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BICENTENÁRIO DE MARX | Marx: o teórico titânico era um homem de partido

André Barbieri São Paulo | @AcierAndy

domingo 6 de maio de 2018 | Edição do dia

A teoria de Marx foi uma gigantesca torre por cima das tarefas práticas revolucionárias dos contemporâneos lasalleanos de Marx, exatamente como o fez por cima da atividade prática de todas as organizações da Primeira Internacional. [...] Não é mais que na época das catástrofes históricas que se estendem no conjunto do sistema capitalista que se abre a possibilidade de colocar em prática as conclusões fundamentais do marxismo. [...] Marx fez muito como dirigente da Primeira Internacional. Mas isto não foi a principal realização de sua vida. Marx continuaria sendo Marx, inclusive sem a Liga dos Comunistas e a Primeira Internacional, e seu elevado trabalho teórico não coincide de nenhum modo com sua atividade prática revolucionária. Foi muitíssimo mais além, pelo fato de haver criado a base teórica para toda a atividade prática posterior de Lênin e de um certo número de gerações que ainda estava por vir” [Leon Trotsky]

Trotsky tem inteira razão. A teoria do socialismo científico desenvolvida por Marx e Engels emerge como uma força titânica que atravessou as eras e dotou a classe trabalhadora do método revolucionário de pensamento - o materialismo histórico dialético. Desvendar a lei do desenvolvimento da história humana ("colocando a dialética de Hegel de volta sobre os pés") e a anatomia da sociedade capitalista, como dizia Engels, teriam sido suficientes para tornar Marx uma figura de estatura histórico-mundial.

Entretanto, não é segredo para ninguém que distintas correntes de pensamento, reivindicando-se socialistas ou não, trazem ao primeiro plano a colossal obra teórica de Marx com o fim último de convertê-lo num teórico de gabinete, separando sua figura da ideia da organização política partidária. Marx se tornaria assim um teórico "apto a diversas interpretações" mas acima de tudo um teórico acadêmico, um ícone inofensivo sem contato com a classe trabalhadora e alérgico às lutas políticas que ocorreram no marxismo do século XX.

O chamado marxismo ocidental - denominação de Perry Anderson, identificando os distintos pensadores marxistas que no decurso do século XX separaram a teoria marxista da classe trabalhadora, e progressivamente a encastelaram nas universidades - e suas derivações acadêmicas atuais são pródigas nessa interpretação pacifista do legado do "velho mouro". O benefício inegável dos estudos sobre a obra de Marx nas universidades acaba sendo eclipsado (ou às vezes anulado) pela ignorância de sua vida política.

Mas cumpre dizer que recuperar Marx a 200 anos de seu nascimento só tem sentido retomando-o na totalidade de sua atividade revolucionária: o socialismo científico, a riqueza de sua teoria e de seu programa, foram desenvolvidos para transformar os alicerces sociais da vida humana; essa transformação estava, para Marx, ligada à "organização do proletariado enquanto classe, ou seja, em partido político", como diz junto a Engels no Manifesto Comunista de 1848.

Uma organização de comunistas

A partir de meados da década de 1840 adiante, Marx foi intrinsecamente um homem de partido para quem a teoria era um guia para a ação; e batalhou para que sua teoria revolucionária estivesse corporificada numa ferramenta política dos trabalhadores, num partido que desconhecesse as fronteiras nacionais. David Riazanov, em 1927, faz notar a incansável energia de Marx na organização política do nascente proletariado europeu.

"Por mais que isso desagrade os acadêmicos, o ofício pouco popular entre a intelectualidade de organizador revolucionário é indissociável do trabalho cientifico de Marx. Esse trabalho de organização de Marx passou despercebido para os historiadores, que o apresentam como um pensador de gabinete. Ignoram o papel de Marx como organizador e, portanto um dos aspectos mais interessantes de sua personalidade. Se não se conhece o papel de Marx entre 1846 e 1847, como dirigente e inspirador de todo esse trabalho de organização, é impossível compreender a importância que teve depois como organizador da Liga dos Comunistas entre 1847-48, e na época da Primeira Internacional 1864, da qual ele é fundador”.

Ainda jovem, Marx não mediu esforços para entrar em contato com os diversos grupos que tentavam difundir as ideias comunistas, se esforçando por iniciar relações com círculos operários da Alemanha, Londres, Paris e Suíça. Filiou-se à “Liga dos Justos”, criada em 1836 por revolucionários alemães emigrados em Paris. Inicialmente a orientação ideológica dos Justos era o socialismo utópico e tinha como lema ’Todos os homens são irmãos’, com ideias sobre uma sociedade igualitária, contudo sem a abolição da propriedade privada dos meios de produção e das classes sociais.

Marx batalhou junto a Engels no interior a Liga para eliminar as ilusões reformistas do sistema econômico, uma luta política e teórica sem trégua para que a ação dos trabalhadores europeus estivesse dotada de um programa científico contra o capitalismo. Isso o colocou em rota de colisão com Joseph Proudhon, de um lado, e Karl Grün e Wilhelm Weitling, de outro. O resultado dessa luta teórica e programática, em 1847, foi a mudança de nome da velha organização para “Liga dos Comunistas”, adotando o programa da abolição da propriedade privada dos meios de produção para construir uma sociedade comunista.

Os trabalhadores precisam ter uma teoria revolucionária, mas também um partido independente

Mas o programa científico precisava da melhor ferramenta para aplicação na realidade. Com o balanço da atividade das distintas classes sociais durante a onda de revoluções que atravessou a Europa entre 1848-50 (atingindo a França, a Alemanha, o império Austro-Húngaro, a Polônia, a Itália, entre outros), Marx conclui que a classe trabalhadora não poderia chegar a cumprir sua missão história sem uma organização independente. Os trabalhadores deveriam tomar "o quanto antes a sua posição de partido autônomo, não se deixando um só instante induzir em erro pelas frases hipócritas dos pequeno-burgueses democratas quanto à organização independente do partido do proletariado. O seu grito de batalha tem de ser: a revolução em permanência" (Carta ao Comitê Central à Liga dos Comunistas, março de 1850).

A Primavera dos Povos não se transformou em revolução socialista, como o Manifesto havia previsto, mas criou, para a Europa, a possibilidade de um formidável desenvolvimento capitalista. Ainda que a época de desenvolvimento econômico capitalista na segunda metade do século XIX não permitisse ainda que os trabalhadores assumissem o poder (havia aqui a "subestimação das possibilidades posteriores inerentes ao capitalismo e a a superestimação da maturidade revolucionária do proletariado" diz Trotsky), é notável como Marx nunca deixou de conectar o prodigioso esforço teórico das décadas de 1850-60, no campo da crítica da economia política, com o aperfeiçoamento e expansão da organização internacional dos trabalhadores.

Um poderosos instrumento para as próximas revoluções

Suas cartas a Engels, a Kugelmann, a Weydemeyer, e diversos outros interlocutores sublinham a importância que Marx credenciava ao amadurecimento da Associação Internacional dos Trabalhadores (a I Internacional), criada em 1864. Em 25 de fevereiro de 1865, Marx escreve a Kugelmann que "Como um todo, o progresso da Associação Internacional dos Trabalhadores vai além de todas as expectativas, aqui em Londres, em Paris, na Bélgica, na Suíça e na Itália". Em carta de 15 de janeiro de 1866, Marx diz, com inegável orgulho, a Kugelmann

"Nossa Associação fez enormes progressos. Já possui três periódicos oficiais: um em Londres, The Workman’s Advocate, um em Bruxelas, La Tribune du Peuple, e um publicado pela seção francesa na Suíça, Journal de l’Association Internationale des Travailleurs, Section de la Suisse Romande, enquanto um periódico publicado pela seção suíço-germana, Der Vorbote, aparecerá em alguns dias sob os cuidados editoriais de J. P. Becker. [...] Tivemos êxito em trazer ao movimento as maiores organizações operárias, as "Trade Unions" britânicas, que anteriormente se ocupavam exclusivamente com as questões salariais. Com a ajuda delas, a sociedade que fundamos na Inglaterra para obter o sufrágio universal organizou uma reunião gigantesca em que apenas os operários falaram".

A dura luta política contra o "socialismo estatal" de Ferdinand Lassalle - que propunha um intervenção da realeza prussiana para auxiliar os trabalhadores a alcançar o socialismo, chegando a fazer acordos diretos com Bismarck - faz arrepiar qualquer um que imagine Marx como um "cientista de biblioteca". O conflito entre Marx e o "lassallismo" (corporificado na Associação Geral dos Trabalhadores Alemães) tinha como objetivo combater a qualquer aliança dos trabalhadores com a burguesia e suas alas monárquicas ou bonapartistas, defendendo a ação autônoma do movimento operário para a transformação revolucionária da sociedade.

Em carta a Engels, de 11 de setembro de 1867, Marx exulta, referindo à Associação Geral dos Trabalhadores "As coisas estão se movendo. E na próxima revolução, que talvez esteja mais perto do que parece, nós (você e eu) teremos esta poderosa ferramenta sob nossa influência". Sob a influência da teoria do socialismo científico.

Marx seria Marx mesmo sem a Liga dos Comunistas e a Associação Internacional dos Trabalhadores. Mas seu trabalho revolucionário se atreveu a ir além da teoria numa época preparatória para as condições da passagem ao socialismo. Construiu organizações políticas dos trabalhadores, a nível internacional, para intervir nos principais processos (como seria a Comuna de Paris de 1871 e a atuação da I Internacional nela). A precisão teórica na compreensão da anatomia do capitalismo e das leis tendenciais do desenvolvimento histórico serviam como lâmina afiada para uma ação que não estava restrita ao século XIX: armava o futuro.

Por mais incômodo que pareça a certa intelectualidade, Marx era um homem de partido. Seu trabalho teórico ia além da atividade prática imediata, indubitavelmente; mas não deixava de conviver com ela. Um teórico titânico e organizador de partido revolucionário: essa é a combinação correta da recuperação de Marx. A ligação destes dois elementos da práxis não começa no século XX: apoiou-se nos ombros do gigante para dar um salto ainda maior, especialmente com Lênin e Trotsky.

A chave do marxismo, ainda que tenha uma concepção materialista da história, ainda que seja uma crítica científica da economia política, é a arte de conduzir as massas à vitória, ao fim da exploração, ao fim da escravidão assalariada.




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