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LITERATURA | Antonio Lobo Antunes, vida e obra se confundem

Antonio Lobo Antunes nasceu em Benfica, Lisboa, no dia 1 de setembro de 1942. Antes de se tornar o grande escritor que chegou a concorrer ao prêmio Nobel – prêmio que perdeu para Saramago, passando a ser conhecido como o anti-Saramago – se formou como psiquiatra, profissão que permeia muito de seus romances. Esse é apenas o primeiro fator biográfico que será constituinte fundamental das obras de Lobo Antunes.

Gabriela FarrabrásSão Paulo | @gabriela_eagle

sexta-feira 29 de maio de 2015 | 00:00

Outro fator biográfico que saltará aos olhos em sua obra será o tempo que viveu na África, entre 1970 e 1973 como tenente médico do exército português na guerra do Ultramar – nome dado pelos portugueses a guerra colonial contra os exércitos africanos de libertação. Após retornar da guerra exerceu a psiquiatria no hospital Miguel Bombarda em Lisboa até 1985. É desse momento, da volta da guerra e do trabalho no hospital, que tratará seu primeiro e mais renomado romance, “Memória de Elefante”, lançado em 1979.

No mesmo ano lançou o livro “Os cus de Judas” e no ano seguinte, o “Conhecimento do Inferno”, se tornando um dos escritores mais lidos e conhecidos dessa época. Essas primeiras obras trazem com força a experiência pessoal na guerra colonial. Suas obras posteriores possuem cada vez mais a tentativa de recontar a história de Portugal sem as fantasias da epopeia e do falso heroísmo português.

A psiquiatria, a presença na guerra na África junto a separação da mulher formam a tríade sobre a qual se baseia toda sua obra, sendo o último fato biográfico – a separação da mulher - o cerne principal de seus romances. Há um senso comum e um tanto clichê que diz que para se esquecer um amor é preciso escrever um romance, para Lobo Antunes foi preciso escrever uma obra inteira e ainda assim, ele não pôde esquecer a mulher que amou.

Esses fatos biográficos formam os seus personagens que carregam crises conjugais, contradições revolucionárias, traumas da guerra do ultramar e um pessimismo imenso em relação a um futuro próspero. Isso tudo aparecerá de forma gritante no seu primeiro personagem presente no romance “Memória de Elefante”; e é, em última instância, o retrato de uma geração portuguesa que acaba de se libertar do Estado Novo e começa a se democratizar, com uma burguesia saudosa de Salazar, com famílias disfuncionais, perdidas após o 25 de abril – famosa “revolução dos cravos” -: enfim, todo o fim de um sonho burguês no qual Portugal vivia.

Sua escrita densa, mas corrida, como um fluxo de pensamento, apesar de não ser fácil de deglutir foi muito bem aceita pelo público, ao contrário da crítica, e é um dos fatores de encantamento de sua lírica. Sua lírica é também claustrofóbica, paranóica, obsessiva e labiríntica onde o mundo interior dos personagens se sobrepõe e se misturam a realidade, assim como passado, memória e acontecimentos presentes.

Antonio Lobo Antunes em sua obra

O personagem principal de “Memória de Elefante” não nos é apresentado, ele é colocado a nossa frente e resta a nós que o desvendemos abruptamente, com a vantagem de termos acesso a todos os seus pensamentos e rememorações que vão se sobrepondo e se misturando a realidade, ou desistir da leitura que se mostra inicialmente difícil e confusa, onde a voz do narrador é por vezes de uma terceira pessoa e outras do próprio personagem sem que haja uma delimitação de mudança entre elas, mas que ganha pelo estilo corrido e pelas frases e até parágrafos inteiros escritos poeticamente, levando o leitor a degustar repetidamente trechos inteiros.

O personagem principal do romance é Lobo Antunes em seu período que trabalhou como psiquiatra em um hospital; em realidade na época em que escrevia o livro o autor ainda exercia a profissão em um hospital.

O hospital psiquiátrico é apresentado como o lugar de desova de todos aqueles que a sociedade não suporta ver – desde o filho viciado em drogas de uma família pequeno burguesa até os desvalidos encaminhado ao hospital pela polícia, para tirá-los das ruas, deixando-os longe dos olhos da população - por ser os ditos loucos o reflexo da verdadeira insanidade que é a sociedade em si. Pessoas que são dopadas com inúmeras injeções, a ultra medicalização, como única forma falha de cura. É nesse cenário que encontramos o personagem, que é também o escritor dessa obra, um médico em depressão, que quis um dia lutar para que a saúde mental fosse tratada da forma e com a seriedade que devia e que agora se vê servindo ao descaso com que ela é encarada.

Na invasão que o narrador nos leva a realizar no mundo interno do médico descobrimos pensamento após pensamento, memória após memória, lembrança após lembrança o passado dele e o que o leva a estar no “fundo do fundo”; as lembranças do tempo em que viveu em Angola vão se revelando ao leitor pouco a pouco e confusamente, assim como a vida passada com a esposa e as duas filhas, antes da solidão que o assola agora, antes de desistir da luta em que nem entrou. É impressionante quando nos damos conta de que descobrimos todo esse passado pouco a pouco em uma obra que narra apenas um dia na vida do personagem principal.

Quando o médico revela estar no “fundo do fundo” vamos descobrindo de memória em memória a incapacidade do médico de superar o divórcio, o fim de uma relação que não terminou por falta de amor; é também a relação que Lobo Antunes não conseguiu superar. Terminou talvez pela insegurança do psiquiatra que sempre se sentiu menor que a esposa, pela sua falta de coragem e vontade de lutar para que a relação continuasse, pela culpa que sentia em relação à distância que não conseguia transpor com as duas filhas. A narrativa é a busca de um dia – que se repetirá todos os dias – para esquecer a mulher ou para voltar a ela e todo o amor que ele ainda sente, eles ainda sentem.

Outras razões que apontam ser o motivo da tristeza do médico é a sua infância, todo o amor que ele acusa sua mãe, sua avó e suas tias de não ter lhe dado, por ser o irmão mais velho; que talvez seja o amor que ele não consegue dar a suas filhas, que ele não tem nem coragem de buscar na saída da escola.

Entre todas as tábuas de salva vida que ainda o mantém são está a “esquerda” a qual ele se agarra como uma outra fé. Segundo ele a esquerda é para ele, e para os outros, o que é a fé em Deus para os católicos. Aqui se mostra a contradição enorme de um médico acomodado, que foi a guerra colonial e se diz de esquerda. Mas ele também se agarra as mulheres, a bebida, a aposta no casino; qualquer coisa para esquecer a ausência da esposa e das filhas, a ausência de uma vida em família, organizada, que ele não tem mais, tendo agora que lidar com a solidão.

As memórias da mulher se misturam ao tempo na África quando perdeu o nascimento de sua filha mais velha, fato que ele cita para justificar a distância entre ele e a filha que ele não consegue superar, dizendo que a filha nunca o perdoou por não a ter sentido ainda na barriga. A saudade da esposa, o tempo que a teve junto a ele na África e que acabou quando ela teve que voltar com a filha para Portugal pela fome que ela passava; o que revela o lado pobre do país que queria se livrar da colonização, da pobreza que essa lhe causava em nome da exploração. Sobre esse momento que sua esposa e sua filha mais velha viveram com ele na África ele se lembra dos desmaios da esposa e da falta de comida para crianças que deixou a filha “magra e pálida, com a cor amarelada dos brancos de Angola, ferrugenta de febre.”

A narrativa de Antonio Lobo Antunes encanta e ganha o leitor com suas frases muito bem construídas que deliciam e levam o leitor a ter que parar para respirar entre os longos e claustrofóbicos parágrafos. A suas crises com o estado da saúde mental, a guerra colonial, e a nova sociedade portuguesa aparecem entre jorros de pensamentos do personagem principal, mas abertamente. Torna-se impossível para o leitor não se identificar minimamente no sentimento de descolamento na solidão do psiquiatra pós o fim do seu relacionamento, que é também a solidão do escritor e a solidão de nós leitores. Antonio Lobo Antunes é um grande escritor de língua portuguesa que merece cada vez mais ser lido, relido e recitado.




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