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segunda-feira 27 de junho de 2016 | Edição do dia
Tradução: Mauro Sala

Grahan Robb é autor do livro Extraños: amores homosexuales en el siglo XIX (Estranhos: amores homossexuais no século XIX). Aceito em Línguas Modernas em Oxford, Robb reconstrói uma história da homossexualidade no século XIX.

“Os homossexuais devem ser suspensos, açoitados, castrados e enviados ao seu país”. A frase, alguém poderia pensar, saiu de um obscuro arquivo da inquisição espanhola do século XII, ou de um manual de moral vitoriana de fins do XIX. Mas não, é próxima ao nosso tempo: a avançada Grã-Bretanha, em 1986.

Um dos méritos de Estranhos em parte é desfazer aquela imagem contrastante entre um século XIX obscuro, cenário de uma ameaçadora perseguição, e um século XX que luzia por sua tolerância e abertura sexual. No mesmo caminho, refuta a ideia de que a homossexualidade e sua figura foram construídas apenas por volta de 1870 por um conjunto de circunstâncias: o desenvolvimento capitalista e os discursos das ciências modernas, como a medicina e a teoria judicial. Desde essa óptica, não existiria experiência homossexual antes de que fosse formulada discursivamente.

É assim que na busca de um “ponto de vista mais alegre do passado”, Robb sustenta que a experiência homossexual do século XIX foi mais variada e extensa do que se acredita. Para isso se vale de um corpo de fontes profundamente analisadas: autobiografias, novelas, diários pessoais, informes médicos etc. Reconstrói dessa maneira uma gama de situações que vão desde o segredo e o olhar criminalizador até momentos de relativa liberdade e exposição que ilumina um aspecto pouco resgatado pelo relato homossexual do século XX.

As sombras da opressão

O código penal da Revolução francesa de 1791 despenalizou as relações sexuais entre homens ao não fazer referência a elas. Antes de terminar o século XIX os atos homossexuais deixaram de estarem proibidos na Bélgica, Itália, Luxemburgo, Mônaco, Portugal, Romênia e Espanha. Nos Estados Unidos as condenações foram raras até a década de oitenta do mesmo século.

A legislação anti-homossexual na França se reintroduziu em 1942 com o regime de Petain e na década de sessenta as penas por indecência homossexual aumentaram de seis meses para três anos de prisão. O mesmo para Alemanha, onde a legislação nazista de 1935, onde um simples beijo ou aperto de mão poderia mandar um homem para a cadeia, sobreviveu à Guerra mundial e os poucos homossexuais sobreviventes dos campos de concentração foram enviados para o cárcere.

Mas onde mais se expressou esse tipo de legislação persecutória foi a Grã-Bretanha, onde em meados do século se deu uma das décadas em que mais julgamentos por sodomia foram realizaram.

Através de uma minuciosa análise do corpo de leis ou dos discursos médicos, Robb mostra a maneira em que o século XX é testemunha de um recrudescer nas práticas contra a homossexualidade. De fato assinala que os intentos de “curá-la” foram raros antes dos anos oitenta do século XIX. Imputar todo o peso da repressão a estes anos não é mais que prolongar a sombra sobre a legislação mais abertamente homossexual do século XX.

Um mapa da homossexualidade no século XIX

Se na primeira parte do livro o autor se ocupa das sombras da opressão, sua segunda parte descreverá a sociabilidade homossexual e os primeiros movimentos de solidariedade e organização homossocial, nas palavras de Graham Robb.

Dedicado a reconstruir a maneira como os homens e mulheres homossexuais se descobriram a si mesmos e fizeram contato com pessoas parecidas, Robb reconstrói o mapa da sociabilidade homossexual na Europa e nos Estados Unidos do século XIX. Neste mundo, “decifrar as mensagens codificadas não era apenas um inconveniente, poderia ser uma arte prazerosa por direito próprio”. A linguagem não-verbal era tão ou mais importante que as palavras. Os lenços vermelhos nos Estados Unidos, Brasil, Rússia e Itália, as fitas de veludo e botas vermelhas dos homossexuais de são Petesburgo, a mão sobre a cadeira na Holanda; todas elas manifestações que em plena luz do dia construíam códigos a partir dos quais identificar a si mesmo e aos outros.

A urbanização também trazia consigo o surgimento de comunidades gays e lésbicas. Organizados em clubes ou círculos se reforçava um sentido de identidade social. Detrás de eufemismos como o “Club degli Ingoranti” de Roma ou a “Réunion Philanthropique” de Bruxelas, se escondiam na verdade espaços de socialização homossexual. Dos cafés do Souris e Le Rat Mort, em Paris, aos lugares de encontro de lésbicas na rua Unter den Linden, em Berlim, às docas de Barcelona ou à Ilha de Capri, a meca homossexual europeia, se desenvolvia uma intensa vida homossexual.

Em fins do século XIX apareceu o Comitê Científico e Humanitário do médico berlinense Magnus Hirschfeld. Dez anos de sua fundação contava com 500 membros correspondentes em toda Europa. O comitê tratou de organizar o direito de visita aos homossexuais encarcerados e a proteção legal às lésbicas contra seus maridos violentos. Também expediu certificados médicos aos membros que se vestiam segundo o outro sexo para obter permissão de se travestir da polícia. Até tentou organizar a autodenúncia de 1000 homossexuais à polícia como mecanismo de protesto.

O discurso da homossexualidade do século XX deixou opaca a riqueza da vida homossexual do século XIX. Robb recria a criatividade e o engenho na hora de afrontar as adversidades destes “extranhos” para construir suas próprias relações de acordo com seus próprios desejos.

A homossexualidade na sociedade

A percepção da homossexualidade era mais comum do que se crê. A literatura foi um dos terrenos em que se manifestou. Um dos pontos melhor demonstrados é o entrelaçamento entre os discursos literários e os discursos médicos sobre a homossexualidade. O discurso médico não faz mais que repetir preconceitos sobre a homossexualidade na literatura. Porém existe outra maneira em que a literatura expressa a experiência homossexual. Através de analises da alegoria, Robb demonstra a maneira em que se podia criar um mundo separado nos quais as referências à homossexualidade iludiam os controles morais e brindavam uma visão menos opaca sobre os gays e as lésbicas.

Robb analisa quase uma centena de escritos literários, personagens e novelas. Desde contos infantis até os de detetive de Arthur Conan Doyle, existe toda uma possível leitura de clássicos da literatura em chave gay. Nem os relatos do “Patinho feio”, de Hans Christian Andersen, escapam. Robb se encarrega de lembrar que o famoso patinho feio no início é confundido de gênero e é obrigado a colocar ovos.

Estranhos é um sugestivo convite para resgatar um dos períodos mais criativos da história homossexual como também derrubar aquelas visões que fazem muitas concessões ao presente. A história da homossexualidade do século XIX, lida em profundidade, revela uma história, em muitos aspectos, precursoras da cultura homossexual contemporânea.




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