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10 ANOS DE OCUPAÇÃO NO HAITI | Brasil e a ONU: 10 anos de “missão humanitária” ou continuidade da espoliação imperialista?

Vastos recursos são consumidos em uma das maiores e mais longas missões militares da história da ONU, que é liderada pelo Brasil. Do ponto de vista geopolítico é sem sombra de dúvida uma tentativa do Estado brasileiro mostrar-se um “grande ator” regional. Um atestado de “maioridade” para tentar ser membro permanente do Conselho de Segurança da ONU.

Leandro LanfrediRio de Janeiro | @leandrolanfrdi

quarta-feira 20 de maio de 2015 | 00:17

(Publicado originalmente na edição nº1 da Revista Luta de Classes)

A amplíssima maioria dos brasileiros desconhece a existência desta missão denominada MINUSTAH. Na mídia quando aparece algo deste país são duas ideias fortes que servem para justificar a missão: um país pobre e destruído pelo terremoto de 2010, associada uma segunda ideia, a de que é um país sem governo decorrente desta pobreza e destruição.

Deste modo, a missão da ONU e o papel brasileiro seria de uma “tutela”, algo como um “irmão mais velho” ajudando seu irmão mais novo a erguer-se na vida. Como mostraremos neste artigo, não há nada disto.

O Haiti pré MINUSTAH

Esta missão veio coroar mais um golpe de Estado dado pelas mãos dos EUA. É uma continuidade da longuíssima história de invasões imperialistas e de saque colonial, que vieram depois deste povo ter conduzido a segunda luta de independência na história mundial, entre 1791-1804 (pouquíssimos anos depois dos EUA), e o primeiro levante de escravos, levando a ser o primeiro país no mundo a abolir a escravidão.

O Haiti desde meados do final dos anos 80 passava por uma conturbada situação política. A ditadura sanguinária de Papa Doc e depois seu filho Baby Doc (que governavam o país desde o golpe de 57), mesmo com todo o apoio dos EUA, já não tinha mais condição de manter-se no poder. Ocorriam poderosas revoltas populares.

Em 1986 Baby Doc se exilou na França e deixou em seu lugar o general Namphy. Este general governa até as eleições de 88, porém neste mesmo ano dá um golpe contra o presidente eleito. Em 1990 é realizada uma nova eleição onde ganha Aristide (um padre com discurso reformista e de “conciliação nacional”). Em 1991 Aristide é deposto em um golpe militar. A ONU impõe sanções ao Haiti, e Aristide só volta ao poder 1994 após uma invasão americana autorizada pela ONU.

A partir de cerca do ano 2000 começam a ocorrer novas mobilizações massivas no Haiti, desta vez contra Aristide, acusado de ter ganho as eleições através de fraude eleitoral. Em 2004 forças paramilitares ligadas aos antigos ditadores, os tontons macoutes (que em crioule significa “bichos papões”), incentivam este levantamento e promovem chacinas. Neste mesmo ano Aristide é sequestrado por forças militares americanas e transportado por fuzileiros navais ianques à África do Sul. Assume um governo interino vindo dos EUA. Neste mesmo ano a ONU autoriza a MINUSTAH , composta sobretudo por países latino-americanos e sob liderança brasileira.

Porque a ONU e o Brasil, e não mais uma invasão ianque?

O ano era 2004. Os EUA, tal como hoje, conservavam capacidade de invadir quase qualquer país (ainda que os efeitos das derrotas no Oriente Médio, na administração Obama, viessem a tornar quase impraticáveis as intervenções militares terrestres). Porém, invadir não significa capacidade para dominar, para conquistar, para obter “hegemonia”. Massivas mobilizações em todo o mundo opunham-se desde 2003 a invasão norteamericana no Iraque. Sem esta capacidade de “convencimento” e desgastado militarmente pela ocupação tanto do Iraque como do Afeganistão, a ONU optou, como resposta política e militar, não comprometer os EUA.

Os países latino-americanos, muitos deles sob novos governos que chamamos de “pós-neoliberais”, com cara e discurso mais popular, e com grande simpatia em todo o continente como o Brasil liderado por Lula, poderiam oferecer uma cara menos “ianque” e mais de “irmãos latino-americanos” a esta invasão. Usaram até a seleção brasileira em um jogo amistoso, com direito a desfile dos jogadores campeões do mundo (em 2002) em tanques de guerra. Com rifles e chuteiras o Brasil e outros países latino-americanos garantiam tanto o “consenso” como a “coerção” para um golpe ao sabor dos velhos dominadores do Haiti.

O que a MINUSTAH veio fazendo deste então

Parte importante dos "capacetes azuis” atuam em regiões menos povoadas do Haiti, como a fronteira com a república dominicana no departamento “Nord-Est”. Porém o grosso da população concentra-se nos departamentos “Ouest” e sudeste, onde estão Porto Príncipe e outras grandes cidades. Por quê?

Porque naquela região estão se instalando grandes indústrias têxteis que aproveitam o não pagamento de impostos nas exportações aos EUA. Há parcerias de empresas brasileiras nesta empreitada. O Haiti está sendo usado para virar uma “Bangladesh”, com força de trabalho miserável (salários mensais inferiores a US$ 5!), e com "capacetes azuis" para reprimir greves (como já fizeram várias vezes).

Este aspecto da missão, além de vários outros, é desenvolvido em uma recente tese de doutorado defendida por um pesquisador haitiano na UNICAMP. Este pesquisador, Franck Seguy, afirmou que “em 2008 houve movimentos contra o encarecimento da cesta básica e, em 2009, muitos movimentos operários pelo reajuste do salário mínimo. Qual o papel do Exército brasileiro em tais ocasiões? Repressão. O papel do Brasil é o papel policial, de reprimir qualquer movimento contra esta ordem que se está caracterizando no Haiti”.

Em entrevista concedida ao jornal Brasil de Fato durante visita oficial ao Brasil, em maio do ano passado, o senador haitiano Jean Charles Moises, autor de um projeto de lei que foi aprovado no senado, que pede a saída gradativa das tropas estrangeiras de seu país, fez uma série de denúncias referentes à atuação da Minustah na repressão ao movimento popular e sindical. “Uma das ações das tropas é dispersar manifestações populares e acabar com qualquer forma de protesto do povo haitiano”.

Para Moises, o papel das tropas estrangeiras no Haiti é assegurar o domínio político e econômico de outros países por intermédio da intervenção militar. “Quem ocupou realmente o Haiti foram os Estados Unidos, França e Canadá. O Brasil é só um fantoche. Por isso estamos em campanha para sensibilizar os dirigentes latino-americanos para que ajudem a incidir sobre a situação da retirada das tropas no país”, explicou em entrevista ao jornal Brasil de Fato.

Fora este aspecto “econômico” as tropas da MINUSTAH testam, sob liderança brasileira, formas de contenção e repressão dos “pobres urbanos”. Foram testados dois modelos de ocupação de favelas no Haiti. Primeiro Cité Soleil em uma sangrenta operação militar em 2006 que deixou quase uma centena de mortos e feridos aos milhares e causou grande revolta; depois, uma nova modalidade, utilizando números muito superiores de militares em outra imensa favela, Bel Air, com repressão diária e cotidiana. Bel Air foi muito mais custosa mas mais exitosa. Do modelo de Bel Air surgiram as UPPs cariocas, que estão lá para garantir que as contradições sociais, sentidas em sua maioria pelos negros tanto daqui quanto de lá, sejam caladas com balas e sangue.

A falácia da ajuda humanitária pós-terremoto

O terremoto de 2010 destruiu grande parte do que restava da infraestrutura da capital Porto Príncipe e deixou cerca de 200 mil mortos, além de outros milhares de feridos e quase 2 milhões de desabrigados. Sensibilizados por esta situação trabalhadores de todo o mundo fizeram doações para “ajuda humanitária”. Porém com tantas doações, como pode ainda haver fome, desabrigados e até epidemias de cólera?

Até a grande mídia brasileira é obrigada a reconhecer que há algo muito falho. A revista Exame constatou que em 2 anos foi recolhido como ajuda humanitária cerca de US$ 9 bilhões (mais ou menos o PIB haitiano) porém constata que o país segue miserável. Como? Ela mesma explica: “Estima-se que mais de 1.000 ONGs operem no país hoje, com enorme sobreposição de atividades entre elas. Outro problema recorrente envolvendo as ONGs é a falta de transparência na aplicação dos recursos. De cada 100 dólares que elas gerem no país, apenas 2 dólares (sim, 2 dólares) são rastreados e sua aplicação é conhecida. Um convite ao desperdício e ao desvio de verbas”.

Para completar, o Banco Mundial (Bird) e o Fundo Monetário Internacional (FMI) emprestaram dinheiro ao Haiti, que será pago com juros, mesmo que o prazo tenha sido protelado pelas instituições financeiras. A depender destas agências a conta dessa fatura, mais uma vez, será paga com o sangue e o suor dos haitianos.
Esta ajuda não é neutra.

Ela continua a espoliação haitiana. Qualquer ajuda verdadeira começaria por um plano de obras públicas que gerasse emprego para a população e colocasse o país de pé construindo casas, hospitais e estradas. O Haiti precisa de médicos, engenheiros, técnicos, todo um corpo de profissionais tecnicamente capazes de orientar a reconstrução do país e sob a orientação do povo haitiano, e não sob tutela de tropas e agências internacionais que gastam efetivamente só 2% do que arrecadam com os haitianos!

Um povo que soube derrotar as tropas de Napoleão é incapaz de se governar?

Uma explicação mais profunda da justificativa para as muitas invasões estrangeiras e agora para a ONU e agências internacionais, seria de uma “incapacidade” do país se governar, por ser muito pobre, muito violento.

Esta “antropologia imperialista” do povo haitiano é interessada e racista. Como um povo com a história grandiosa como a do Haiti seria ingovernável, e mais, incapaz de auto-governo? De onde vêm estas dificuldades e pobreza? Para desmontar rapidamente esta mentira contaremos a seguir algo da história deste povo e da história de opressão e saque imperialista que explicam sua pobreza atual.

A Ilha de Santo Domingo era das mais prósperas colônias das Américas. A riqueza das mais de 2 mil fazendas era fruto da brutal exploração de meio milhão de escravos africanos, justificada com a falácia de que não eram seres humanos, mas bestas.

Após cerca de 300 anos de escravidão e exploração, acontece a grande revolução no Haiti, após a expulsão dos exércitos ingleses e espanhóis sob liderança do ex-escravo Toussaint L’Ouverture. O jovem governo destes “jacobinos negros” reduziu o trabalho a 9 horas, pela primeira vez na história, e deu o direito aos trabalhadores de ficarem com a quarta parte dos lucros.

Em 1801, L’Ouverture emitiu uma constituição para Saint-Domingue que previa a autonomia e o decretava governador vitalício. Mas Thomas Jefferson ganhou as eleições nos EUA de 1800 e ao subir à presidência em 4 de março de 1801, sendo ele mesmo escravagista, virou-se contra Toussaint e informou a França que a abasteceria do que precisasse para reconquistar o Haiti.

Após o fim da guerra com a Inglaterra, Napoleão conseguiu contar com as duas forças anglo-saxônicas para invadir a Ilha caribenha com uma grande expedição militar francesa, liderada pelo seu cunhado Charles Leclerc, para restaurar a lei francesa e, sob instruções secretas, repor a escravatura. Mesmo com L’Ouverture capturado os haitianos conseguem derrotar os 50 mil soldados franceses.

O que aconteceu desta guerra até os nossos dias?

Em 1825, sob nova ameaça de invasão francesa, o Haiti concordou em fazer reparações aos antigos donos de escravos, na ordem dos 150 milhões de francos (em troca do reconhecimento da sua independência). Esta situação fez com que o país recém liberto se afundasse em dívidas cada vez mais profundas e não conseguisse desenvolver seu comércio ou sua indústria, seja pelo peso das dívidas, seja pelo embargo declarado e não declarado das potências (incluindo os EUA que só reconheceu o Haiti em 1862 em meio a sua guerra civil).

A história do século XX não deixa muito a dever a do XIX. Os EUA ocuparam o Haiti de 1915 a 1934, interferiram em eleições, aplicaram golpes de Estado. Apoiaram o ditador Papa Doc. Já narramos acima o papel recente dos EUA no país. Mas há um aspecto mais indireto da opressão imperialista a exemplificar: houve uma sistemática destruição da agricultura haitiana para tornar a força de trabalho mais barata.

Nos anos 1990, Clinton forçou o Haiti a comprar arroz e outros cereais norteamericanos subsidiados. Parecia um bom negócio, era mais barato que o arroz e cereais haitianos. Porém com este “dumping”, pago pelos EUA, quebraram toda a agricultura haitiana. Forçaram a migração às cidades e o consequente aumento do desemprego e barateamento da força de trabalho.

O plano para instalar “fábricas de suor” estava pronto. Só faltava as zonas francas, como a de Ouanaminthe, e as tropas para manter a ordem de quem receberia salários de 5 dólares ao mês. Este é o resumo sumário que a intervenção da ONU, junto ao terremoto, desemprego e governos capachos garantiram. Estas zonas francas começaram no governo de Aristide.

Dentro desta Zona Franca a fábrica que mais se destaca é a fábrica Codevi. Esta fábrica confecciona jeans para marcas famosas, como Levi’s e Wrangler, e é parte de um conglomerado dominicano (o Grupo M), ligado ao imperialista Chase Manhattan. Esta fábrica já foi palco de demissão de grevistas e até de ter capangas armados para amedrontar trabalhadores em meio ao trabalho. A escravidão revive nestas zonas francas.

Uma dívida com os haitianos

O medo dos escravocratas dos EUA e do Brasil que se produzisse um "Novo Haiti" era onipresente no século XIX. Toda a causa antiescravista do mundo deve aos haitianos. As independências da América Latina devem a este pequeno país, que não só forneceu ideias como tropas e generais para a luta de independência da Venezuela e outros países. Toda a causa da “liberdade” e da “igualdade” em nosso continente é tributária da grande revolução dos negros neste país. O Brasil é o país de maior população negra nas Américas. Nos livrar de toda herança escravagista é ainda uma tarefa dos negros e de todos trabalhadores em nosso país.

E parte desta luta é voltar-se contra a opressão e assassinatos cometidos nas favelas pelas UPPs, que bebem diretamente da experiência brasileira no Haiti, mas também começando a pagar esta “dívida moral” aprendendo com a grande revolução negra dos haitianos, sua história de resistência à espoliação imperialista, agora “disfarçada” pela via da ONU e do Brasil. Isto passa por lutar por dignas condições de moradia, trabalho e direitos aos haitianos que se refugiam em nosso país, e fazermos uma grande campanha contra as tropas brasileiras naquele país que servem para oprimir os haitianos.

A luta dos haitianos e dos brasileiros está entrelaçada, pela história escravagista de nossas elites, pela maioria negra de nossos povos, por esta missão a disfarçar a dominação imperialista. Como dizia Lênin baseando-se em Engels: “não pode ser livre um povo que oprime outros povos” . E assim, podemos dizer, ao contrário da famosa música, que o Brasil também é ali! A luta contra o racismo no Brasil é também uma luta contra as tropas brasileiras no Haiti.




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