdhanov no Congresso dos Escritores Soviéticos de 1934:

Em primeiro lugar, [ser um engenheiro das almas] significa conhecer a vida a ponto de descrevê-la verdadeiramente nas obras de arte. Descrevê-la, no entanto, não de maneira escolástica e morta, não apenas como “realidade objetiva”; mas descrever a realidade em seus desenvolvimentos revolucionários. Conjugada à veracidade e concretude histórica do retrato artístico deve-se encontrar o esforço didático de modelar ideologicamente os trabalhadores no espírito do socialismo. Tal método nas belas letras e na crítica literária é o que chamamos de método do realismo socialista (ZDHANOV, 1934, tradução nossa)

É interessante ver que as discussões diretas sobre o realismo socialista não são apenas fruto da revisão crítica das décadas posteriores ao CPC, também se apresentam em forma dramatúrgica em algumas das obras cepecistas, como o caso do Auto do Relatório, narrado por Takara. Em uma das cenas da obra, somos introduzidos a um personagem soviético que devora menininhas de olhos azuis em suas peças. Atribuem a esse elemento como uma característica do realismo socialista:

Soviet. (grunhindo) Camaradas, recebi um telegrama do “poponka” Kruchove que critica nossa última pela. Desde quando menininhas de olhos azuis escapam com vida de peça comunista? Tem que ser devorada todinha. Realismo socialista, camaradas. Realismo. Realismo. Não é isso, Fidel Castro?
Cubano. Como no, camarada? Como no? Cuba sí, ianque no (AUTO, p.10)

Na cena posterior, o soviético defensor do realismo socialista aparece como aquele que quer mudar o mundo de maneira radical, imediata:

C.5. E a propriedade privada? Temos que massacrá-la, esfarinhà-la…
C.1. Ouçam camaradas: matar burguês
Coro. Hoje/ Agora.
C1. Sem consolação,/ Estripar coração,/ Com facão,/ Com facão,/Afiadão./ Mundo novo./ Mundo novo.
Coro. Hoje./ Agora./ Mundo novo para o povo./G Grr… Grr… (todos voltam a escrever)
Soviético. Bom. Muito bom. A peça não está sectária. No fundamental agrado. Tem padre morto, patrão estripado, amor livre… Vamos para a apresentação. O povo nos espera (AUTO, p.11)

Tais cenas, que se apresentam como sátira ao próprio CPC, carregam dois elementos fundamentais para pensar as aproximações e visões cepecistas sobre o realismo socialista: num primeiro plano, a visão correta de seu autoritarismo e esquematismo no campo da produção cultural, mas num segundo, um confucionismo em relação ao que servia o realismo socialista, já que o mesmo nunca foi teorizado num sentido de defesa da revolução “imediata”, mas sim na defesa das teses do socialismo num país só e da revolução por etapas. Ainda mais, tal caricatura do defensor do realismo soviético é totalmente oposta ao que defendia de fato no campo artístico, que não era a morte dos burgueses e o amor livre, mas sim a da manutenção dos governos burgueses, das imagens do heróico homem soviético, associadas à moral religiosa e patriarcal da família.

Essas concepções foram duramente combatidas durante toda a década de 30 pela oposição de esquerda comunista, em especial por Trótski, e pelos surrealistas, como André Breton, contra a política de Stalin para a arte. No marco da defesa das conquistas da revolução, em contraposição ao processo de burocratização da União Soviética, Trótski e André Breton escreveram em 1938 o Manifesto por uma Arte Revolucionária Independente, sob a égide da consigna “A independência da arte - para a revolução/A revolução - para a liberação definitiva da arte”. Neste manifesto, é expressa a bandeira da libertação da arte da seguinte forma:

Se, para o desenvolvimento das forças produtivas materiais, cabe à revolução erigir um regime socialista de plano centralizado, para a criação intelectual ela deve, já desde o começo, estabelecer e assegurar um regime anarquista de liberdade individual. Nenhuma autoridade, nenhuma coação, nem o menor traço de comando! (TRÓTSKI; BRETON, 1938)

Esses valiosos combates viam que a arte só pode servir de fato como ferramenta de luta dos trabalhadores quando garantido seu direito pleno de liberdade, de que “a arte pode ser uma grande aliada da revolução, enquanto permanecer fiel a si mesma” (TRÓTSKI, 1938) e, portanto, não cabe ao partido revolucionário se colocar como tarefa a direção dos rumos da arte, nem a colocar sob suas ordens. Esta visão também parte da ideia da “vocação artística como o resultado da colisão do homem com um certo número de formas sociais que lhe são adversas”. Esses combates também ganham seus ecos na experiência cepecista, ainda que não necessariamente na mesma perspectiva socialista. Um desses ecos se expressa nos permanentes embates entre Carlos Diegues, o Cacá, também segundo diretor executivo do CPC, e o Estevam Martins. Cacá foi ferrenho na defesa da liberdade artística, chegando a se referir à posição hegemônica do CPC como a posição onde “reinava a ideia da grande catedral socialista onde cada um colocava seu tijolo anônimo”. Estes embates levaram Cacá, assim como outros nomes, principalmente ligados ao Cinema Novo, a tomar uma posição de dissidência no movimento, como o próprio explica:

Acontece que, da idéia de uma cultura nacional-popular, a posição hegemônica dentro do CPC evoluiu para uma instrumentalização da cultura como braço da política. Melhor dizendo: instrumentalização da arte como braço cultural da luta política. Na verdade, a posição hegemônica do CPC ignorava algumas qualificações do produto artístico que para nós eram fundamentais, porque trazíamos toda a idéia vigente, sobretudo na Europa, de um cinema de autor, de uma vanguarda formal, numa tentativa de revolução formal [7].

Comentando sobre o filme Cinco Vezes Favela, Cacá também relembra um episódio em sua primeira exibição pública que exemplifica o aprofundar dessas divergências, mas também o clima restritivo que de certa forma se impunha a partir das teorizações de Estevam:

Lembro-me que, quando o filme ficou pronto, na primeira sessão pública o Carlos Estevam apresentou o filme e se desculpou pelo caráter pequeno-burguês de alguns episódios. A mim, por exemplo, isto revoltou muito, porque eu era um dos alvos do Carlos Estevam [...] Quer dizer, essas contradições não demoraram muito a aparecer. Elas foram imediatas. Ao fim do primeiro ano do CPC, já havia claramente uma dissidência. E antes que o CPC completasse seu segundo ano, nós já estávamos expelidos de dentro dele. Tanto que, quando chega o golpe de 64 - eu não era mais estudante, mas isso não quer dizer nada, porque o CPC, em determinado momento, tinha explodido da área estudantil - o Cinema Novo não tinha mais nada a ver com o CPC (BARCELLOS, 1994, p. 42)

Vianinha também foi um dos nomes que bateram de frente com as concepções de Estevam, ainda que, no começo dos trabalhos do CPC, fosse parte de reproduzi-las. Estes embates se deram principalmente frente a um dilema enfrentado por Vianinha, expresso em seu texto teórico Teatro popular não desce ao povo, sobe ao povo, onde o próprio diz que “não há que, em nome da participação, baixar o nível artístico das obras de arte, diminuir sua capacidade de apreensão sensível do real, estreitar a riqueza de emoções e significações que ela pode nos emprestar” [8]. O fato é que, não apesar de, mas principalmente por estas contradições pungentes, os debates em relação à cultura popular tidos no interior do CPC, assim como suas divergências e disputas, pavimentaram uma geração inteira do teatro - e do cinema - brasileiro, e são grandes exemplos históricos de uma época de convulsões. É importante também dizer que essas concepções partem de um sentido progressista sobre o uso da arte como ferramenta de elevação da consciência dos trabalhadores, bastante no sentido de agitprop. Entretanto, mesmo esse sentido progressista não impediu as aproximações da discussão sobre cultura popular com o realismo socialista de Andrei Jdanov, e de concepções nacionalistas burguesas que dominavam o pensamento intelectual da época. Esses sentidos serviram como limitações para a experiência do CPC, contudo, como aponta Iná Camargo, “não se pode limitar o alcance da experiência dos artistas envolvidos na militância cultural à falta de horizontes políticos dos dirigentes de esquerda”, justamente porque as obras de arte comumente ultrapassam os enunciados conceituais dados por seus criadores.


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FOOTNOTES

[1os desacordos sobre a visão esquemática de cultura popular levaram Carlos Diegues e outros importantes cineastas cepecistas a romperem com o CPC, fundando posteriormente o movimento do Cinema Novo

[3HOLLANDA, Heloisa Buarque. Impressões de viagem. CPC: vanguarda e
desbunde, 1984, p. 147

[4HOLLANDA, Heloisa Buarque. Impressões de viagem. CPC: vanguarda e desbunde. 1984, p.149, 150

[5As Ideais do Centro Popular de Cultura e a busca por um “teatro proletário”, TAKARA, 2020, p.55

[6HOLLANDA, 1984, p.151, 152

[7BARCELLOS, Jalusa. CPC da UNE: uma história da paixão e consciência, 1994, p. 41

[8VIANNA FILHO, Oduvaldo. O artista diante da realidade. In: PEIXOTO, Fernando
(org.). Vianinha: teatro, televisão, política
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Luno P.

Professor de Teatro e estudante de História da UFRGS
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