×

CRÔNICAS HOSPITALARES | Argentina sem máscaras: “Não ter pedaços de pano em um mundo onde voam drones”

Uma profissional de saúde de La Plata - Argentina, conta algumas das histórias vividas todos os dias em meio à pandemia. A luta pela saúde pública contra o descaso do Estado e das autoridades em um hospital.

quinta-feira 9 de abril de 2020 | Edição do dia

A pessoa da foto sou eu. Trata-se de um jaleco não hemo repelente que, para além das recomendações e dos detalhes técnicos, deixa expostos os antebraços.

Como se soubéssemos, a mãe de uma médica nos fez alguns de plástico, para usarmos por cima em princípio, mas prevendo que podemos chegar a ficar sem nada. Uma demonstração do amor do povo de Los Hornos, do bairro. Mas não foi o suficiente, e quando me movi para verificar Paula, meus braços estavam ao vento.
Minha companheira me olhava, sabíamos que nada estava bem.

No rosto, meus óculos, porque que sentido teria usar óculos de proteção idênticos aos meus? Para que... e por cima, para dar mais vida à máscara N95 que tratamos como ouro, uma máscara feita pelos estudantes. Mais uma vez, o amor de quem faz.

Não é apenas não ter equipamento de proteção individual. É que, enquanto você está indignada porque em todo o hospital existem apenas 16 máscaras, um supervisor vem lhe dizer que, se você não quiser usar a máscara de camada única, que não tem nenhuma certificação, que apresente sua demissão.

Como se fosse apenas para quem quer uma máscara como a gente, quando é para você, para seu parceiro, para sua família e talvez para seus amigos, para o dia em que possamos abraçar novamente. Mas não é só isso, é que também amamos o que fazemos.

Não sei o que diabos há em cuidar, em ajudar a curar. Eu acho que é o falar, o compartilhar, o ajudar um pouco entre tanta miséria e, embora pouco, o que fazemos ajuda. E essa máscara fina nos expõe a adoecer, e nos tira dali, de onde queremos estar.

Paula olhava para mim, vestida como um astronauta. Eu disse para ficar calma, que ela está bem. Mas por dentro pensava no que ela estava fazendo ali, por que a internávamos, com quais critérios, e lembrava dos poucos protocolos e amaldiçoava todos esses funcionários que não escrevem o que diabos fazer. E quando decretam algo, te faz querer bater a cabeça contra a ´parede: indicações para hospitalização ambulatorial com requisitos que nem mesmo 10% da população que atendemos cumprem. Ridículos? Cínicos.

Paula me olhava fixamente, apesar de responder com um sorriso às minhas tentativas de animá-la. Ela me ajudou com as amostras, fechou os olhos e abriu a boca e colocou o cotonete no nariz. Fizemos uma festa. Eu olhei para ela, e para sua mãe Claudia, que segurava sua mão, e lembrei da minha colega enfermeira que na assembleia disse que há vinte dias não abraça as filhas, mas a Juan e o resto das crianças da ala dá banho e colo todas as manhãs. Esta é a Casa Cuna.

É assim que trabalhamos. Com a angústia de não ter os materiais certos, que nada mais são do que pedaços de tecido, em um mundo em que drones e satélites voam pelo ar.

É assim que trabalhamos. Hoje com 5 bolos de aniversário, pôsteres e vídeos com fotos de comemorações, porque nossa companheira comemora hoje apenas conosco.

É assim que trabalhamos. Escapando por um tempo para ir a uma assembleia, de onde todos os serviços, radiologia, enfermagem, ensino, limpeza, cozinha, lactação, consultório médico, segurança, residentes, psicologia, fonoaudiologia, costura, farmácia e todos os seres que transitam por esse espaço, merecem outra coisa: recursos, salários de acordo com a necessidade da família, não sendo forçados a ter dois trabalhos ou fazer malabarismos para atender as consultas.

É assim que trabalhamos. Alguns com a sorte de ser uma pequena parte da população que teve a possibilidade de trabalhar no que gosta.

É assim que trabalhamos. Tendo em nossas mãos, e nada mais do que em nossas mãos, as vidas de nossos pacientes e de suas famílias, que são os que constroem as escolas, fazem o transporte funcionar, fazem os móveis que usamos, as roupas que vestimos, servem atrás de um balcão, enchem as gôndolas do supermercado, fabricam comida.

Nós movemos o mundo. São nossas mãos, dos trabalhadores, que podem transformar a história. Por que tanta miséria? Por que tanta pobreza? Não vamos jogar a culpa em um vírus, pois este mundo já está virado de cabeça para baixo e é hora de mudá-lo.

Texto publicado originalmente em espanhol no La Izquierda Diario, integrante argentino da Rede Internacional de Diários La Izquierda Diario.




Comentários

Deixar Comentário


Destacados del día

Últimas noticias