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A pandemia, a esquerda e o poder da classe trabalhadora nos EUA

Juan Cruz Ferre

A pandemia, a esquerda e o poder da classe trabalhadora nos EUA

Juan Cruz Ferre

Um partido da classe trabalhadora seria capaz de coordenar a luta nos locais de trabalho, unir a luta dos trabalhadores de primeira linha com os desempregados, e representar uma alternativa da classe trabalhadora que não se sinta obrigada a assinar outro resgate para o capital.

Diante da crise econômica e sanitária desencadeada pela pandemia do coronavírus, a esquerda estadunidense oscila entre os esforços de ajuda mútua e a impotência parlamentar. Temos que participar das lutas dos trabalhadores e nos preparar para um próximo ascenso operário.

Existem mais de 140 mil casos diagnosticados de COVID-19 nos EUA, mas o número real de infectados provavelmente seja de milhões. Não sabemos a incidência real das infecções porque a administração de Trump restringiu intencionalmente a disponibilidade de testes de forma a manter os números artificialmente baixos. Por essa razão, perdeu-se uma oportunidade preciosa para detectar casos iniciais, rastrear seus contatos e isolá-los antes que houvesse contaminação comunitária.

Agora já é tarde. As UTIs [Unidades de Tratamento Intensivo] em Nova York estão sobrecarregadas e podemos esperar situações similares em outras cidades quando chegarem ao seu pico de infectados. Estamos a caminho de nos vermos em um cenário como o da Itália ou da Espanha, mas com uma população cinco vezes maior e sem assistência médica universal. Apenas no estado de Nova York houveram 279 mortes apenas na segunda-feira do dia 30 de março.

Essa tenebrosa situação se agrava pela crescente falta de equipamentos de proteção individual (EPIs) para os trabalhadores da saúde. Esta falta de EPIs contribui para outro problema: a escassez dos próprios trabalhadores da saúde. A negligência das autoridades públicas em assegurar um fornecimento adequado desses equipamentos já levou à morte de no mínimo duas enfermeiras em Nova York. Muitos outros trabalhadores de setores considerados “essenciais” enfrentam uma situação semelhante, em que se veem obrigados a trabalhar em condições inseguras, sob a ameaça de demissão e, assim, ficar sem renda na pior crise econômica desde a Grande Depressão.

Entretanto, também devemos questionar o que é realmente essencial e o que não é. Por exemplo, com a desculpa de manter negócios essenciais funcionando, os mega promotores imobiliários continuam a construir torres de luxo no Upper East Side de Manhattan, forçando os trabalhadores a trabalhar em condições deploráveis. Sob a pressão de Wall Street, o presidente Trump, na semana passada, acelerou a reabertura da economia, mas a reação popular foi tão forte que teve que recuar. À parte da própria personalidade instável de Trump, seus constantes ziguezagues em suas políticas para conter a pandemia mostram profundas divisões entre os setores burgueses sobre como lidar com esta crise.

Atualmente, uma grande porcentagem da força de trabalho dos EUA está desempregada ou suspendida (alguns seguem formalmente empregados mas com zero horas de trabalho), trancados em suas casas e lutando para sobreviver. O número de pessoas que solicitaram o seguro desemprego aumentou mais de 3 milhões na semana passada, e isso é apenas um indicador do desemprego que inclui muitos outros que não podem solicitar o seguro-desemprego porque não trabalharam o suficiente para solicitá-lo, além dos que têm trabalhos precários e o milhões de imigrantes sem documentos. Apesar do pacote de “estímulo” de um bilhão de dólares, o dinheiro que se dá às famílias de trabalhadores é suficiente apenas para pagar o aluguel e alguns gastos mínimos. O governo decidiu, mais uma vez, salvar o grande capital e dar migalhas para os trabalhadores. O cheque de US$1.200, que apenas chegará aos trabalhadores do setor formal, é um auxílio muito pequeno que pode apenas ajudar as famílias a manterem-se por algumas semanas (deixando centenas de milhares de trabalhadores de restaurantes, babás e trabalhadores das plataformas de aplicativo a deriva). Entretanto, para o grande capital, a ajuda é generosa: US$500 bilhões para grandes empresas, US$58 bilhões para companhias aéreas e mais.

Nesta situação, algumas indústrias estão tirando muito proveito. A Amazon, por exemplo, está recebendo mais pedidos online do que nunca, a Honeywell e a 3M - os maiores produtores de máscaras N95 e outros equipamentos de proteção - viram seus lucros dispararem devido à crise. Grande parte da indústria da saúde deve estar incluída nesta lista também - especialmente os laboratórios que fazem testes para COVID-19.

O capitalismo fracassou

O governo mais uma vez demonstrou que é amigo do capital e inimigo da classe trabalhadora. A administração de Trump e o consenso bipartidarista do Congresso responderam inadequadamente a essa crise iminente da saúde pública em inúmeras ocasiões, o que permitiu que o surto se fortalecesse e se estendesse. Desde os primeiros dias dessa crise, a Casa Branca e a maioria dos legisladores se preocuparam mais em manter a confiança dos mercados e evitar perturbações na economia do que em salvar vidas. Tampouco produziram testes suficientes para detectar e rastrear os contatos em uma etapa inicial para conter os grupos de transmissão. Uma vez que o vírus se propagou, o governo (em todos os níveis) não protegeu os trabalhadores e suas famílias, obrigando-os a trabalhar doentes e sem proteção, expondo-os ao contágio. Mais recentemente, o governo fracassou em produzir respiradores antes que os hospitais enchessem de pacientes com necessidades de assistência respiratória.

Porque as coisas aconteceram dessa maneira? A produção no capitalismo não está determinada pela necessidade social, mas pelas perspectivas de lucro. Donald Trump, como verdadeiro representante (e membro) da classe capitalista, tentou convencer os capitalistas durante várias semanas a produzir o equipamento necessário sem coerção. Mas os números de casos de COVID-19 aumentou drasticamente enquanto a General Motors (GM) seguia negociando um acordo judicial antes de girar a produção para fazer respiradores. Trump finalmente interveio na semana passada e supostamente ordenou a GM a começar a produção, mas não há detalhes de quando e quantos serão produzidos. As semanas perdidas em atrasos desnecessários serão pagas com as vidas dos pacientes que não terão o suporte respiratório necessário nas próximas semanas.

Surdo aumento da luta de classes

Antes da pandemia ter atingido o mundo, a luta de classes estava em ascensão no mundo inteiro. Inclusive nos EUA, os conflitos trabalhistas voltaram à cena depois de vários anos de calmaria. A pandemia, com o isolamento social que implica e, em alguns casos, o sentimento de unidade nacional que traz, pode parecer deixar a luta de classes em segundo plano. A nova norma de distanciamento social, as quarentenas obrigatórias e o isolamento voluntário representam enormes obstáculos para qualquer um que tente se organizar. A ideia de que estamos em guerra contra um inimigo comum impregna os meios de comunicação e todo o discurso político; mas a realidade é muito contundente para que se possa ser ocultada sob esse véu de harmonia social. A verdade é que o choque de classes está presente em todos os aspectos da crise.

Em particular, uma tensão latente está crescendo em praticamente todos os setores “essenciais”, onde os trabalhadores enfrentam condições de trabalho completamente inseguras, a falta de licenças remuneradas por doenças e a obrigação de trabalhar, inclusive para aqueles que correm um alto risco de contrair o COVID-19. Os trabalhadores da GM, Ford e Fiat Chrysler fizeram greves no início deste mês, obrigando as empresas a parar a produção. Os trabalhadores dos armazéns da Amazon, organizados como “Amazonenses Unidos” recentemente conseguiram tempo de descanso pago em ao menos dois locais de trabalho e estão levando à frente campanhas de organização semelhantes em muitos outros. Quase 200 mil trabalhadores do aplicativo de entrega a domicílio Instacart se declararam em greve nacional nesta segunda-feira, exigindo equipamento de proteção, 5 dólares adicionais por hora de salário pelo risco e a extensão dos afastamentos pagos para aqueles que são parte da população em risco. As enfermeiras do hospital Jacobi no Bronx organizaram uma manifestação na semana passada para exigir equipamento de proteção adequado.

É provável que esses exemplos se multipliquem na medida que os casos de COVID-19 sigam aumentando e nos aprofundemos cada vez mais em uma crise econômica e de saúde pública. Se seguimos os passos da Itália na tendência dos casos de coronavírus, também poderíamos seguir seu exemplo sobre como lutar contra a ganância capitalista em meio a pandemia. Na Itália, esta tendência da luta de classes a explodir abertamente alcança sua expressão máxima: as federações sindicais convocaram uma greve geral que se deu no dia 25 de março, para protestar pela ampliação da definição do que seria atividade “essencial” por parte do governo como medida principal.

A tão utilizada comparação da situação atual com os tempos de guerra não é totalmente injustificada. As guerras apenas fomentam um sentimento de patriotismo e unidade nacional e, como agora, a luta de classes, inclusive quando é tapada por um mar de nacionalismo, segue voltando obstinadamente para a superfície. Além disso, como mostra a socióloga Beverly Silver em seu trabalho histórico Forces of Labor (Forças do Movimento Operário), os impasses na luta de classes durante as guerras do século XX foram seguidas imediatamente por auges operários uma vez que a guerra terminou. Podemos esperar um salto similar na luta de classes, talvez uma das mais fortes da história dos EUA, quando deixarmos a pandemia para trás.

Quais são as tarefas da esquerda estadunidense neste cenário?

A grande jogada da esquerda estadunidense desde o início de 2019 foi fazer uma campanha incondicional a favor de Bernie Sanders, com a esperança de que isso resultasse em um fortalecimento de suas organizações. Esse foi o caso do DSA (Democratic Socialist of America), assim como de outras organizações menores como a Socialist Alternative. Apesar de contar com mais de 55 mil membros, o DSA adiou ad eternum a tarefa de construir um partido socialista independente nos EUA, optando ao invés disso por aprofundar seus laços com o Partido Democrata. Isso implicou, implícita ou explicitamente, menos atenção e recursos à tarefa de se construir nos locais de trabalho e nos sindicatos, e converter-se em dirigentes operários para lutas que virão.

Guiado pela ênfase na política eleitoral, o DSA conseguiu, durante os últimos cinco anos, milhares de membros em todo o país com a ilusão de que Sanders poderia arrancar o Partido Democrata das garras do establishment. Mas subestimou o poder das elites do partido. Depois de meses em constante declínio nas pesquisas, resultados ruins nos debates e graves e repetidos erros nas entrevistas, Joe Biden parecia ter sido deixado de fora da corrida. O establishment democrata lutou para encontrar um candidato que pudesse unificar o voto moderado. Entretanto, uma rápida manobra alguns dias antes das eleições primárias foi o suficiente para tornar Biden o candidato inevitável e interromper os esforços de Sanders.

Então chegou a pandemia e tudo mudou. A emergência da saúde pública converteu-se rapidamente em uma crise económica que requereu a intervenção do governo. O plano de “estímulo” que os republicanos e democratas desenvolveram foi, como já colocamos, um generoso presente ao capital, com esmolas miseráveis para os trabalhadores. Bernie Sanders e o Squad (como se referem Alexandra Ocasio-Cortez e outras deputadas progressistas) reconhecem isso, mas não puderam mudar muito. Apesar dos milhões em doações, o exército de partidários e os milhões de votos obtidos nas primárias, Sanders não foi capaz de mudar o caráter da intervenção do governo. Ocasio-Cortez, por sua vez, apesar de fazer uma cena na Câmara de Deputados, acabou também votando pelo pacote.

A estratégia proposta pelos chamados socialistas democráticos foi tomar para si o Partido Democrata e fazer com que Bernie Sanders fosse eleito como candidato. Este foi, desde o início, um plano dirigido para obter pequenas reformas, enquanto se mantém o andaime do estado capitalista (e imperialista) dos EUA. Agora a estratégia mutou para pressionar os partidos Democrata e Republicano para assegurarem que não deixem morrer de fome os milhares de trabalhadores que estão presos em suas casas. Os democratas moderados estavam ansiosos para incluir algumas das demandas da classe trabalhadora no projeto de lei (atribuindo-os à Elizabeth Warren), para realizar o pacote de estímulo mais aceitável para o público em geral, um sinal de que havia aprendido as lições dos resgates de 2008 e da indignação pública que provocou o surgimento do movimento Occupy.

Assim, Sanders não é o problema; o problema é a dissonância cognitiva entre os líderes da maior organização socialista dos EUA que insistiram repetidamente que, para construir o poder da classe trabalhadora, precisamos fazer política dentro do Partido Democrata.

Tudo mudou em dois meses, e a necessidade de que a esquerda converja com os setores mais combativos da classe trabalhadora se faz cada vez mais urgente. Hoje em dia, os socialistas nos EUA precisam estar à frente da luta por condições de trabalho seguras e contra as demissões. Nós, desde o Left Voice, parte da Red Internacional La Izquierda Diario, trabalhamos dia e noite não apenas para proporcionar uma análise anticapitalista, mas também para amplificar as lutas dos trabalhadores.

Assim como os socialistas precisam ser parte da luta dos trabalhadores que se multiplicam ao nosso redor, existe a necessidade igualmente urgente de uma independente representação política da classe trabalhadora. Agora que Biden parece ter assegurado a sua nomeação, os socialistas nos EUA podem dedicar todas as suas forças para construir um partido dos trabalhadores, incluindo imigrantes e nativos, negros e latinos, homossexuais e o conjunto dos oprimidos. Um partido de trabalhadores para lutar contra o capital.

O caminho para o socialismo através do Partido Democrata demonstrou ser um completo fracasso. Hoje em dia o DSA, com seu crescimento, está em uma posição melhor que nunca para levar adiante essas lutas. Entretanto, isso não é graças à campanha de Bernie 2020. É apesar disso. Os enormes esforços relacionados à campanha de Sanders desviaram valiosos recursos que poderiam ter sido utilizados para construir poder em nosso locais de trabalho, para lutar por sindicatos democráticos e militantes (contra a burocracia sindical), e para assentar as bases de um partido operário independente que lute pela ruptura com o capitalismo. Tal partido seria capaz de coordenar a luta nos locais de trabalho, unir a luta dos trabalhadores de primeira linha com os desempregados e representar uma alternativa da classe trabalhadora que não se sentiria obrigada a assinar outro resgate para o capital.

Artigo publicado originalmente em inglês no portal Left Voice, parte da Red Internacional La Izquierda Diario. Acessível em: Pandemic, the Left, and Workers’ Power


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