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Por fim, o Senado rechaçou a legalização do aborto, que já havia obtido meia sanção no parlamento, em meio a uma nova mobilização massiva, apesar das condições climáticas adversas e embora a Câmara reacionária já tivesse deixado transparecer qual seria o resultado.

Andrea D’Atri@andreadatri

terça-feira 14 de agosto de 2018 | Edição do dia

Em uma sessão que durou mais de dezesseis horas, com discursos ofensivos às mulheres, apelações à fé e absurdos irresponsáveis, o Senado não fez nada além de reafirmar, diante de milhões, o caráter clerical, reacionário e profundamente antidemocrático da democracia capitalista argentina. Foi a segunda votação parlamentar mais repudiada dos últimos meses, se levarmos também em consideração a reforma da Previdência, rechaçada por milhões e aprovada com o apoio do Partido Judicialista, enquanto se reprimia a mobilização colossal.

Desta vez, o resultado foi de 38 votos contrários, 31 favoráveis e 2 abstenções, numa sessão blindada às reivindicações de mais de uma década do movimento de mulheres, que nos últimos meses se amplificaram massivamente e se impuseram na agenda política e midiática, como nunca antes. Um resultado vergonhoso que, apesar de previsível, pode-se dizer que “caiu do céu”: o mesmíssimo Bergoglio, por meio da Conferência Episcopal Argentina, sem poupar comunicações diretas, exerceu uma pressão sem precedentes. Surpreendido pela meia sanção que a lei obteve na Câmara de Deputados, o Papa ordenou um giro repentino para que o clero abandonasse sua passividade e despontasse uma “guerra santa” contra o direito ao aborto.

Paradoxalmente, a ação obscura do clero foi financiada também pela população contribuinte que se mobilizou para que a lei fosse aprovada, já que dados oficiais apontam que o orçamento do Estado destinado ao salário dos bispos é de mais de 130 milhões de pesos argentinos (o equivalente a quase 17 milhões de reais) – representando apenas 7% da renda anual da Igreja, que recebe também subsídios da rede de educação privada, goza de isenções tributárias e outras remunerações aos que ocupam cargos eclesiásticos. Um jogo milionário ao qual se somam também as contribuições privadas de grandes empresários.

No entanto, o triunfo circunstancial dos dinossauros de batina se deu às custas de que se desprestigiassem ainda mais entre milhões de pessoas, para as quais a Igreja, que nem o Papa Francisco conseguiu resgatar de sua crise secular, já tinha uma imagem desgastada e corroída. Nem mesmo o sorriso afável de um velho jesuíta consegue esconder facilmente os escândalos financeiros do Vaticano, nem o acobertamento de milhares de casos de padres acusados de abuso sexual contra crianças e adolescentes.

A Igreja, que pensava se revalidar, cumprindo o papel que sempre soube desempenhar diante das crises sociais, de contenção das massas empobrecidas pelas políticas de ajuste para evitar sua radicalização, se expôs brutalmente e também demonstrou abertamente os vínculos obscuros que mantém com a casta política. A burocracia sindical, o peronismo, o mesmo kirchnerismo e os movimentos sociais que comungam com Bergoglio e que, na véspera da votação no Senado, desfilaram com símbolos religiosos para pedir trabalho a São Caetano, estão permeados por essas relações carnais.

Excursão ao Jurassic Park

A Igreja não atua não atua no vazio: do outro lado, houve senadoras e senadores dispostos a ajoelhar-se e entregar a vida de milhares de mulheres pobres submetidas aos riscos do aborto clandestino.

A decisão do governo de colocar este tema em debate no parlamento gerou algumas asperezas dentro do Cambiemos, que agora tentam amenizar. Porém, todos sabem que Elisa Carrió e a vice-presidente Michetti levantaram a fé como sua bandeira política. E que, poucos dias antes do debate na Câmara de Deputados, a governadora María Eugenia Vidal e a ministra Carolina Stanley entrevistavam ao Papa no Vaticano. Muito embora quem tenha ganhado o “Pinóquio de ouro” foi a UCR: dois terços do bloco desse entusiasta partido anti-operário, que diz defender a laicidade do Estado, votaram contrários.

Mais um deslize de um governo que vem caindo nas pesquisas de opinião e que pretendia se relocalizar com a abertura desse debate, depois do rechaço massivo da população à sua reforma da Previdência em dezembro. No entanto, o seu “jogo duplo” de abrir o debate e votar majoritariamente contra, o deixou debilitado. Agora, o Poder Executivo falsamente pensa se reacomodar impulsionando a descriminalização do aborto, por meio da reforma do Código Penal que apresentará no Congresso em poucos dias. Uma medida irrisória e ambígua, que não avança na legalização do aborto, nem em “defender as duas vidas”, em nada.

O Partido Judicialista, por sua vez, implantou sua doutrina papal e se posicionou contra um direito elementar que consideram, sem papas na língua, parte da “cultura do descarte”. Sua ala nac&pop (“nacional e popular”) – agora também feminista! – da Frente para a Vitória, que havia se comprometido a votar unanimemente a favor, contribuiu com o golpe final que foi a manobra da senadora García Larraburu, que não hesitou em insultar o movimento feminista para justificar o vergonhoso descumprimento de sua promessa. O silêncio de Cristina Kirchner diante disto, que já se mostrava alguns dias antes da votação parlamentar, foi uma clara demonstração de seu próprio “jogo duplo” entre as ruas e o Vaticano.

Muitos outros que ingressaram no parlamento pelo kirchnerismo e hoje se encontram em distintos setores fragmentados do peronismo, à meia-noite do dia 8 de agosto deram as costas às mulheres pobres que dizem representar, com um contundente “não” e discursos verdadeiramente ofensivos. Seus nomes são Blas, Espínola, Mayans, González, García Larraburu, Urtubey, Fiore Viñuales, Alperovich. Estes mesmos dinossauros haviam sido kirchneristas até as vésperas da votação. Do lado de fora, o ex-chefe de gabinete do governo de Cristina Kirchner, Jorge Capitanich, assim como Juan Manzur que foi seu ministro da Saúde, caíram nas graças da Igreja e dos “pró-vida” com missas e mobilizações contra as mulheres. Por que não devemos supor que estes mesmos ou semelhantes voltarão a se unir para a disputa eleitoral em 2019?

A própria senadora Cristina Kirchner merece um parágrafo à parte. Votou a favor, com um discurso tardio, depois de dois mandatos presidenciais durante os quais militou fervorosamente para evitar que se debatesse esse projeto de lei, quando os legisladores de seu próprio bloco ainda o apoiavam. Na expectativa, milhões de pessoas fizeram silêncio para escutar o que a ex-presidente recém “desconstruída” lhes tinha a dizer, e ela nos mandou não nos enojarmos da Igreja, além de propor um compromisso com os “pró-vida” para contentar aos mais reacionários, a seu amigo Bergoglio e, ao mesmo tempo, dizer ao movimento de mulheres que aquele era o resultado esforçado “do possível”.

A ex-governante e avó é capaz de escrever uma versão própria da História que a absolva de sua responsabilidade política pelas milhares de mortes das mulheres causadas por ela se negar obstinadamente a discutir esse projeto de lei, nas seis vezes em que foi apresentado anteriormente. Não sabemos o que sua neta lhe perguntará, mas sabemos que hoje não precisamos lhe perguntar o que fez quando foi presidente porque, lamentavelmente, a resposta que nunca quisemos ter é uma pilha de cadáveres de mulheres.

O vento, a chuva e a maré

E, no entanto, mesmo com os milhões com que o Estado financia a Igreja e com todos os beatos dos partidos majoritários fazendo-lhe coro, somados aos fundamentalistas evangélicos, que foram os que mais levaram militantes às parcas mobilizações “pelas duas vidas”, os que atuam contra os nossos direitos não conseguiram mobilizar nem sequer um décimo do que fez a maré verde.

As imagens são expressivas: apesar da tempestade que ocorreu no horário em que o maior número de pessoas se dirigiram ao Congresso, milhares de garotas, estudantes, trabalhadoras, idosas acompanhadas de seus amigos, pais, irmãos, colegas de trabalho, pintavam seus rostos de verde, amarravam seus pañuelos e se protegiam com guarda-chuvas debaixo dos toldos dos bares e pizzarias. Enquanto isso, do outro lado da trincheira havia muito mais homens que mulheres, algumas monjas, vários fascistas com seus símbolos nazistas e bandeiras com a imagem de Jesus, e não hesitaram em comemorar com fogos de artifício e bandas de rock cristão quando, após a meia-noite, se confirmou que o aborto seguiria sendo clandestino.

A celebração teve um poder simbólico, mas episódico. Do outro lado, o revés já se previa nos dias anteriores e, ainda que recebido com raiva e indignação, ninguém acreditou que se trataria de uma derrota irreversível. O sentimento de que “a luta continua” foi um senso comum generalizado que se confirmou no da seguinte, nos milhares de comentários nas redes sociais e nos pañuelos verdes que seguiam amarrados nas mochilas e protegendo as gargantas do frio.

Houve quem disse depreciativamente, como a senadora Larraburu, se tratar de uma “moda”. E embora o fenômeno possa parecer superficial, com consignas e objetivos variáveis debaixo da mesma cor verde, é evidente que se trata de algo mais profundo. É uma geração adentrando a política pela porta do feminismo, o qual associam amplamente à luta contra o patriarcado, contra o machismo, contra a redução de liberdades e contra a desigualdade.

Para muitas meninas e meninos, a lembrança mais nítida de uma mobilização extraordinária como esta foi a da que se fez pelo #NiUnaMenos, em 2015. Começaram a sentir-se protagonistas das paralisações internacionais de mulheres dos 8 de março dos últimos dois anos. E por uma rede de múltiplos fios que inesperadamente começaram a se estender, num grande emaranhado, as meninas que não suportam mais o uniforme escolar, que estão fartas do assédio nas ruas, que não aceitam mais que lhes digam o que fazer, como ou com quem fazer, encontraram na demanda pelo aborto legal um ponto de encontro com as mulheres mais pobres, que são as que colocam suas vidam em risco na clandestinidade e com quem também já vêm militando por estes direitos há décadas.

Foram as garotas que convenceram seus amigos, familiares e professores, ajudando a transformar em um fenômeno massivo o que antes apenas uma minoria ativista defendia. O movimento das meninas, que muitos já denominam metaforicamente “a revolução das filhas”, adentrou suas casas, impactando suas mães secretárias, funcionárias estatais, professoras, enfermeiras, operárias, comerciantes, médicas, advogadas e donas-de-casa. Foram como um rio verde que, na sua corrida até o mar, inunda tudo até convergir na maré.

O entusiasmo contagiou mulheres de outros países, que acompanharam a mobilização com atos e ações nos consulados, no México, Brasil, Chile, Estado Espanhol, Uruguai, Bolívia, França. Nossas companheiras feministas socialistas do Pão e Rosas impulsionaram as manifestações em diversos lugares, como na Argentina, onde participamos com milhares de companheiras e companheiros do PTS na Frente de Esquerda, em Buenos Aires e em outras cidades do país.

O futuro é verde, pela esperança de conquistar o direito que os senadores nos roubaram. Mas também o presente, no qual é tempo de tirar as lições que nos permitam amadurecer nossa vitória.

Assunto separado, assunto nosso

Ao contrário do que disse Cristina Kirchner na votação, nas ruas a maré verde estava consideravelmente enojada da Igreja. Nos restaurantes e lanchonetes na região, a multidão aguardava os garçons batucando com os talheres e copos e gritando “Igreja, Estado, assunto separado”. Os pañuelos laranjas que identificam essa causa também navegaram pela maré verde. A campanha já começou, porque os fatos foram mais do que claros: se queremos conquistar o direito ao aborto, temos que lutar pela separação entre a Igreja e o Estado. O projeto de lei apresentado pelo deputado Nicolás del Caño do PTS na Frente de Esquerda, para revogar os privilégios da Igreja, já reuniu mais de 70 mil assinaturas em poucos dias.

Para além disso, a maioria dos que debateram sobre o direito ao aborto superam os 60 anos de idade, enquanto uma grande parte dos que se mobilizavam do lado de fora do Congresso sequer tinha direito ao voto nas eleições. Os que deram a sentença de morte para as mulheres pobres da Argentina cobram até 200 mil pesos (aproximadamente 25 mil reais) por todos os custos de um procedimento de aborto. Vinte vezes más do que o salário mínimo, que hoje equivale a 10 mil pesos! Eles legislam para os ricos, defendendo os negócios dos capitalistas, muito distantes das necessidades das famílias que sobrevivem do seu salário, como as que estavam nas ruas. Ainda mais absurda é a Alta Câmara, de onde os governadores e os senhores feudais de cada província exercem pressão em defesa de seus interesses oligárquicos. Que democracia é esta, em que 38 senadores de províncias, representando um total de 16 milhões e meio de pessoas, impõem que se mantenha o aborto clandestino, contra 31 senadores que representam quase 22 milhões de pessoas?

Durante estes meses de mobilização, foi possível ver quem tem um pé em cada lado: os partidos e movimentos políticos que beijam o anel do Papa e depois se apresentam como representantes e aliados da nossa luta. Na Câmara de Deputados, o sentimento foi mais de vergonha alheia do que de orgulho, ao ver que a Frente de Esquerda é a única força política com representação parlamentar que não sustenta laços com o Vaticano e que tem em seu programa o direito ao aborto, desde a sua fundação.

Não podemos alimentar a menor expectativa de que com negociações nos corredores do Congresso conseguiremos nossos direitos. Rechaçamos a diluição que nos propõem entre os governistas e os opositores. Por isso, tampouco vamos permitir que nos digam que esperemos, com sorte, as eleições de 2019. Os direitos não são esmola, se conquistam com a luta, e foi isso que aprenderam milhares de jovens que pela primeira vez saíram às ruas e que já não querem voltar atrás.

Vamos pelo direito ao aborto, mas vamos por mais ainda. E, para isso, temos que tomar esta luta em nossas mãos, nos organizar desde a base, em nossos locais de trabalho e estudo e impor-lhes nossa força e nossa decisão. Inclusive àqueles que dizem nos representar, como os dirigentes sindicais, que entretanto estão abertamente contra o direito ao aborto ou não se pronunciaram a favor, não organizaram um ato de rua, uma assembleia, uma paralisação para se impor contra a Igreja e os reacionários. Temem que as mulheres, que somos cada vez mais numerosas nas escolas, nos hospitais, nas fábricas, nas empresas de serviços, junto a nossos companheiros recuperemos as organizações sindicais para nossa luta, para que estejam verdadeiramente a serviço de batalhar pelos nossos direitos e para derrotar os ataques que a burocracia deixa passar sobre nós?

Seguiremos em nossa luta pelo aborto legal, contra os feminicídios e a violência machista, mas também pelos direitos das trabalhadoras que se sobrecarregam com a dupla jornada de trabalho reprodutivo não-remunerado, que os governistas e a oposição agora criticam de boca cheia no Congresso, mas não moverão um dedo para reduzir se isto afetar os lucros dos capitalistas, cujos interesses eles representam. Em meio a uma nova crise econômica e política como a que estamos atravessando, nós, mulheres, podemos encabeçar a luta para evitar a decadência do nosso país e para que as massas trabalhadoras não sejam mais uma vez lançadas ao desemprego e à miséria.

Vamos exigir o direito ao aborto seguro e gratuito. Não vamos descansar até conquistar a separação entre a Igreja e o Estado. Vamos reivindicar creches nos locais de trabalho, licenças mais longas de maternidade e paternidade, centros de cuidado aos idosos, para reduzir nossas exaustivas jornadas de trabalho dentro e fora de nossos lares.

Queremos um movimento de mulheres em luta, independente da Igreja, dos capitalistas e todos seus subordinados políticos! As jovens, junto às mulheres da classe trabalhadora, são aos que podem estar na linha de frente desta aliança com os milhões do povo trabalhador, para preparar as próximas batalhas. A energia investida nas ruas demonstra a convicção de que eles nos devem nossos direitos e que estamos dispostas a conquista-los.

Tradução: Laura Scisci




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