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Breve história do feminismo, desafios e tarefas das e dos marxistas hoje

Jéssica Antunes

Luiza Eineck

Imagem: Alexandre Alves

Breve história do feminismo, desafios e tarefas das e dos marxistas hoje

Jéssica Antunes

Luiza Eineck

Este artigo (Parte I) tem como objetivo retratar a breve história do feminismo e quais os desafios e tarefas das dos marxistas revolucionários hoje, retomando os principais processos de luta que marcaram profundamente o desenvolvimento do movimento feministas e quais lições nós, feministas socialistas, podemos tirar diante da maior crise capitalista dos últimos anos. Veremos que as mulheres podem cumprir um papel destacado e revolucionário na vanguarda, e é fundamental para todos que queiram mudar a vida, batalhar pela sua organização com uma estratégia clara para vencer. A elaboração deste texto serviu de base para o grupo de estudos de feminismo e marxismo realizado em dezembro de 2020 no 1º Encontro Regional do Esquerda Diário e Pão e Rosas do Distrito Federal.

Breve histórico do desenvolvimento do movimento feminista

A visão do feminismo marxista é de que só é possível compreender as distintas posições e correntes do feminismo no marco de determinadas situações sociais e políticas. Segundo Marx, “a história da humanidade é a história da luta entre as classes”. Portanto, nossa análise toma corpo a partir de momentos decisivos de avanços e retrocessos da luta das mulheres, que estão diretamente vinculados com os eventos da luta de classes, ou seja, de revolução e contrarrevolução, de reformas ou reação.

Diferente de outras correntes do feminismo, nós, feministas socialistas e marxistas, não temos uma visão evolutiva da luta das mulheres, segundo a qual estaríamos sempre avançando em direção à igualdade. Nossa leitura do avanço do movimento feminista parte da ideia da luta entre as classes como motor da história. A análise marxista da sociedade tem como eixo estruturante a exploração de uma classe sobre a outra: a burguesia explorando a grande massa proletária, sendo ambas compostas por homens e mulheres, assim as mulheres não constituem uma só classe, mas um grupo policlassista, composto por uma maioria de exploradas, mas, também, por uma minoria que, apesar de oprimidas, oprimem e exploram outras mulheres.

Por exploração, entendemos o roubo do trabalho excedente das massas trabalhadoras e, para aumentar a eficiência desse roubo, a sociedade capitalista se apropriou da opressão à mulher: o patriarcado, existente há mais de 1500 anos. Por opressão, entendemos como o uso das diferenças como justificativa para colocar um grupo social em desvantagem em relação a outro. Assim, a relação entre opressão e exploração é fundamental para entender a manutenção do machismo até os dias de hoje e os caminhos para acabar com essa opressão definitivamente.

Retomaremos, então, esse vínculo a partir dos fatos históricos do desenvolvimento do movimento de mulheres conjuntamente com a luta de classes.

As mulheres sempre se levantam contra a sua situação de opressão, porém, o surgimento do feminismo como corrente teórica e política se deu no marco das revoluções burguesas do final do século XVIII, quando a burguesia, ainda revolucionária, derrubou o poder do antigo regime feudal. No marco dessas revoluções, podemos destacar dois momentos:

O primeiro deles é a grande Revolução Francesa de 1789, que teve início com uma série de protestos de mulheres pela redução do preço dos alimentos. Essas mulheres se organizaram para impor que os comerciantes aceitassem os valores decididos por elas, os apedrejaram com batatas e as peixeiras os ameaçam com suas facas. Além disso, realizaram marchas de mais de 4 mil mulheres, com algumas centenas de homens, carregando charretes com canhões e munições que haviam roubado para se enfrentar com o antigo regime, exigindo o direito ao pão. Muitos jornais da época descreviam essas mulheres como verdadeiras fúrias. Apesar de terem sido linha de frente das revoltas que marcaram o início do ano de 1789, as mulheres, assim como as massas populares que fizeram a revolução, lideradas pela burguesia, ficaram de fora da promessa de Igualdade, Liberdade e Fraternidade. A feminista Cristina Molina, resume bem o sentimento das mulheres: “A ilustração não cumpre suas promessas; a razão não é a Razão universal. A mulher fica de fora como aquele setor que as luzes não quiseram iluminar”. Portanto, à intervenção das mulheres como linha de frente desse grande processo revolucionário ainda precisava se completar com a elaboração de suas demandas, e sua organização política.

A famosa Declaração dos direitos do homem e do cidadão era apenas para os homens, excluindo, inclusive, as mulheres da burguesia, que se alçava como classe dominante. Um documento que pode ser considerado umas das primeiras sistematizações das reivindicações das mulheres foi escrito por Olympe de Gouges: a Declaração dos direitos da mulher e da cidadã, em que denuncia que a mulher é o terceiro estado do terceiro estado, que foram completamente excluídas dos mínimos direitos civis e políticos conquistados pelos cidadãos burgueses do terceiro estado.

A contradição de classe que surgiu com a Revolução Burguesa de 1789, em que as grandes massas trabalhadoras seguiam na miséria traídas pela promessa de igualdade, se intensifica nos anos posteriores. Em 1871, surge o primeiro governo operário da história: a Comuna de Paris, quando os trabalhadores tomaram o poder da cidade. Em poucos dias, esse governo decretou a inédita igualdade entre homens, mulheres e todos os cidadãos, assim como o fim de todos os privilégios dos representantes; decretou também a revogação de todas as dívidas das trabalhadoras; estabeleceu a educação laica e o direito das mulheres de portarem armas – algo que, mesmo em seu momento mais revolucionário, a burguesia negou até as mulheres burguesas.

Pela primeira vez, havia mulheres dirigentes de um estado, chefes militares reconhecidas socialmente. O jornal oficial da Comuna descreveu a ação de muitas operárias combatentes, como Louise Michel, com as seguintes palavras: "nas fileiras do batalhão 61, combatia uma mulher enérgica; matou vários militares e guardiões da ordem". Ela foi uma das milhares de combatentes da Comuna e também é dela o grito que ecoou das entranhas da Comuna: "Cuidado com as mulheres quando se sentem enojadas de tudo o que as rodeia e se levantam contra o velho mundo. Nesse dia nascerá o novo mundo". Milhares de mulheres combateram e também sucumbiram junto com a Comuna, que foi violentamente massacrada pela burguesia com mais de 10 mil mortos e milhares de presos, como uma forma da burguesia de exemplificar que os explorados e oprimidos, em especial as mulheres, não devem se levantar contra a sua situação. Relatos históricos dizem que as mulheres foram mais resistentes que os homens nas barricadas, sendo as últimas a serem retiradas e torturadas.

Esse evento foi um marco para o movimento de trabalhadores e também para o feminismo. Jamais as trabalhadoras e as burguesas poderiam se unir totalmente da mesma forma que antes. Algumas mulheres burguesas, pelo que se conta, deixaram as pontas de suas sombrinhas sujas do sangue do massacre operário, sangue de muitas operárias, para celebrar nas ruas a vitória da ordem sobre o terror operário. Um exemplo de centenas de anos atrás de que o gênero nos une mas a classe nos divide. [1]

Esses eventos marcaram o início da luta das mulheres por igualdade de direitos, tornando-se tema de debate público pela primeira vez na Europa. A partir dessa experiência, Mary Wollstonecraft elabora sua obra Reivindicação dos Direitos da Mulher, considerada uma das precursoras do feminismo. Data dessa época também o início da entrada mais significativa das mulheres no mercado de trabalho e a formação de sindicatos femininos, já que as mulheres eram proibidas de entrar nos sindicatos com os homens. Tanto na França como na Inglaterra, aumentavam as greves de mulheres e sua organização não só sindical, mas também política. É nesse momento que surgem as primeiras duas grandes correntes do feminismo: as sufragistas, que lutavam por igualdade política e o direito ao voto; e a corrente de mulheres que lutavam centralmente pela proteção social da mulher mãe, viúva e dos direitos ligados à reprodução.

Esses movimentos deram origem a primeira onda feminista. Na véspera da 1ª Guerra Mundial e no calor de sua preparação, as sufragistas colocaram de pé um forte e radicalizado movimento de mulheres. Elas usavam explosivos e quebravam lojas em suas manifestações de rua. Há um célebre episódio em que uma delas se joga em frente a um cavalo numa corrida na qual participava o rei, dando a sua vida para atrair visibilidade à questão do direito ao voto. Esse movimento – reconhecido como a onda feminista que se espalhou pelo mundo – era, principalmente, ainda que não só, liderado por mulheres burguesas, que foram obrigadas a se aliar com os partidos socialistas, já que os partidos burgueses se negavam a defender direitos civis e políticos para as mulheres. Porém, esse debate também não foi muito fácil dentro do movimento socialista. Foi com muitas lutas políticas de mulheres como a grande dirigente Clara Zetkin, uma das maiores organizadoras de mulheres trabalhadoras da história, que o socialismo tomou essa posição.

Esse movimento internacional se divide com a chegada da 1ª Guerra Mundial, marcando mais uma vez uma divisão de classe no movimento de mulheres. Uma das principais líderes sufragistas, Emmeline Pankhurst, passa para o lado do governo contra o qual combatia, defendendo a guerra em seu país, a Inglaterra, e transforma a luta pelo direito ao voto em um movimento patriótico de apoio à guerra sob o lema “Right to serve” (Direito para servir). Isso marca um racha no movimento sufragista, em Londres, epicentro da primeira onda, que foi dirigido pela filha da Emmeline, Sylvia Pankhurst. Ela se converte em socialista e inclusive viaja à Rússia em 1917 para conhecer a República dos Sovietes. Sylvia volta para Inglaterra com a decisão de organizar as mulheres trabalhadoras, sendo parte das socialistas que declaram o lema “guerra contra a guerra”, em oposição ao “Direito para servir”. Nesse momento, denuncia que a guerra só poderia colocar os operários uns contra os outros e beneficiar a burguesia que estava buscando mais formas de explorar as vidas e mortes dos trabalhadores.

Em uma das Conferências Internacionais de Mulheres Socialistas, foi votado o Dia Internacional de Luta das Mulheres, que se transformou no atual 8 de março. Cinco anos depois, em uma dessas Conferências convocada por Zetkin, é feita a primeira declaração organizada de oposição à guerra imperialista. A guerra trouxe muitas contradições para as mulheres, que foram submetidas à fome e à completa miséria, além de assumir a responsabilidade das famílias com a ida dos homens para o campo de batalha, de onde muitos não voltariam. Essas mulheres viraram protagonistas de saques massivos de supermercados para não morrer de fome, boicotes às linhas de produção etc.

Por outro lado, pela primeira vez, as mulheres entraram de forma massiva na indústria pesada, ocupada anteriormente apenas pelos homens. Para as mulheres, abria-se um mundo inteiramente novo, estavam definitivamente ocupando o espaço fora do lar, o espaço da produção. Clara Zetkin advertiu a todos que era urgente organizar as mulheres trabalhadoras, pois, por sua situação dramática e aguda, poderiam vir a cumprir um papel radical e revolucionário: elas poderiam ser a chama da revolução. E foram.

Em 1917, mais uma vez um grande evento da luta de classes marca a trajetória do movimento de luta das mulheres de forma definitiva. Sobre isso, sem sombra de dúvidas, vale um debate específico. [2] No 8 de março daquele ano, fevereiro no antigo calendário ortodoxo, as mulheres que padeciam pelas contradições da situação que falamos acima organizaram uma greve por pão, paz e liberdade (ao governo czarista). Desse movimento, inicia o processo revolucionário que leva à tomada do poder em outubro (novembro no nosso calendário) do mesmo ano pelos trabalhadores russos e pelo Partido Bolchevique, que era dirigido também por muitas mulheres. Elas ocuparam papéis de direção fundamentais na tomada do poder. Por exemplo, uma jovem de 23 anos, motorista de ônibus, foi uma das responsáveis pela distribuição das armas na noite anterior à tomada do poder.

A partir de então, teve início um processo de conquista de direitos para as mulheres que nenhuma das mais avançadas democracias europeias poderiam imaginar. Além de conquistar o direito de votar e serem votadas e de ocupar cargos de direção no governo dos conselhos operários e nas primeiras linhas do exército vermelho, as mulheres conseguiram, pela primeira vez na história, o direito ao aborto seguro e gratuito nos hospitais, que só foi garantido nos países centrais na década de 1970 – e não existe até hoje na maioria dos países.

Também alcançaram o direito ao divórcio, inclusive por cartão postal, e o direito à alfabetização e educação, além da completa separação entre a igreja e o estado. Ainda assim, Lenin e os bolcheviques diziam que esses avanços não bastavam, que não haveria igualdade enquanto as mulheres estivessem escravizadas nos lares com o trabalho doméstico. Essa denúncia foi retomada com força na segunda onda do feminismo, mas já havia sido conquistada de forma ampla e massiva pelo governo bolchevique dos conselhos operários. Os revolucionários russos diziam que a igualdade perante a lei não garantia igualdade perante a vida – era preciso um longo processo que assegurasse a independência econômica das mulheres e a completa passagem dos trabalhos domésticos do âmbito privado para a esfera estatal, além da possibilidade de um amor sem entraves, em que as mulheres fossem livres.

A Revolução Russa não foi inspiradora somente para as trabalhadoras e trabalhadores de todo o mundo, mas, particularmente, foi uma fonte inesgotável de inspiração para o movimento feminista, mas não podemos esquecer o tanto que todo o processo de burocratização e stalinização, a contrarrevolução e a reação avançaram contra os direitos das mulheres. Isso significou um retrocesso histórico: o aborto voltou a ser proibido, foi criado um prêmio para as mães russas que tivessem mais de 10 filhos e se institui a criminalização da prostituição [3]. Wendy Goldman diz em seu livro Mulher, Estado e Revolução: a maior tragédia é que essa reação [stalinismo] ficou sendo chamada de socialismo [4].

A partir da 2ª Guerra Mundial, com a consolidação da hegemonia dos EUA, ou seja, sua dominação sobre o mundo, que combinou a destruição das forças produtivas durante a guerra (literalmente a destruição de cidades inteiras) com o próprio papel do stalinismo no desvio e na derrota da revolução em diversos países, se deram as bases do que ficou conhecido como boom do pós-guerra.

Esse crescimento econômico sem precedentes, baseado no aumento brutal da exploração dos trabalhadores combinado a certos direitos trabalhistas, como a licença maternidade, levou à consolidação da mulher no mercado de trabalho. O avanço da tecnologia, a criação dos eletrodomésticos, a facilidade em relação à contracepção e a participação na sociedade trouxe à mulher um conflito entre os sexos. Gerou-se uma contradição enorme entre essa posição atual e a situação de inferioridade e opressão das mulheres, que levou a um estado subjetivo de incômodo, conhecido como o “mal-estar sem nome das mulheres”.

Diante de um cenário convulsivo entre 1960 e 1970 – marcado por greves econômicas e políticas, lutas contra a opressão nacional, manifestações radicalizadas estudantis, de negros e homossexuais, lutas de libertação na África colonial e o poderoso movimento contra a guerra imperialista no Vietnã –, as mulheres entraram em cena na política internacional com uma nova onda poderosa de luta.

A segunda onda feminista foi um movimento que, em seu início, questionou profundamente a ordem social e moral dominante da sociedade e tinha como característica geral a radicalidade e a anti-institucionalidade. Elas diziam “não era ele, não era eu, era a sociedade”. A inovação desse movimento foi gritar ao mundo que o pessoal era político e que o conjunto da sociedade precisava ser transformado. Isso gerou tanto pavor na burguesia que chegou a classificar a segunda onda como risco à segurança nacional, e suas reuniões eram infiltradas pela CIA e pela Interpol.

Essa foi a primeira vez que se questionou temas que hoje são cotidianos, como a violência contra a mulher, os assédios, o direito ao próprio corpo, a livre opção sexual, o direito a creches 24h, a falta de igualdade de oportunidades de emprego para as mulheres e a denúncia do trabalho doméstico. Elas, então, diziam “queremos emprego, porque trabalho já temos de monte”. Além disso, conseguiu arrancar o direito ao aborto nos países centrais, como EUA, França, Itália, Espanha etc.

Nas universidades, foram conquistadas as primeiras disciplinas de estudos de gênero, com um protagonismo incendiário das estudantes. Esse processo foi marcado por um episódio em que as formandas de História de diferentes universidades se uniram para queimarem seus diplomas em protesto por só terem aprendido metade da história, na qual as mulheres não existiam. Foi nesse momento também que, pela primeira vez, se levantou uma voz social contra a opressão estética e os padrões de beleza. Ocorreu a famosa “queima dos sutiãs”, que chocou a sociedade e até hoje é usada como uma zombaria para reduzir o feminismo – mas esse é um fato do qual nos orgulhamos. Era impressionante a consciência de que estavam fazendo história.

Porém, esse movimento não foi marcado apenas pela sua potencialidade, mas também pelas suas limitações. A principal tendência a se fortalecer a partir desse movimento foi a que hoje conhecemos como feminismo liberal, que defendia a luta das mulheres por reformas dentro do capitalismo, além de igualdade para andar à noite a rua, entrar em festas, bares e nos espaços políticos, assim como igualdade para governar países que oprimem continentes inteiros ou liderar multinacionais que exploram milhões de mulheres pelo globo. Esse feminismo foi o grande vencedor da segunda onda, que conquistou, sim, uma série de direitos democráticos para as mulheres, mas não atacou as bases da opressão. Por outro lado, também surgiu nesse momento o feminismo radical, que dividia a sociedade em duas classes: as dos homens e das mulheres, sendo o homem o grande inimigo da mulher, sem qualquer tipo de colaboração possível. Daí surgiu o termo “esquerdo-macho”, querendo dizer que não importa se o homem é de esquerda e contra o machismo, ele é um “macho” e, portanto, inimigo. Os principais grupos desse feminismo definiam as mulheres pela sua biologia, e não pela socialização. Por isso, as mulheres trans são consideradas inimigos homens disfarçados e infiltrados entre as mulheres, colocando em perspectiva uma guerra de sexo contra sexo, e não de classe contra classe.

Tomou parte também desse processo uma série de correntes do feminismo socialista, que batalhavam contra a deturpação do que havia ficado conhecido como socialismo através da atuação do stalinismo. Com sua profunda negação do marxismo, a direção de Stalin negligenciou a luta contra a opressão em sua política, com a exaltação da mulher como mãe e do lar, o completo oposto do que defendeu o bolchevismo. Junto com as burocracias da social-democracia, cumpriram o papel nefasto de separar as demandas das mulheres das organizações operárias, como os sindicatos. [5]

Mas por que o nosso feminismo é socialista?

A partir desse breve resgate histórico, fica claro como a luta das mulheres é indissociável da luta de classes. Essa separação só interessa aos patrões e aos capitalistas. Retomando as lutas em que as socialistas estavam junto a milhares de mulheres na linha de frente, por que as feministas marxistas se diferenciam das outras feministas? Partimos de que todas querem acabar com a opressão patriarcal, mas em que divergimos?

A partir da análise marxista da história que diz que a sociedade é dividida em classes e que uma classe oprime e explora e a outra é oprimida e explorada, a grande questão colocada no movimento feminista hoje é um debate de estratégia. Para nós, revolucionárias, a pergunta é: quem será o sujeito político que vai levar a frente essa luta contra o patriarcado e com qual programa político?

O próprio Marx elaborou sobre as questões de gênero inseridas na luta de classes. Porém, a relação entre o feminismo e o marxismo vai muito além das passagens específicas que o Marx e o Engels escreveram: Marx nos deu as bases para entender o funcionamento do capital e a sua relação com o patriarcado e o racismo, além da utilidade do trabalho reprodutivo para a reprodução da força de trabalho. Esse e todos outros conceitos são fundamentais para nortear nossa atuação e permitem a utilização dessa teoria como um guia para ação, separando a nossa luta da das mulheres burguesas e de todos os conciliadores. Assim, como explicitado anteriormente, enxergamos que há uma relação profunda e perversa entre opressão e exploração e a luta contra ambas é a mesma. [6]

Para compreender, faremos uma viagem no tempo para o surgimento das primeiras correntes do pensamento socialista no desenvolvimento do movimento operário, o chamado socialismo utópico dos famosos Saint Simon, Charles Fourier e Owen, que já miravam o fim da exploração, porém, não tinham uma visão muito clara das classes sociais, como desenvolve o socialismo científico de Marx e Engels. De forma vulgar, os socialistas utópicos viam a emancipação do trabalho como uma tarefa de todo o mundo do trabalho, e não apenas da classe trabalhadora. Muitas vezes, é incluída a figura de Flora Tristán nesse socialismo [7], mas é preciso dizer que o pensamento dela foi muito além. Flora considerava que a classe trabalhadora era o sujeito de emancipação da exploração capitalista. Apesar de ser influenciada pelos utópicos, ela se afastava cada vez mais ideologicamente deles. Sem qualquer conhecimento de economia, ela se antecipou seis anos a potente ideia do Manifesto do Partido Comunista de Karl Marx e Friederich Engels, quando escreveu sua obra União Operária sobre a necessidade da classe trabalhadora se unir, superando as fragmentações nacionais, lutando por construir uma organização única no mundo inteiro. Isso lembra a famosa frase do manifesto “Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos!”. Em um de seus folhetos, Flora expressava o internacionalismo “nossa pátria deve ser o Universo” e percorreu diversas cidades militando por essa ideia da união operária.

Flora também foi a primeira a estabelecer uma relação entre gênero e classe, sendo pioneira no feminismo socialista. Buscava uma explicação para a opressão que as mulheres sofriam, mas, acima de tudo, quais os caminhos para a emancipação: "Operários, tratem de compreender bem isso: a lei que escraviza a mulher e a priva de instrução oprime também a vocês, homens proletários. Essa frase expressa fortemente que, para combater a ordem vigente, é necessária uma luta da classe trabalhadora de conjunto, colocando em perspectiva a superação das opressões sofridas pelo sistema capitalista e a emancipação das mulheres e de todo o proletariado.

O homem mais oprimido pode oprimir outro ser, que é sua mulher. A mulher é a proletária do proletariado. – Flora Tristán

Resgatar essa lutadora é fundamental na luta feminista socialista, justamente porque, se há duzentos anos, Flora já tirava essas conclusões – momento em que a classe trabalhadora feminina era milhões de vezes menor do que hoje –, já era possível ver que o sistema capitalista iria se apropriar do patriarcado para superexplorar e oprimir. A partir disso, os caminhos para a nossa emancipação passa por uma saída de classe e anticapitalista.

Nos anos subsequentes, como consequência da maior incorporação das mulheres ao mercado de trabalho, elas também foram incluídas no exército industrial de reserva (os desempregados) por serem mais “baratas”, ainda que fizessem o mesmo trabalho. Apesar de ter sido um avanço na luta feminista, essa inserção no mundo do trabalho ocorreu de forma totalmente precária, ou seja, foi acompanhada do que o Marx chama no Capital de “cheap labour” (trabalho barato). Esse conceito, em síntese, buscava dar conta de demonstrar que os mecanismos do capital enxergaram uma relação vantajosa na subordinação de grupos sociais por gênero, raça, sexualidade ou até mesmo idade: a opressão. Conseguiram dar passos importantes para um rebaixamento “natural” dos salários do conjunto da classe e melhor explorar. Com isso, o exército industrial de reserva, a massa de desempregados, as mulheres e as crianças foram utilizadas como ameaça permanente: sempre haverá alguém com um trabalho mais barato do que o seu.

São desses fundamentos que surgem a desigualdade salarial e a precarização do trabalho feminino [8] e se materializam no que vemos hoje. Não é à toa que as mulheres ocupam os postos mais precários de trabalho. São a esmagadora maioria das terceirizadas e, principalmente, estão nas categorias ligadas ao “cuidado natural”, como professoras, enfermeiras, empregadas domésticas e trabalho de limpeza. Isso conserva o elemento da opressão de gênero como fundamento principal da exploração capitalista, rebaixando os salários e apresentando essas profissões como uma “extensão do lar”.

Uma das grandes conquistas capitalistas a partir da entrada da mulher no mercado de trabalho foi a contraditória relação entre o trabalho produtivo e o trabalho reprodutivo dentro do “lar”, ou seja, além do trabalho pesadíssimo com salários de miséria, as mulheres ainda têm que fazer jus a posição de “donas do lar”, que é baseada na opressão de gênero e reforça-a. Quando as mulheres trabalhadoras chegam em casa depois de horas exaustivas trabalhando, iniciam uma outra jornada: precisam lavar, passar, cozinhar. Elas não têm escolha. Precisam fazer essas tarefas domésticas socialmente necessárias, ou seja, necessárias para o funcionamento da sociedade. Essas são as tarefas de reprodução da vida social, o trabalho reprodutivo, para que, no dia seguinte, elas, seus maridos e filhos continuem indo para os seus empregos normalmente, alimentados, com roupa limpa etc. Isso garante o trabalho produtivo, a reprodução da força de trabalho. Em outras palavras, assegura o lucro do patrão, pois o trabalho reprodutivo é gratuito, não remunerado pelos patrões, é invisibilizado pelo capitalismo porque essa manutenção da vida não é paga.

Tomemos um exemplo: se o salário corresponde [ou ao menos deveria corresponder] ao valor que o operário necessita para sobreviver e reproduzir, com o trabalho da mulher realizado de forma gratuita, o capitalista toma para si uma parte maior desse salário, não arcando com várias das tarefas necessárias para a reprodução da força de trabalho dos trabalhadores. Isso torna conveniente ao capitalismo invisibilizar o trabalho doméstico.

Essa é a dupla jornada de trabalho, que hoje pode ser tripla e até mesmo quádrupla. Ela garante a reprodução econômica do próprio sistema, pois o capitalismo não é capaz de eliminar o trabalho doméstico. Esse é um dos elementos fundamentais do porquê o capitalismo jamais pode acabar com a opressão a mulher. Assim como é o motivo pelo qual a luta das mulheres contra o patriarcado tem que ser unificada com a luta da classe trabalhadora contra a exploração. A luta pela derrubada do capitalismo, então, é a única luta que pode derrubar o patriarcado e também o racismo.

Por isso, não se trata apenas de dividir o trabalho doméstico entre homens e mulheres – que não descartamos que seja importante para enfrentar a opressão –, mas as ações mais fantásticas da classe operária mundial mostraram que esse serviço que aprisiona as mulheres dentro de casa deveria ser socializado. O fundamento disso é o simples fato de que é um trabalho socialmente necessário. Isso quer dizer que não deveria estar sob a responsabilidade individual. A experiência mais avançada na Rússia de 1917 levou à socialização do trabalho doméstico: havia lavanderias, restaurantes e creches públicas, assim, as mulheres não precisavam fazer comida em casa, lavar e passar a roupa, ou arcar integralmente com o cuidado das crianças, esse processo avançou para experiências de educação coletiva. Em uma sociedade capitalista, é impossível implementar essa socialização ou mesmo a redução da jornada de trabalho sem redução salarial.

Por isso, as feministas socialistas afirmam que é preciso enfrentar a sociedade capitalista para conquistar a emancipação das mulheres. É uma utopia acreditar que a emancipação das mulheres vai se dar enquanto se mantêm a exploração de uma enorme massa feminina. As mulheres são 70% da população mais pobre mundialmente e vivem junto das crianças sob as piores condições de vida.

Sem derrubar as estruturas sociais e econômicas existentes ou, dizendo de outra forma, sem preencher de conteúdo anticapitalista cada uma de nossas lutas e conquistas, a tendência natural do sistema capitalista é se reinventar, se apropriar, cooptar e domesticar cada passo que damos na conquista e ampliação de direitos, transformando nossa energia e nossa luta em matéria inofensiva contra o capital e muitas vezes em fortalecimento da estrutura atual vigente [9]. Romantizam a nossa luta e buscam apagar o legado de luta da nossa classe. Cabe a nós, feministas socialistas, marxistas e revolucionárias lutar e semear nossas ideias, apoiadas e nutridas nas melhores e mais desenvolvidas experiências da classe trabalhadora. Começando pela Revolução Russa de 17, a maior experiência histórica concreta onde os trabalhadores provaram que é, sim, possível tomar o céu por assalto, que colocou em xeque todo o sistema capitalista há 100 anos atrás e trouxe uma infinidade de possibilidades de uma vida sem exploração e opressão. É necessário também tirar as lições de toda a degeneração burocrática e stalinista desse processo, que fez retroceder a luta das mulheres. Precisamos resgatar a tradição daqueles que lutaram até o último momento em defesa das conquistas da revolução e do marxismo revolucionário, como Trotsky, mas também recuperar a história de todas as mulheres apagadas ou distorcidas pelos capitalistas.

O socialista que não é feminista carece de amplitude. Mas, quem é feminista e não é socialista carece de estratégia. – Louise Kneeland.

Nosso feminismo é socialista por que não queremos só resistir. Queremos libertar as relações pessoais das limitações impostas por uma sociedade regida pela propriedade privada e pela exploração de grande parte da humanidade, para que o amor, a sexualidade e a amizade possam renascer e se desenvolver em novas bases [10]. Queremos desfrutar das rosas, pois não nos limitaremos apenas ao direito ao pão (as condições materiais), mas lutaremos pelas rosas, por uma sociedade comunista e por uma vida plena de sentido.

Não temos como falar de feminismo socialista sem citar Rosa Luxemburgo, Clara Zetkin, Flora Tristán, Louise Michel, Alexandra Kollontai, Natalia Sedova e várias outras mulheres que nos inspiram a conduzir nossas batalhas a uma luta contra o Estado capitalista. Para nós, isso é uma questão estratégica. Precisamos de uma estratégia para vencer, que perpassa a organização das mulheres em partido revolucionário e impõe vários desafios para os revolucionários frente ao cenário atual. [11]

Continua na Parte II, a ser publicada.


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FOOTNOTES

[1Pão e Rosas: identidade de gênero e antagonismo de classe no capitalismo. Andrea D’Atri.

[3Capítulo 10 “O termidor no lar”, Revolução Traída. Leon Trótski.

[4Conclusão: O oxímoro de Stalin: Estado socialista, direito e família – Mulher, Estado e Revolução. Wendy Goldman.

[5Pão e Rosas: identidade de gênero e antagonismo de classe no capitalismo. Andrea D’Atri.

[7Capítulo 1: Pioneiras – Lutadoras: história de mulheres que fizeram história; Andrea D’Atri e Diana Assunção [org.].

[8Precarização tem rosto de mulher. Diana Assunção [org.].
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Jéssica Antunes

Luiza Eineck

Estudante de Serviço Social na UnB
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