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As eleições municipais e o retorno de Geisel

Thiago FlaméSão Paulo

terça-feira 15 de dezembro de 2020 | Edição do dia

Quando a ditadura militar dava seus primeiros sinais de esgotamento em 1974, com a crise do petróleo a nível internacional e a derrota para a oposição consentida, o velho MDB, nas eleições, o novo general que vinha substituir Médici na presidência lançou a política de “abertura lenta, gradual e segura”.

O que os generais queriam era transitar da ditadura, que vinha dos seus anos mais sombrios, para uma democracia tutelada e controlada pelos representantes civis da ditadura, aglutinados então no Arena, o partido da ditadura. Os planos no entanto, não saíram como desejado.

Com as grandes greves do ABC, iniciadas em 1978, irrompe na cena política o movimento operário, que aglutina atrás de si todos os setores sociais opositores à ditadura. A radicalidade e massividade do movimento operário entre 1978 e 1980 colocou na ordem no dia a possibilidade da derrubada da ditadura pela força da mobilização.

Essa alternativa não se deu, não por falta de empenho da classe trabalhadora. Nos livros de história, por exemplo, podemos aprender como nos momentos decisivos da greve dos metalúrgicos e do cerco militar à região, se esgotou o estoque de armas brancas, pois os operários se preparavam para um enfrentamento ao exército com todas as suas forças – enfrentamento para o qual contavam com amplo apoio popular. A direção lulista dessas mobilizações não desejava um enfrentamento dessa natureza e nem uma derrocada da ditadura por via revolucionária.

Os termos da transição lenta e gradual tiveram que ser repactuados, pois a segurança para as classes dominantes estava ameaçada. Tidos como moderados, em oposição a linha dura que era contra qualquer transição, os militares em torno do presidente Geisel e do general Golbery (idealizador do sombrio SNI – Sistema Nacional de Informações) sonhavam com um regime em que políticos como Paulo Maluf estivessem no controle. Tiveram que aceitar um novo arranjo, em que o MDB (e depois o PSDB) e o nascente PT tivessem o lugar de destaque que queriam para o seu Arena e para tanto foram obrigados a conter as bestas feras que alimentavam nos porões, de onde surgiram figuras como Bolsonaro e seu ídolo, o coronel Ulstra. Como contrapartida, PT e MDB se esforçavam para conter a classe trabalhadora dentro de limites aceitáveis para a doutrina de segurança nacional.

Parte do arranjo foi a ruptura com o Arena (que já se chamava PDS nesse momento) de uma serie de políticos, como Antonio Carlos Magalhães, para a formação do PFL (hoje DEM) e o apoio ao candidato do MDB nas eleições indiretas de 1985. A posterior constituição de 1988 cristalizou uma correlação de forças contraditória, em que uma série de conquistas sociais tiveram que ser concedidas ao movimento de massas, enquanto os generais e torturadores saiam impunes e conservando grande peso no sistema político.

Desde então, através de uma série de reformas constitucionais a elite empresarial e seus políticos vem retirando paulatinamente da constituição algumas das conquistas que cederam em 1988. Se podemos resumir o sentido histórico de golpe institucional de 2016, poderíamos dizer que foi a tentativa de eliminar pela raiz os efeitos de longo prazo do ascenso operário no sistema político e nos direitos sociais. Golpe em duas etapas, pois foi necessário que Bolsonaro vencesse umas eleições manipuladas pela prisão de Lula em 2018 para que a obra do golpe pudesse prosseguir.

As eleições de 2020 então parecem indicar a estabilização de um novo regime político pós-golpe, muito mais parecido com o que arquitetaram Geisel e Golbery nos anos 70, do que aquele que veio a se efetivar com a constituinte de 1988 e o desvio das mobilizações operárias. Os partidos que mais avançaram nas eleições são os herdeiros políticos do Arena. O PP fundado por Paulo Maluf, o DEM, o PSD de Kassab que vem de uma ruptura do DEM foram os que mais cresceram, junto com o Avante, ex PTdoB, partido dos burocratas sindicais pró-ditadura. Um sinal de como os novos tempos mimetizam o passado são as mostras de como Ciro Gomes, jovem político do Arena, que depois passou pelo PSDB e pelo governo Lula, agora volta ao seu berço político, estendendo a mão para o DEM. Os generais, por assim dizer moderados, governam o país e controlam – e alimentam – os cães raivosos que saíram dos sombrios porões para a presidência da republica.

Geisel, em 1993, criticava Bolsonaro como um mau militar. É muito revelador que seu projeto de sistema político em que os herdeiros do Arena estão em primeiro plano só tenha sido possível num país governado pelos “maus militares”. Para que os moderadores possam entrar em cena é preciso que a extrema direita esteja fortalecida. Nos anos 60 Golbery criou o SNI, que depois teve que controlar, da mesma forma que Bolsonaro só foi eleito graças a ajuda do Alto Comando, apesar das mostras de desprezo de um Villas Boas em fim de carreira para com o “Messias” eleito.

O inesperado dessa situação é que boa parte da esquerda, inclusive parte dos que se reivindicam revolucionários, tenham apoiado no segundo turno carioca uma parte do antigo Arena contra a outra. Acreditam que podem conter os cães raivosos se aliando com os donos do canil.

Os militares, o STF e os políticos herdeiros da ditadura estão formando um novo regime político, para terminar de liquidar com as conquistas do ascenso operário. Cabe a nós refundar a esquerda, recolhendo os exemplos de radicalidade de um movimento operário que quis formar um partido seu, sem empresários e generais, e superando o que terminou tendo o PT, um partido que se aliou com figuras como Paulo Maluf para governar.




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