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A tragédia e a farsa

Thiago Flamé

A tragédia e a farsa

Thiago Flamé

O movimento Direitos Já, lançado por um dissidente tucano, reuniu nessa sexta-feira dia 26 um amplo arco político, indo do PSOL até setores do centrão, passando pelo PSDB e chegando até o fundador do GATE. Enquanto seus organizadores comparam o movimento atual com as Diretas Já da década de oitenta, seus críticos alegam que a comparação não tem cabimento. Nesta nota queremos entrar neste debate sobre a frente ampla atual e no caminho desmistificar também o movimento diretas já da década de 80, reivindicado por críticos e defensores do Direitos Já

Cinismo. A palavra que melhor define o conteúdo deste movimento “Direitos Já”, articulado nas profundezas do tucanato tradicional, deslocado da cena política depois da derrota acachapante de Geraldo Alckmin e da vitória do voto Bolsodoria, em São Paulo. Com figuras como o governador gaúcho, Eduardo Leite, carrasco dos professores daquele estado e FHC, o pai das privatizações e flexibilização dos direitos trabalhistas – além do todo o amplo espectro que tem apoiado as medidas do governo Bolsonaro justamente de ataques aos direitos como a reforma da previdência e agora a privatização do saneamento.

Pode-se especular sobre as intenções por trás desse movimento, mas uma coisa é certa: não se trata de organizar a luta contra o governo Bolsonaro pela manutenção dos direitos que nos estão sendo arrebatados. E de forma ainda mais acelerada durante a pandemia. É significativo que a Live tenha ocorrido em um momento em que diminui a dinâmica destituinte do governo Bolsonaro e que este esteja buscando costurar algum tipo de trégua junto ao STF e ao Congresso, permitindo uma nova rodada de ofensiva contra os nossos direitos. Não só fortalece o STF e o Congresso nessas negociações, como tem um conteúdo oposto ao de defender direitos: impedir que se desenvolva o protagonismo dos movimentos de rua e de paralisações anunciadas como a dos entregadores e também do metrô de São Paulo para o dia 1 de julho, esses sim em defesa de direitos (que sequer foi citado na convocatória da Live do Direitos Já, como não o foram essas lutas e processos de organização em curso, como não poderia ser diferente). Também tem objetivos eleitorais, que passam por impedir que o PT tenha o protagonismo da oposição ao Bolsonaro e tentar reabilitar o centro político derrotado nas eleições de 2018, para as eleições municipais deste ano.

O próprio PT, que através de Lula e das mídias petistas na internet tem criticado essa articulação (por motivos óbvios, já que estão sendo feitas para avançar sobre o seu próprio espaço eleitoral), também participou com seus governadores, com Haddad e Tarso Genro. Se por um lado o PT guarda distância da iniciativa em função da disputa pelo protagonismo na oposição, por outro não deixa de compartilhar objetivos estratégicos com uma frente deste tipo, funcional a evitar qualquer protagonismo do movimento de rua, que o próprio PT teme que, em caso de se desenvolver, pode também lhe escapar ao controle.

As referências ao movimento das Diretas Já é bem significativa nesse sentido. Reivindicado por todos como uma grande luta contra o autoritarismo. Vejamos o que significou esse movimento na história brasileira e por que pode ser reivindicado neste momento por críticos e impulsionadores da frente articulada pelo Direitos Já.

A tragédia…

O jornalista Ricardo Kotscho, petista e autor do livro “Explode um novo Brasil – diário da campanha das Diretas” em artigo na Folha aponta algumas diferenças entre os dois movimentos. Em especial critica que o Direitos Já sequer cita Bolsonaro – o que foi um dos eixos da fala de Haddad no ato. Mas queremos chamar atenção para a reivindicação feita de Ulysses Guimarães, político do PMDB e um dos principais animadores do movimento das Diretas nos anos oitenta: “em 1984 havia um grande líder, Ulysses Guimarães, o "Sr. Diretas", e uma luta unificada pela volta das eleições para a presidência da República, já nos estertores do regime militar. Ao lado de Brizola (ou Doutel de Andrade) e Lula, doutor Ulysses comandou comícios de ponta a ponta do país.”

Uma reivindicação na qual confluí com Valério Arcary, militante histíroco do PSTU e da Convergência Socialista e que hoje está na Resistência/PSOL: “É o contrário da luta por Diretas Já. A campanha pelas Diretas Já tinha como objetivo derrotar a ditadura, impedindo que a sucessão de Figueiredo se resolvesse pelo Colégio Eleitoral. Direitos Já não tem como objetivo derrotar Bolsonaro, mas enquadrá-lo. É uma operação ao estilo de Tancredo Neves que subiu nos palanques das Diretas, mas na verdade negociava com Figueiredo a ida para o Colégio Eleitoral. O abraço de Tancredo em Ulysses Guimarães era um abraço de urso. Agora, outra vez, nada é o que parece ser. Estamos diante de um teatro de sombras. O FHC de hoje cumpre o papel de Tancredo de trinta e cinco anos atrás. E querem fazer com Lula em 2020, o que fizeram com Ulysses em 1984.”

A campanha das Diretas Já é muito diferente do movimento atual. Um imponente movimento de massas se levantava contra a ditadura, mas também tem pontos de contato, estratégicos, que aproximam dos dois movimentos, pontos que queremos demonstrar indo na contra mão da reivindicação quase unânime das Diretas como exemplo para os dias de hoje. O já citado Kotscho, critico ao movimento atual, termina assim sua nota: “Os organizadores preveem que o evento deverá durar 4 horas. Melhor fariam se gastassem esse tempo exibindo um documentário sobre a campanha das "Diretas Já", para mostrar aos mais jovens como se lutava por democracia na época da ditadura.” Os críticos pela esquerda ao Direitos Já também fariam melhor se ao invés de reivindicar acriticamente as Diretas Já, buscassem um balanço estratégico daquele movimento.

Em 1983 o Brasil vivia uma profunda crise econômica, politica e social, sob o governo do ditador Figueiredo já ferido de morte pelas lutas operárias de 1978/1980, que não derrubaram a ditadura, mas que poderia tê-lo feito. A recessão era terrível, desemprego galopante, fome… O movimento operário derrotado em 1980, seguiu um processo profundo de reorganização e não estava morto. As greves se avolumavam em setores do funcionalismo publico e no campo. Nessa situação, em abril de 1983, se desenvolveu uma onda de saques na cidade de São Paulo, que durou três dias ininterruptos e se estendeu de Santo Amaro ao centro da cidade. A campanha salarial dos metalúrgicos do ABC não desencadeou uma greve nesse momento sob o argumento de não provocar o caos social (argumento revelador da estratégia da direção petista).

Esse é o contexto explosivo em que se iniciou a campanha das Diretas Já no final de 1983, primeiro impulsionada quase que exclusivamente pelo PT e, mais tarde, já em 1984, com a adesão de figuras de peso do então PMDB, com a adesão de Ulysses Guimarães e vários governadores. O que pouco se lembra é que obteve apoio até de figuras do partido da ditadura militar, o Arena, como Aureliano Chaves. O objetivo das Diretas Já não era exatamente derrotar a ditadura militar, mas derrota-la de uma maneira específica, retirando o protagonismo da luta contra a ditadura das mãos do movimento operário como foi entre 1978/1980, para colocá-lo nas mãos da oposição democrática liberal.

As limitações do movimento eram evidentes. O que se discutia era a forma em que deveria ser eleito o próximo presidente da republica. Se por via indireta no colégio eleitoral, ou por eleições diretas. Não se questionava o conjunto da legislação da ditadura militar, apenas a presidência da republica. O próprio movimento não articulava a luta contra a ditadura, com a luta contra o desemprego, pelo salário e pelas demandas candentes do movimento de massas que se agigantava. Ulysses Guimarães não foi traído por Tancredo Neves, mas eram ambos parte de uma operação conservadora, para evitar uma explosão social que colocasse abaixo os ditadores pela força da mobilização de massas, podendo abrir um período revolucionário no país. Ulysses se habilitava a ser candidato em caso de vitória do movimento, mas também mantinha as pontes com Tancredo Neves, que se habilitava a costurar sua eleição por via indireta.

O movimento não foi bem sucedido no seu objetivo declarado, de impor a Figueiredo e a Ditadura eleições diretas já em 1984. Mas no seu objetivo estratégico, não poderia ter ido melhor. Foi abandonada a luta pela derrubada da ditadura militar e todas as suas instituições e por uma Assembleia Constituinte Livre e Soberana, ou seja, sem a participação dos políticos da ditadura, sem a tutela militar e que acumulasse todos os poderes (a Assembleia Constituinte que terminaria em 1988 foi tudo o contrário disso, tutelada pelos militares, povoada com as velhas raposas do regime militar e dividindo o poder com Sarney, que era o vice de Tancredo no colégio eleitoral). O potente movimento de massas que levou milhões as ruas, lutava por objetivos restritos, bem ao gosto da oposição liberal ao regime militar, que em 1989 lançaria o bordão de que o país precisava de um “choque de capitalismo”. Assim, as Diretas não poderiam se colocar a tarefa de unificar as demandas da classe trabalhadora na cidade e no campo com a luta contra o regime militar, justamente por que seu objetivo estratégico era evitar essa confluência.

O resultado do processo é conhecido. A transição da ditadura para a democracia liberal se deu em acordo com os militares, com o imperialismo, através de um pacto de elites que abriu as portas para a ofensiva neoliberal de FHC e manteve a impunidade dos ditadores e torturadores. Nem a Lei de Segurança Nacional foi revogada – tendo validade até os dias de hoje e o papel de tutela dos militares foi preservado, entre outras formas, através do art. 142, tão reivindicado pelos militares nos dias que correm.

… e a farsa

Se a comparação com as tentativas atuais de uma frente ampla contra Bolsonaro – sendo a live do Direitos Já a tentativa mais bem sucedida até aqui nesse sentido – tem muito de arbitrária pelas diferenças entre os dois momentos históricos, seriam injusto não reconhecer que a comparação tem um sentido de ser.

Dividir as demandas políticas da luta contra o autoritarismo bolsonarista e militar, da luta contra os ataques da ofensiva contra nossos direitos impulsionada pelo governo Bolsonaro, mas que conta com o apoio da direita tradicional que participa do Direitos Já. Evitar que seja o movimento de massas e em especial o movimento de trabalhadores quem centralize a luta contra Bolsonaro (o que nos anos oitenta era uma dinâmica concreta, hoje aparece ainda apenas como uma possibilidade, ou necessidade). Uma terceira coincidência é também reduzir os objetivos da luta política contra o governo. Nos anos oitenta trocar a luta contra todas as expressões do regime militar, pelo direito de eleger o presidente. Agora, um objetivo ainda mais limitado, posto que o movimento sequer se coloca a perspectiva do Fora Bolsonaro (verdade seja dita, as Diretas também não levantavam o Fora Figueiredo, respeitando o calendário eleitoral da própria ditadura), mas apenas o seu enfraquecimento e o fortalecimento da direita tradicional e do centro para as eleições do final do ano, preparatórias para 2022.

Hoje, como nos anos oitenta, a saída passa por outro lado. Para enfrentar Bolsonaro é preciso unir a luta contra o projeto econômico de Paulo Guedes e da direita tradicional, com a luta para que sejam as massas populares e a classe trabalhadora a decidir o destino do país. Não uma frente ampla, o que necessitamos é uma frente única que unifique, nas mobilizações, o conjunto da classe trabalhadora, da juventude e do povo negro e suas organizações, em defesa dos seus direitos, com a luta para derrubar Bolsonaro e Mourão e pela convocação de uma Assembleia Constituinte Livre e Soberana, para mudar as regras do jogo e permitir que seja o povo a decidir sobre o seu futuro.

A farsa ainda pode se converter em uma nova tragédia, na medida em que se desenvolva de fato um movimento de rua contra Bolsonaro, mas que esse fique a reboque dos setores que se aglutinam no Direitos Já. Contra essa perspectiva, colocamos a necessidade de lutar para que os sindicatos não participem dessa farsa e convoquem assembleias e reuniões de base. (sempre como os cuidados necessários), para organizar a luta contra o governo. E o PSOL, se quer ser um partido de esquerda minimamente consequente, precisa romper imediatamente com essa frente ampla que preparava novas tragédias para o povo brasileiro e adotar a perspectiva de derrotar Bolsonaro através das mobilizações de massas e não de um acordo entre as elites.


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Thiago Flamé

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